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CAPÍTULO 1. AS IMAGENS DO PENSAMENTO 17 

1.2. OS MAQUINISMOS EM FÉLIX GUATTARI 45 

1.2.2 Desterritorialização maquínica 53 

Para que o processo maquínico fosse apreendido ao nível ontológico, seria necessária ainda uma desmontagem dos processos de representação. Como já se viu, Deleuze referiu aquela necessidade de um empirismo superior para tratar dos problemas filosóficos que são capazes de criar conceitos. Se o problema linguístico foi o centro das atenções filosóficas do Séc. XX, tal, no entanto, não foi suficiente para tirá-lo ainda do mundo da representação e inscrevê-lo na imanência de que aqui se trata. É que sempre foram reféns das formas e dos conteúdos como categorias primeiras da própria linguagem.

Ora, ao suporem como dados o que já é representação permanecem prisioneiros da imagem dogmática do pensamento bloqueando a diferença ontológica e transformando o significante no tirano supremo. E não se pode pensar que é desse vício inicial que todo o Direito se acha refém, tanto na subsunção quanto na aplicação da Lei?

Numa outra imagem, Guattari evoca os movimentos de desterritorialização como “lei” geral da maquínica, mas lei não como forma abstrata que serviria de modelo para as cópias. Não é disso que se trata, porque não há fechamento para o previamente dado, mas constante processo de mutação; quem precede é a desterritorialização, é ela que está no ontológico sendo as formas um dos casos de expressão na atualização, como adiante se tratará com mais vagar. Nesse nível, trata-se já das máquinas abstratas.

As máquinas abstratas não funcionam como um sistema de codificação que viria sobrepor-se, do “exterior”, sobre as estratificações existentes. No quadro do movimento geral de desterritorialização que evoquei a pouco, constituem uma espécie de matéria da mutação – o que chamo de “matéria de opção” – composta de cristais, possíveis catalisadores das conexões, das desestratificações e das reterritorializações tanto do mundo vivo quanto do mundo inanimado. Marcam, em suma, o fato de que a desterritorialização, sob todas as suas formas, “precede” a existência de estratos e territórios. Não sendo “realizáveis” num puro espaço lógico, mas unicamente através de manifestações maquínicas contingentes, não constituem nunca uma simples combinatória; implicam sempre o agenciamento de componentes irredutíveis a uma descrição formal112.

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É esta irredutibilidade que possibilita uma nova retorsão onde o molecular não se define mais por um achatamento de sua expressão, como se nesse nível tudo fosse simples e coerente, ou depreciado na categoria do pequeno, destituído, supostamente, de potência. Mais uma vez a imagem dogmática do pensamento deve sofrer descentramentos para que não se caia nessa outra ilusão. Não se está descendo ao nível molecular, mas entrando nele e sendo afetado nele como mais uma das possibilidades dessa cartografia, trata- se, portanto, de outras intensidades que estabelecem outras relações com a diferença.

Ao adentrar no universo de referência do micro, Guattari potencializa toda uma quântica que parecia estar adormecida nas chamadas ciências sociais, e trazendo nesse movimento enormes consequências e resultados que não poderiam ainda continuar despercebidos. Não se busca aqui uma posição para este pensamento nos quadros de uma epistemologia do sucesso113. Isto seria como que trair o próprio Autor114. Toda sua produção, apesar de marginal e menor, não é por isso menos potente ou intensa. E isto se dá, justamente porque já se está no âmago da filosofia da diferença, com tudo o que ela traz de sua hybris. Então, do que se trata é de “preservar a multiplicidade e a heterogeneidade de todas as entradas possíveis, de todas as catástrofes, de todas as emergências de novos pontos de cristalização metabólica115”.

Aqui já se entreveem como serão agenciados os processos de dramatização do virtual e do atual. Embora não seja ainda o momento de aprofundar esta problemática, ela se refere ao fato de que, como já aludido também no pensamento de Deleuze, a intensidade se anula quando se explica num extenso e, ao nível molecular também se poderia contrapor um nível molar, em que a passagem mecânica de um a outro se daria como que numa explicação. Mas não é o que ocorre, nem no plano da Ideia, tampouco nas máquinas abstratas. “O molar é a repetição ‘visível’ nos sistemas de coordenadas fixas. O molecular é aquele que ‘faz a diferença’ para o plano de consistência maquínica dos possíveis”116. Para Guattari, trata-se mais de cristalização que de anulação, portanto é outro tipo de processo que não o da explicação que faz a passagem de fluxos entre o molecular e o molar, justamente por causa daquela referida “matéria de opção”, e que é pertinente ao maquínico.

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 Queremos com isso dizer que, também no que concerne às ciências, há uma correlação de forças que muitas vezes condicionam o próprio conhecimento. Mais adiante esta problemática será melhor explicitada.

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Confira-se: GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. pp. 12-13.

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GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. p. 148.

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(...). A desterritorialização maquínica além de uma certa intensidade, transpõe o quadro dos fluxos, dos códigos, das estratificações atualizadas. O que não significa que ela se anule. Ela se cristaliza num outro universo que atravessa todos os universos visíveis no tempo e no espaço. Uma matéria do possível subverte, escava do interior as antigas coordenadas e lança novas proposições maquínicas. O essencial aqui é recusar todo corte absoluto entre a economia do possível e a economia material. As singularidades históricas e cósmicas só poderão ser preservadas nesta condição. O entrecruzamento entre os agenciamentos materiais, os agenciamentos de codificação biológica, os agenciamentos de enunciação semiótica, os agenciamentos maquínicos reais ou possíveis é tal que, fora de situações locais e a título precário, ele não permite mais fundar um sistema transcendente de lei que ‘cobriria’ o conjunto das leis e das singularidades117.

Pode parecer estranho, mas é justamente dessa problemática que o Direito vem se esquivando historicamente de enfrentar em seus conceitos. Muito se fala em direito natural, mas não se questiona de que natureza se trata; muito se fala de normas, regras de comportamento, sem se questionar da adequação ou não de tais noções frente ao já conhecido, mesmo pela própria ciência nos quadros referenciais da dogmática.

Ora, se os conhecimentos científicos (e aqui é de se repisar que não se trata da ciência dogmática, mas a que já se abriu para outras epistemologias, confira-se infra, o item 2.3), são suficientes a desmontar a impossibilidade daquela imagem de uma natureza coerente, regular e organizada, por que se continua a pensar o Direito a partir dessas noções? Seria ainda possível tratar a problemática sem considerar tais modificações importantes?

Ademais, sendo a desterritorialização um fluxo imanente, qual seria então um sentido possível para o Direito que daí adviesse como emergência de singularidade? Não seria justamente este conceito de lei enquanto regularidade que deveria ser submetido à crítica, mesmo que dogmática?!

Novamente estando já na imanência onde forma e conteúdo não se opõem como modelos de individualização, o que se expressa aí são matérias a-subjetivas e pré-formadas. Então, como não considerar o inconsciente, que é essa instância que é o fora da consciência e, portanto, intraduzível em termos de faculdades, muito menos na razão edípica freudiana, como não considerá-lo como potência caótica que possibilita o próprio pensamento, a Ideia?

O inconsciente é constituído de proposições maquínicas das quais as proposições semiológicas e lógico-científicas jamais podem apreender de forma exaustiva. Assim, os empréstimos feitos ao discurso das ciências com o intuito de denifir o inconsciente constituem frequentemente facilidades que não saberiam premunir uma teoria       

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contra o risco de reproduzir referências reducionistas. A forma, a estrutura, o significante, o sistema não cessam de se revezar para tentar arbitrar a velha luta maniqueísta que opõe um puro sujeito a uma pura matéria amorfa, tornada, aliás, imaginária em relação à pesquisa científica contemporânea. Os conceitos devem render-se às realidades e não o inverso118.

Já se percebe também a deriva de um Direito que não mais será centrado no humano antropológico e antropocêntrico, mas uma maquínica das próprias matérias e formas de conteúdo e de expressão que nos permite outra imagem do pensamento, distante do império do Cogito, do logos e do significante.

Diante dessa imagem, as relações também sofrerão suas retorsões, porque já não é mais possível pensar a hierarquia verticalizada do molar ao molecular (Estado/cidadão), tampouco a horizontalização da banalização do senso comum (democracia consensual representativa). Na deriva anunciada pela transversalidade, pelos maquinismos, as relações se abrem para a imagem do rizoma, das redes e das conexões nucleares e suas linhas de fuga. Isso se dá porque os “diferentes tipos de consistência – biológica, etológica, semiológica, sociológica, etc... – não dependem de um superestrato, estrutural ou gerativo; eles são trabalhados do ‘interior’ por uma rede de conexões maquínicas moleculares. A consistência maquínica não é totalizante mas desterritorializante119”.

Veja-se que nestas condições, estamos muito mais próximos de toda a concepção deleuzeana do espaço topológico do que aquele euclidiano que ainda sustenta, inclusive, o projeto kantiano. Por isso também nos parece que as propostas de Guattari serão muito mais frutíferas ao Direito, pois alteram suas condições de possibilidade, não mais como lei de um território, mas como distribuição nômade, naquilo que será adiante abordado, que num caso constitui o modelo do logos da representação e, no outro, o agenciamento nômade do nomos.

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