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CAPÍTULO 2. FILOSOFIA E ESQUIZOANÁLISE NO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO 61 

2.2 O PROBLEMÁTICO 65 

2.2.2 Filosofia da diferença e esquizoanálise no pensamento jusfilosófico: desmontando as más

2.2.2.3 A especificidade da sociedade 87 

Não sendo viável o sujeito, porque surge somente enquanto colocado o problema nos termos da representação, como se coloca o problema da sociedade?

As teorias jurídicas que tratam do problema da sociedade – e o próprio termo já está impregnado do agenciamento jurídico (sócios nas relações de troca, nos termos do contrato ou na aceitação do consentimento) –, o fazem a partir da representação orgânica/estrutural, ao passo que para Deleuze e Guattari, “a sociedade não é, primeiramente, um meio de troca onde o essencial seria circular e fazer circular, mas um socius de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado. Só há circulação quando a inscrição a exige ou permite”214.

Mas já se percebe que este esboço dá o que pensar. É que a inscrição será atravessada por movimentos diversos, seja de desterritorialização, seja de re- territorialização, e se sobreporão conforme historicidades não lineares215 que permitirão formações sociais distintas. Veja-se que não é por acaso que se faz uso, por exemplo, de tatuagens como marcas de iniciação, portanto, entrada como rito de passagem na vida social dita primitiva. Mas também não é por acaso que bandeiras e estandartes passarão a marcar as sociedades despóticas, num primeiro movimento de sobrecodificação já desterritorializado/re- territorializado. Assim, este socius é o que os Autores concebem como o corpo pleno sem órgãos, por excelência, onde os diversos modos de inscrição216 darão ensejo às diversas

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DELEUZE, Gilles. et. al. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. p. 189.

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É preciso que abandonemos, ao menos relativamente, a ideia de progresso histórico como uma sucessão linear de eventos que tende à harmonização das discrepâncias existentes. Nada mais contrário ao que se pode inclusive perceber nas próprias coisas, tal como o conceito de corrupção, por exemplo. Daí que Deleuze e Guattari vão tratar dessa problemática da perspectiva geológica, e não genealógica, falando-se de platôs e seus

estratos como processos de acúmulos e de extrações. Confira-se, mais recentemente: DeLANDA, Manoel. A

thousand years of nonlinear History. New York: Swerve Editions, 2000. passim.

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Aqui, mais uma vez, parece haver uma divergência ontológica em relação a, por exemplo, Aristóteles, quando em sua Poética afirma ser a inscrição a forma de reconhecimento menos segura, pois fruto da falta de

inventividade dos poetas, e que o melhor seria o reconhecimento que se segue aos próprios fatos, mas estes nunca deveriam contrariar a razão. De sua vez, o reconhecimento seria passagem da ignorância ao conhecimento, que conduziria à amizade ou inimizade. Já se vê que o problema do socius é sempre rebatido sobre o que na representação só pode ir até a semelhança ou à rememoração. Textualmente: “Sendo o reconhecimento entre pessoas, alguns casos se limitam à relação de uma parte com a outra, esta segunda parte já sendo conhecida, enquanto em outros casos ambas as partes têm que se reconhecer”. In: ARTISTÓTELES.

formações sociais extraídas dos diversos processos maquínicos217 que as atravessam e definem provisoriamente, e lhes são, no entanto, coexistentes.

Já se percebe que não há formações sociais puras, advindas de modos únicos. Não há um ente total que se possa nominar de sociedade. Há coexistências tanto extrínsecas, no que concerne às formações, quanto intrínsecas quanto aos processos.

Depara-se, aqui também, com um grau de complexidade que não condiz com as simplificações teóricas dos modelos da troca, do contrato e do consenso. As forças que incidem e atravessam os processos de formações sociais são intercambiáveis e iterativas na passagem de um a outro agenciamento. Vale o exemplo dos Autores para demonstrar como se dá esse intercâmbio e iteração e a mudança de formações pelos processos que lhes subjazem:

(...). O estoque nos parece ter um correlato necessário: ou bem a

coexistência de territórios explorados simultaneamente, ou bem a sucessão das explorações sobre um só e mesmo território. Eis que os

agenciamentos formam uma Terra, dão lugar a uma Terra. Tal é o agenciamento que comporta necessariamente um estoque e que constitui, no primeiro caso, uma cultura extensiva, no outro caso uma cultura intensiva (...). Vê-se, desde então, em que o limiar-estoque se distingue do limite-troca: os agenciamentos primitivos de caçadores- coletores têm uma unidade de exercício que se define pela exploração de um território; a lei é de sucessão temporal, porque o agenciamento só persevera mudando de território ao fim de cada exercício (itinerância, itineração); e em cada exercício, há uma repetição ou série temporal que tende para o último objeto como ‘índice’, o objeto- limite ou marginal do território (iteração que vai comandar a troca aparente). Ao contrário, no outro agenciamento, no agenciamento de estoque, a lei é de coexistência espacial, ela concerne à exploração simultânea de territórios diferentes; ou bem, quando ela é sucessiva, a sucessão dos exercícios se apóia sobre um só e mesmo território; e no quadro de cada exercício ou exploração, a força de iteração serial dá lugar a uma potência de simetria, de reflexão e de comparação global. Em termos somente descritivos, oporíamos, portanto, os agenciamentos seriais, itinerantes ou territoriais (que operam com códigos); e os agenciamentos sedentários, de conjunto ou de Terra (que operam com uma sobrecodificação)218. Original com os itálicos.       

Poética. São Paulo: Edipro, 2011. p. 58; 11 (1452b). Sobre o problema da inscrição, confira-se, p. 66 e ss; 16

(1454b).

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“Nós definimos as formações sociais por processo maquínicos e não por modos de produção (que, ao contrário, dependem dos processos). Assim, as sociedades primitivas se definem por mecanismos de conjuração-antecipação; as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; as sociedades urbanas por instrumentos de polarização; as sociedades nômades, por máquinas de guerra; as organizações internacionais, ou antes, ecumênicas, se definem enfim pelo englobamento de formações sociais heterogêneas. Ora, precisamente porque esses processos são variáveis de coexistência que constituem o objeto de uma topologia social, é que as diversas formações correspondentes coexistem”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 5, p. 126.

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Já ecoa a pergunta sobre os diferentes regimes jurídicos que emergem de tão distintas relações, uma vez que pelas teorias clássicas do Direito a noção de propriedade diz-se, cooriginária! Vê-se, também o quanto estão afastadas dessa materialidade de onde deveriam criar seus conceitos.

A terra como componente central desses agenciamentos é que deu ensejo a todo desenrolar histórico dessas formações sociais, com as codificações, sobrecodificações, os fluxos de matérias e os processos maquínicos que lhes correspondem. É dela também que procedem os potenciais de desterritorialização e re-territorialização das diversas formações. Vê-se aí a problemática da apropriação em sua emergência nas próprias forças materiais que qualificam e quantificam a terra. Disso resultam, por óbvio, formações sociais distintas, uma vez que mudam de natureza conforme seus graus de territorialização e desterritorialização que expressam as diferentes intensidades de inscrição.

É que não é o mesmo trabalho e a mesma troca que se dá, por exemplo, quando se está sob o agenciamento estoque; e já não é a mesma relação com a terra. Como se viu, os processos se intercambiam e podem dar ensejo a, por exemplo, o agenciamento cidade. Há, nesse caso, uma intensificação dos fluxos, que farão desterritorializar o agenciamento estoque rumo a uma instrumentalização dos mesmos em forma de moeda que constitui não só uma aceleração das trocas e das equivalências, bem como uma nova sobrecodificação, agora rumo a uma abstração dos códigos que abrirá os agenciamentos a outras possibilidades de inscrição. Está-se diante das condições do aparecimento do aparelho de captura que será atualizado na emergência do Estado despótico.

Ao mesmo tempo, essas marcas não permanecem as mesmas segundo os diversos regimes de signos219 por que são atravessadas em seus agenciamentos. É o próprio agenciamento que muda de natureza. Mudam-se os códigos. E é bem por isso que um autor como Kafka, por exemplo, vai nos causar tantos incômodos e estranhamentos por saber misturar esses códigos na literatura, e nos fazer passar pelos suplícios do condenado como no caso d’A colônia penal, onde a máquina de inscrição do direito opera, na carne, seus sulcos bárbaros escrevendo a sentença de um regime jurídico que, se suporia pelo contexto descrito, do mundo moderno, portanto, já sobrecodificado não mais na carne, mas na forma

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Para Deleuze e Guattari os regimes de signos constituem semióticas as mais diversas. É por isso que falarão em regime significante, pré-significante, contra-significante, pós-significante, etc. Eles mesmos advertem não esgotarem as possibilidades nessas nominações, por óbvio. Afirmam que as “semióticas dependem dos agenciamentos, que fazem que determinado povo, determinado momento ou determinada língua, mas também determinado estilo, determinado modo, determinada patologia, determinado evento minúsculo em uma situação restrita possam assegurar a predominância de uma ou de outra”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 71.

interiorizada da penitência. A máquina emperra, não só porque suas condições de funcionamento são outras e não ensejam as funções que nela se efetuam, mas também porque dá testemunho desta coexistência da disfunção imanente, das descontinuidades recíprocas. Ninguém melhor que ele mostrou a necessidade do desmonte!

Não se trata, por outro lado, de uma evolução linear e progressiva, são processos coexistentes, que surgem nos fluxos e cortes das máquinas e seus agenciamentos.

Percebe-se que sociedade apreendida como objeto de funções jurídicas, tais como controle de comportamentos, fluxo de riquezas, ou distribuição de poderes, é também da perspectiva esquizoanalítica outra impossibilidade porque toma como totalidade unitária aquilo que deveria ser explicado a partir dos processos maquínicos que lhe subjazem e que, por isso mesmo, deixa de ser objeto.

Ver-se-á que a partir de outras aproximações dessa mesma problemática surgirão teses que são mais aptas à colocação dos problemas que lhes são inerentes, como as de Gabriel Tarde, por exemplo, que toma como forças subjacentes a crença e o desejo para instituir uma sociologia molecular, totalmente diversa dessa das molaridades e das generalidades que ainda dominam o discurso jurídico.

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