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CAPÍTULO 1. AS IMAGENS DO PENSAMENTO 17 

1.1. A FILOSOFIA DA DIFERENÇA EM GILLES DELEUZE 17 

1.1.2 A diferença intensiva: outra Imagem do Pensamento 33 

1.1.2.4 Individuação/multiplicidade 43 

Por tudo isto, também não se pode deixar de referir que, na gênese da Ideia se encontra um dos problemas mais tormentosos da filosofia da diferença que é o da individuação. Isto está diretamente relacionado com o problema da intensidade, porque se a diferença é intensidade, não se pode afirmar que a intensidade seja o individualizado.

(...). A indivisibilidade do indivíduo diz respeito apenas à propriedade das quantidades intensivas de não se dividirem sem mudar de natureza. Somos feitos de todas essas profundidades e distâncias, dessas almas intensivas que se desenvolvem e se re-envolvem. Chamamos de fatores individuantes o conjunto dessas intensidades envolventes e envolvidas, dessas diferenças individuantes e individuais, que não param de penetrar umas nas outras através de campos de individuação. A individualidade não é o caráter do Eu, mas, ao contrário, forma e nutre o sistema do Eu dissolvido89.

Ora, se é o tempo, ou melhor, a forma vazia do tempo, que por sua vez vai promover a rachadura no Eu, porque em suas sínteses irão se diferenciar as intensidades nas multiplicidades do pré-individual, pode-se começar a entrever aquele momento de esquizofrenia expressado por Deleuze, citado anteriormente. É a diferença intensiva que constitui mundos. “A razão do sensível, a condição daquilo que aparece, não é o espaço e o tempo, mas o Desigual em si, a disparação90 tal como é ela compreendida e determinada na diferença de intensidade, na intensidade como diferença91”. E já se observa aqui o quanto Deleuze não é um pós-kantiano!

Na imagem dogmática do pensamento, o múltiplo é colocado em contraposição ao uno, como se a possibilidade do múltiplo fosse uma degeneração do uno, ou o uno fosse a confederação do múltiplo. Como já percebido, não é disso que se trata na filosofia da diferença. Esta oposição é bem característica, como já visto, dessa imagem que quer a verdade para o pensamento. Na filosofia da diferença não é esta contraposição que interessa, mas multiplicidades.

       89

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 405.

90

O termo utilizado por Deleuze tem referência com o pensamento de Gilbert Simondon, para quem esta “palabra es tomada de la teoría psicofisiológica de la percepción; existe disparidad cuando dos conjuntos gemelos no completamente superponibles, tales como la imagen retiniana izquierda y la imagen retiniana derecha, son captados conjuntamente como un sistema, pudiendo permitir la formación de un conjunto único de grado superior que integra todos sus elementos gracias a una dimensión nueva (por ejemplo, en el caso de la visión la superposición de los planos en produndidad)”. SIMONDON, Gilbert. La individuación; a la luz de las

nociones de forma y de información. Buenos Aires: Editorial Cactus y La Cebra Ediciones. 2009. p. 304.

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Nem o múltiplo se confunde com o Abstrato, nem o uno se confunde com o Universal, pois estas seriam as duas ilusões da Idéia ainda presa à imagem dogmática do pensamento. Na filosofia da diferença, a “multiplicidade interiorizou a diferença, a diferença está no ser, de modo que, no momento em que ela se exterioriza, deseja apenas reproduzir a diferenciação que já produz como princípio ontológico92”.

Portanto o tempo como apreendido pelo Direito está alijado dos fluxos de devir que estão no mundo, assim é o próprio Direito que é excluído do mundo! E é justamente por isso que se torna ainda mais paradoxal, porque se por um lado o Direito tem uma nítida matriz kantiana, de outro nega aquilo em que Kant mais contribuiu para a filosofia, uma vez que a “maior iniciativa da filosofia transcendental consiste em introduzir a forma do tempo no pensamento93”.

É de se notar que a multiplicidade está em relação com a singularidade e não com o uno. O processo de atualização da multiplicidade é a singularidade e não a individualidade.

Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré- individual, que não se parece com os campos empíricos correspondentes e que não se confunde, entretanto, com uma profundidade indiferenciada. Este campo não pode ser determinado como o de uma consciência (...). Uma consciência não é nada sem síntese de unificação, mas não há síntese de unificação de consciência sem forma do Eu ou ponto de vista da individualidade (Ego). O que não é individual nem pessoal, ao contrário, são as emissões de singularidade enquanto se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam de um princípio móvel imanente de auto- unificação por distribuição nômade, que se distingue radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses de consciência. (...). Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um “potencial” que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado. É somente uma teoria dos pontos singulares que se acha apta a ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do indivíduo tais como elas são (ou se fazem) na consciência94.

Isso quer dizer que na filosofia da diferença, multiplicidade é um substantivo e não predicado que se atribui ao sujeito! Por isto estas noções, também terão importantes consequências para o Direito, não mais como ciência das regularidades, como adiante se analisará.

       92

CARDOSO JÚNIOR, Hélio Rebello. A filosofia e a teoria das multiplicidades. In: A diferença; org. Luiz B. L. Orlandi. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2005. p. 116.

93

 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. p. 113. 

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De outro lado, disso resulta que a intensidade está num estado de implicação com a profundidade espacial, o spatium, e quando ela é explicada na representação, se anula. Mas como é que se evita essa anulação da diferença, na diferença? Justamente, pelo eterno retorno da diferença que é aquela implicação e interpenetração dos campos de individuação, e também porque não se pode olvidar, Eu é um outro.

(...). Eis por que o eterno retorno se diz somente do mundo teatral das metamorfoses e das máscaras da Vontade de potência, das intensidades puras desta Vontade, como fatores móveis individuantes que não se deixam reter nos limites factícios deste ou daquele indivíduo, deste ou daquele Eu. O eterno retorno, o retornar, exprime o ser comum de todas as metamorfoses, a medida e o ser comum de tudo o que é extremo, de todos os graus de potência na medida em que são realizados. É o ser-igual de tudo o que é desigual e que soube realizar plenamente sua desigualdade. Tudo o que é extremo, tornando-se o mesmo, entra em comunicação num Ser igual e comum que determina o retorno95.

De todo o exposto se pode afirmar que as categorias de pensamento kantianas, que ainda são centrais ao pensamento jurídico dogmático e mesmo zetético, se mostram insuficientes para darem cabo das problemáticas jurídicas atuais que encontram seus fundamentos no Cogito racional de faculdades subjetivas, conscientes e harmoniosas, e que por isso permanecem ainda alheias ao plano de imanência do pensamento e da diferença. Não é mais possível negar a impropriedade dos supostos conceitos de sujeito, sociedade, Estado, política, etc., a partir dessa imagem dogmática de um pensamento que não explica seus pontos de partida incoerentes e paralogísticos, e por isso, tem como dado aquilo mesmo que deveria explicar.

Esperamos ter brevemente abordado conceitos importantes para a filosofia da diferença, e seu futuro agenciamento com o Direito, no que os próximos capítulos tratarão com mais vagar, sendo ainda retorsidos em novos conceitos e novas possibilidades, uma vez que diferença é intensidade. Importa agora seguirmos nossa cartografia rumo a outras paisagens, de máquinas e fluxos de desejo.

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