• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. SOCIUS: INSCRIÇÃO DESEJANTE – SELETIVA 101 

3.3 DRAMATIZAR O SOCIUS: ISSO NÃO É UM TEATRO 133 

3.3.2 Concrescendo o discreto 144 

Nessa dupla articulação atual das especificações e das composições de onde emergem as socialidades, as relações e singularidades que elas encarnam terão outra natureza, uma vez que estão submetidas às paixões dos corpos. Ora, apesar de ainda ressoar com muita adequação a afirmação de Spinoza de que não se sabe o que pode um corpo, alguns conceitos nos auxiliam nessa tarefa de apreender o funcionamento das socialidades. Quer isso dizer que a problemática do socius em sua face atual deverá levar em conta nos agenciamentos do desejo e da crença o problema dos ritornelos e dos ritmos.

Como os agenciamentos do desejo e da crença erigem no virtual o problema dos conjuntos de consistência e captação, respectivamente, e sua dramatização requer agora o intensivo dos ritornelos e dos ritmos que os atravessam e atualizam em socialidades, sempre precárias e abertas a novos agenciamentos, justamente porque ritornelos e ritmos são estes efeitos que dão testemunho de um lugar da vida como uma etologia daquilo que passa no estratificado enquanto devir revolucionário; resta então saber como operam esses dois componentes heterogêneos das máquinas sociais.

Deleuze e Guattari vão tomar o agenciamento musical para daí criar conceitos que são de suma importância para a problemática do socius. E que não se veja nisso um divagar artístico como um desvio do problema, mas que ao invés, é pelos traços dessas matérias de expressão da qual a música é, para os autores, talvez a mais privilegiada, que o desejo e a crença agenciam as socialidades.

(...). Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de

matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores,

gestuais, ópticos, etc.). Num sentido restrito, falamos de ritornelo quando o agenciamento é sonoro ou “dominado” pelo som – mas por que esse aparente privilégio?357 Original com os itálicos.

       357

Esse privilégio, na verdade, é fruto da própria matéria de que o som se faz que é muito mais desterritorializada que as cores, por exemplo. O som é a linha de fuga que salta sem significado, sem significante, rumo a uma afinação e especificação que o torna cada vez mais autônomo, ao passa que a cor tende à territorialidade, mesmo em seus movimentos de dissolução. Isso não significa, no entanto, que não haja também na matéria sonora as reterritorializações, trata-se na verdade de um phylum maquínico, e comporta, como tal, ambiguidades e até mesmo desejo de morte tanto quanto os outros agenciamentos.

É dessa coimplicação que surge uma função dita catalítica do ritornelo: “não só aumentar a velocidade das trocas e reações naquilo que o rodeia, mas assegurar interações indiretas entre elementos desprovidos de afinidades dita natural, e através disso formar massas organizadas. O ritornelo seria portanto do tipo cristal ou proteína358”. E é por isso que o ritornelo possibilita as conexões da máquina desejante em socialidades, cria socialidades a partir dessa heterogeneidade de matérias de expressão que agencia na máquina abstrata e dramatiza intensamente nas conexões que faz e desfaz nesse meio que é criado por ele mesmo, por ressonância interna.

E não se trata de organizações hilemórficas, tampouco de massas numéricas extensivas, uma vez que a consistência no intra-agenciamento não remete a estratos definitivos, como já visto, há variação contínua da própria consolidação.

Mas, também, o ritornelo fabrica tempo. É a implicação do tempo nas distâncias que compõe; portanto, tempo intensivo e, em suma, ritmo. E é por isso que o ritmo não se confunde com a medida do tempo. Enquanto a medida é dogmática, o ritmo é “crítico, ele liga os instantes críticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele não opera num espaço-tempo homogêneo, mas com blocos heterogêneos359”. Daí também que não se identifica com a repetição métrica, mas a diferença é que é rítmica.

Essas matérias de expressão que compõem meios e fabricam tempo é que produzirão o território de onde as socialidades emergem como formas de expressão. É que o desejo permite que os ritornelos se conectem com diferentes intensidades rítmicas possibilitando um lugar da vida, um mundo compartilhado, precário, mas que nem por isso deixa de liberar a potência da própria conexão de uma micropolítica, de linhas de fuga capazes de novos agenciamentos criativos de outras formações ou buracos-negros conforme os potenciais que libera, os materiais que organiza, as forças que agencia.

       358

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 167.

359

Nesse sentido poderia se sustentar um velho estereótipo, mas agora potencializado num outro agenciamento conceitual: somos o país do futebol! Ora, quando se vai ao jogo, nada está definido de antemão, nem mesmo se já se sabe para que time torcer. Este Aion que traz o acontecimento nos liga pelo desejo e pela crença de criar este mundo compartilhado pelos afectos de que somos atravessados naqueles momentos em que aquela socialidade acontece. Não se trata de indivíduos, ou de um coletivo chamado torcida, e nem de torcedor. Trata-se do próprio acontecimento, dos territórios em que se enquistam provisoriamente as hecceidades enquanto elas mesmas se produzem, os ritmos que nos atravessam o próprio jogo, o meio, o campo, as intensidades, a chuva que cai, o sol que nos queima; as multiplicidades se conectam em máquinas desejantes neste evento único que nos marca e nos territorializa. Mas também há os componentes de desterritorialização, da emoção, do grito que insulta, do gol que se perdeu. Neste exato instante, o que se passou? A que efetivamente estávamos ligados?

Dir-se-ia, então, que os coletivos não se referem, uma vez mais, a representações totalizantes, (país aqui seria tão somente uma maneira de falar), senão que uma dada socialidade é esta conexão que o ritornelo e os ritmos agenciam pelo desejo e a crença para criar mundos compartilhados, provisórios e, seguindo talvez a proposta de Bifo360, compartilhado pela amizade mais que pela pertença.

Outro caminho poderia ser a problemática como levantada por Hume, no sentido de que o as socialidades seriam instituídas pela simpatia e pela estima. “O problema moral e social consiste em passar das simpatias reais, que se excluem, a um todo real que incluem as próprias simpatias. Trata-se de ampliar a simpatia361”.

Há aí muitos riscos, como sempre tudo pode acabar mal, como as segmentações duras dos fanatismos, dos recentes casos de racismo, e mesmo da profissionalização do próprio jogo; de outro lado, há que assumi-los uma vez serem imanentes a qualquer experimentação, como já lembrado, inclusive etimologicamente. Ao menos este afecto potencializa os agenciamentos de socialidade e os abre às forças do Caosmos. Seria, por isso, necessária uma aposta no acaso do eterno retorno da diferença nesse jogo infinito que nomadiza a política no devir revolucionário das máquinas desejantes.

Uma advertência: que não se empreenda aqui novamente os vícios da representação num conceito de amizade ingênuo ou de relações de indivíduos fraternos ou

       360

BERARDI, Franco. Félix: narración de encuentro con el pensamiento de Guattari, catografía visionaria del

tiempo que viene; trad. Fernando Venturi. Buenos Aires: Cactus, 2013. p. 116 e ss.

361

coisa parecida. Aqui amizade, assim como já deixa também evidente o vocábulo simpatia, está no sentido ético spinozano daquilo que afeta e é afetado no encontro, que aumenta ou diminui nossa potência, e não uma essência moral que possibilita a sociabilidade transcendente. Portanto, irradiação e contágio de signos, partículas, sonoridades, ritmos: desejos e crenças. Como se vê, trata-se já de perceptos e afectos362! 

Mais adiante será abordada a problemática política das formações molares que atualizam o jogo do poder e os processos que atravessam os estratos, epistratos e paraestratos dessas atualizações. No que concerne ainda ao socius, é preciso abordar como a especificação da linguagem potencializa as socialidades para esse além do próprio território e as implicações que efetua.

Documentos relacionados