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As máquinas desejantes e os agenciamentos coletivos de enunciação 130 

CAPÍTULO 3. SOCIUS: INSCRIÇÃO DESEJANTE – SELETIVA 101 

3.2. DESEJO MAQUÍNICO E CRENÇA SELETIVA– DESTERRITORIALIZAÇÃO

3.2.3 As máquinas desejantes e os agenciamentos coletivos de enunciação 130 

Sabe-se que Deleuze declarara ter renunciado “à bela palavra de Félix, ‘máquinas desejantes’, (...)317”.Mas ainda assim, dentro de tudo o que sua filosofia propõe, pensa-se ser ainda possível reativar os termos aí propostos318, pois guardam um potencial conceitual que poderia ser conectado com outros agenciamentos para novas experimentações.

Se, como se viu, as linhas podem construir cartografias, se as máquinas abstratas são linhas de fuga que saltam do plano de imanência agenciando os fluxos,

       315

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 321.

316

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 193.

317

DELEUZE, Gilles. et. al., Diálogos. p. 118.

318

“(...). De um certo modo, a questão da reativação de um conceito não parece ser um problema quando é o próprio Deleuze quem afirma que ele é sempre um composto, um consolidado de linhas e curvas que, na verdade, mantém conexões com outros conceitos, em outros planos. Além disso, também sabemos que um conceito não é criado do nada, daí por que ele sempre remete a conceitos anteriores (não é o próprio Deleuze quem afirma que um conceito mantém, em muitos casos, pedaços ou componentes de outros conceitos?)”. In: SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Edusp, 2004. p. 135-136. De outro lado, Guattari já afirmara: “(...). Assim como um artista toma de seus predecessores e de seus contemporâneos os traços que lhe convêm, convido meus leitores a pegar e a rejeitar livremente meus conceitos”. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. p. 23.

e se foi afirmado que o desejo é tudo isso e algo mais, pois contém em si esse excesso que lhe é ínsito, e se, por seu turno, a crença possibilita a repetição no eterno retorno, parece então que máquinas desejantes ainda implica essa potência conceitual que não se exauriu por completo, uma vez que a tal renúncia se deu precipuamente no que concernia o conceito ao agenciamento sexual do desejo.

No que condizente à problemática do socius, a questão nos parece mudar de natureza, e as máquinas desejantes seriam adequadas a apreender o processo de construção das socialidades. Não identificamos os termos, nesse momento, com qualquer relação com o humano, mas às máquinas e os maquinismos em si mesmo considerados. Pois se o que determina o socius são as inscrições, se toda máquina é, antes de mais nada, máquina coletiva ou social, se o desejo é imanente ao socius, tanto quanto a crença, não parece haver inadequação nessas formas de conteúdo e de expressão do desejo. Máquina desejante porque desejando diferencial319 se produz a máquina que traça o plano de consistência das

socialidades.  

Parece-nos que na problemática do socius, não se trata de dois termos que vêm se juntar para formar uma expressão linguística: máquina desejante. Somente máquinas desejantes efetuam a inscrição, marcas, signos, devires. A máquina desejante é diferença de potencial das multiplicidades do corpo-sem-órgãos do socius ensejando conexões ou conjugações320 das substâncias e formas no coração do socius e, de acordo com os agenciamentos por que são atravessadas, seja de desterritorialização, seja de reterritorialização; expressa modos diversos de socialidades como problemas de conjuntos de consistências321

. E as repetições da crença, como transversal do tempo, implicam nas

       319

Não se remete os termos aqui a um Eu, como se o desejando fosse objeto para um sujeito, mas usamos a expressão aqui no substantivo.

320

“(...). Desse ponto de vista, portanto, devemos introduzir uma diferença entre duas noções, a conexão e a

conjugação dos fluxos, pois se a ‘conexão’ marca a maneira pela qual os fluxos descodificados e

desterritorializados são lançados uns pelos outros, precipitam sua fuga comum e adicionam ou aquecem seus

quanta, a ‘conjugação’ desses mesmos fluxos indica sobretudo sua parada relativa, como um ponto de

acumulação que agora obstrui ou veda as linhas de fuga, opera uma reterritorialização geral, e faz passar os fluxos sob o domínio de um deles, capaz de sobrecodificá-los. Mas é sempre o fluxo mais desterritorializado, conforme o primeiro aspecto, que opera a acumulação ou conjugação dos processos, determina a sobrecodificação e serve de base para a reterritorialização, conforme o segundo aspecto (encontramos um teorema segundo o qual é sempre sobre o mais desterritorializado que se faz a reterritorialização)”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 3, p. 100.

321

“(...). Falaremos, ao contrário, de conjuntos de consistência quando nos virmos diante de consolidados de componentes muito heterogêneos, curto-circuitos de ordem ou mesmo causalidades ao avesso, capturas entre materiais e forças de uma outra natureza, em vez de uma sucessão regrada formas-substâncias: como se um

phylum maquínico, uma transversalidade desestratificante passasse através dos elementos, das ordens, das

formas e das substâncias, do molar e do molecular, para liberar uma matéria e captar forças”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 150. Com os itálicos no original.

divergências e convergências de seleção dos futuros de socialidades como problemas de captação322

.

E já se vê que desejo não remete à substância e nem à essência; dir-se- ia que há modulações desejantes e que a máquina desejante faz passar os fluxos no socius marcando-o com seus afectos em variação contínua. E, de sua vez, crença não remete a qualquer tonalidade mística, mas às seleções que o eterno retorno produz a partir das repetições que fazem divergir em fluxos de tempo e de acaso, os efeitos dessa máquina. Mas seria preciso também que a máquina desejante fosse capaz dessa consolidação e dessa captura que expressam as socialidades. “Se essa máquina deve ter um agenciamento, será o sintetizador323”.

Não se trata, mais uma vez, somente do humano, senão que nos próprios estratos já atua este agenciamento sintetizador que não opera como já visto, a partir da dialética clássica, onde a síntese anula as diferenças. Aqui não há lugar para o negativo, está-se diante da afirmação pura da diferença. Nem Kant nem Hegel, no “virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento, o falso movimento da realização como imitação abstrata324”.

Vimos que as forças tendem a diversas estratificações ao mesmo tempo em que sofrem ações dos mais diversos agenciamentos, seja de territorialização, seja de desterritorialização, advindo formas de conteúdo e de expressão variáveis elas mesmas. Nessas variações, emergiram a mão e a linguagem como formas desterritorializadas por excelência, pois capazes de transformar o mundo exterior. Nessa aventura do socius o aparecimento dessa complexidade da vida implica novas formas de conteúdo e de expressão que entram num devir e eterno retorno absolutos. Mas nem a mão nem a linguagem nada poderão se não estiverem agenciadas nessa relação imanente que vai do caos ao cérebro325.

       322

“(...): o eterno retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que captura as forças mudas e impensáveis do Cosmo. Saímos, portanto, do canto e dos agenciamentos para entrar na idade da Máquina, imensa mecanosfera, plano de cosmicização das forças a serem captadas”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs.

Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 160.

323

Embora a frase aí esteja se referindo a uma máquina de sons, pensamos ser possível estender o agenciamento às máquinas desejantes, inclusive por que, como adiante será abordado, a música terá um agenciamento com o Direito que importa ao presente trabalho. Até porque os próprios Autores assim possibilitam quando afirmam logo a seguir: “A filosofia, não mais como juízo sintético, mas como sintetizador de pensamentos, para levar o pensamento a viajar, torná-lo móvel, fazer dele uma força do Cosmo (do mesmo modo levar o som a viajar...)”.

Idem, ibidem.

324

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 341-342.

325

Vale lembrar aqui como este problema se coloca para a esquizoanálise e a filosofia da diferença: “Em O que é

E aqui, tanto as máquinas desejantes quanto os agenciamentos coletivos de enunciação que efetuam tais máquinas, mudam de natureza! Surge nesse mesmo lance de dados o Pensamento e com ele todas as problemáticas que lhe são concernentes, dando testemunho da potência imanente e do Acontecimento na própria vida. Já não se trata de fazer análises, mas experimentar os perigos e as alegrias do que pode um corpo!

Por isso também já não se trata de fazer sínteses, mas sintetizar o mundo e mergulhar na insistência de uma vida. Para que tal passagem se efetue, seria preciso que as forças do desejo e da crença, em suma, das multiplicidades virtuais pudessem ser atualizadas e vividas pelo e no Pensamento.

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