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CAPÍTULO 2. FILOSOFIA E ESQUIZOANÁLISE NO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO 61 

2.2 O PROBLEMÁTICO 65 

2.2.2 Filosofia da diferença e esquizoanálise no pensamento jusfilosófico: desmontando as más

2.2.2.2 A especificação do sujeito 82 

O sujeito é pensado como dado autonomamente, objeto pronto e acabado do conhecimento, bastando a ele vir e se somar outros sujeitos para constituir a sociedade, seja pelo contrato, ou pelo consenso, coroados pelo Estado como função ideal absoluta dessa reunião de indivíduos que o instituem para a condução da vida política. É nesses termos que as problemáticas do Direito encontram-se aprisionadas sem qualquer involução criativa, na forma vazia da lei, serializando ou estruturando as velhas e cansadas ideias do fundamento, da legitimidade e da efetividade193. E não se sai disso porque ainda não

       192

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 1, pp. 32-33.

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Em seu livro sobre Foucault, quando trata especificamente de Vigiar e punir, Deleuze identifica outras possibilidades: “Um dos temas mais profundos do livro de Foucault consiste em substituir a oposição, por demais grosseira, lei-ilegalidade por uma correlação final ilegalismos-lei. A lei é sempre uma composição de ilegalismos, que diferencia ao formalizar. (...). A lei é uma gestão dos ilegalismos, permitindo uns, tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégio da classe dominante, tolerando outros como compensação às classes dominadas, ou, mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente, proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de dominação. (...). Mas o que é comum às repúblicas e às monarquias ocidentais é terem erigido a entidade da Lei como suposto princípio do poder, para obterem uma representação jurídica homogênea: o ‘modelo jurídico’ veio recobrir o mapa estratégico. O mapa dos ilegalismos, entretanto, continua a trabalhar sob o modelo da legalidade. E Foucault mostra que a lei não é nem um estado de paz nem o resultado de uma guerra ganha: ela é a própria guerra e a estratégia dessa guerra em ato, exatamente como o poder não é uma propriedade adquirida pela classe dominante, mas um exercício atual

se pôs como tarefa, no pensamento jusfilosófico, reverter o platonismo, erigir seu plano de imanência e povoá-lo com os conceitos que poderiam lhe conferir consistência e novas potências. É que é “pretensão do Estado ser imagem interiorizada do mundo e enraizar o homem194”.

Mas ao dizer que seria preciso fazer rizomas, não se estaria aí pressupondo um alguém e um algo que seria ainda da ordem da representação, recolocando assim o problema do sujeito/objeto? É que se trata somente de uma maneira de falar. De fato, se, como vimos, as sínteses do tempo são elas próprias aberturas, fendas, linhas fractais, e se na imanência a multiplicidade do virtual é a realidade, tudo está em constante devir, fluxos e cortes. De sua vez, essa pré-condição é que dá ensejo à maquínica195 como conexão afectiva desse fluxo portador de singularidades e traços de expressão, porque matéria desestratificada, desterritorializada, portanto, nômade.

No plano de imanência, das multiplicidades virtuais escapam sempre linhas que devem ser percorridas, seguidas e, que por si mesmas, constituem um phylum. “É possível falar de um phylum maquínico, ou de uma linhagem tecnológica, a cada vez que se depara com um conjunto de singularidades, prolongáveis por operações, que convergem e as fazem convergir para um ou vários traços de expressão assinaláveis196

”. (Em itálico no original). Se, como vimos são as dramatizações que atualizam as Ideias, são os agenciamentos197 que atualizam os fluxos de matéria numa pressuposição recíproca. “É preciso, pois, levar em conta a ação seletiva dos agenciamentos sobre o phylum, e a reação evolutiva do phylum, sendo este o fio subterrâneo que passa de um agenciamento a outro, ou sai de um agenciamento, arrasta-o e o abre”. (Idem, p. 89).

      

de sua estratégia”. DELEUZE, Gilles. Foucault; trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 39-40.

194

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 1, p. 36.

195

“(...). O que chamamos de maquínico é precisamente esta síntese de heterogêneos enquanto tal. Visto que estes heterogêneos são matérias de expressão, dizemos que sua própria síntese, sua consistência ou sua captura, forma um ‘enunciado’, uma ‘enunciação’ propriamente maquínica”. (DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs.

Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 143.

196

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 5, pp. 87-88.

197

“Denominaremos agenciamento todo conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo – selecionados, organizados, estratificados – de maneira a convergir (consitência) artificialmente e naturalmente: um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 5, p. 88.

Já se pressente o nível de complexidade do mundo198. Mas, disso não resultaria que a formalização seria capaz de reduzi-la! Por isso o modelo hilemórfico da lei que submete a matéria a uma forma, ou, inversamente realizam na matéria as propriedades de uma essência deduzidas do modelo legal, é inteiramente inadequado. Há dois equívocos graves aí, o primeiro é que a matéria não é pré-formada no conteúdo, ela, como se viu, está virtualmente desestratificada e desterritorializada199, em suma, é multiplicidade; de outro lado, a contraposição conteúdo/forma é inadequada porque na imanência há formas de conteúdo que lhe são próprias, as matérias mesmas encarnam formas que não se confundem com as da sua expressão200, e não fosse assim, não haveria a disparidade entre virtual/atual, que como se viu, não operam por semelhança na passagem de um ao outro e nem no mesmo sentido (não- lineares), seja na dramatização das Ideias, sejam nos agenciamentos das matérias.

Disso resulta que as universalidades são territorializações201 precárias e que paradoxalmente deixam de ser, por isso mesmo, universais202.

É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de descrever ou de atestar um conteúdo correspondente: não há correspondência nem conformidade. As duas formalizações não são da mesma natureza, e são independentes, heterogêneas203.

Aquilo a que o Direito, na representação, nomina de sujeito é, portanto, uma impossibilidade lógica para o pensamento diferencial esquizoanalítico porque não se pode identificar o Eu que diz “eu sou”. Diz-SE204! Mesmo na linguagem não se diz eu

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Para uma breve discussão sobre a teoria da complexidade e suas implicações com a filosofia de Deleuze e Guattari, confira-se: PROTEVI, John. Deleuze, Guattari and emergence. In: Paragraph, v. 29, t. 2. Edinburgh:

Edinburgh University Press, 2006. p. 19-39.

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“O material tem, portanto, três características principais: é uma matéria molecularizada; está em relação com forças a serem captadas; define-se pelas operações de consistência que incidem sobre ele”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 162.

200

“A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá- los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. A cadeia de transformações instantâneas vai se inserir, o tempo todo, na trama das modificações contínuas (...)”.DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 27.

201

“O território é, ele próprio, lugar de passagem. O território é o primeiro agenciamento, a primeira coisa que faz agenciamento, o agenciamento é antes territorial”.

202

“(...) O universal havia se tornado relação, variação. Variação contínua da matéria e desenvolvimento contínuo da forma”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, 155.

203

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 26.

204

“(...) É o ‘Diz-SE’, como murmúrio anônimo, que assume tal ou qual dimensão diante do corpus considerado.

Estamos, então, capacitados a extrair – das palavras, frases e proposições – os enunciados, que não se confundem com elas. Os enunciados não são palavras, frases ou proposições, mas formações que apenas se

sem antes dizer-SE na própria função-linguagem. “A função-linguagem é transmissão de palavras de ordem205, e as palavras de ordem remetem aos agenciamentos, como estes remetem às transformações incorpóreas que constituem as variáveis da função206”. Como se vê não se trata de essências, tampouco de operações lógicas.

E se passamos das matérias às palavras de ordem é porque, como vimos, a linguagem está imbricada no agenciamento comer-falar-pensar207. Mas se a função- linguagem expressa, por sua vez, uma função política208, não seria de se perguntar por quê? Como isso se dá? É que no âmago deste comer-falar-pensar o agenciamento é diagramático: máquina abstrata209.

Desse ponto de vista, a interpenetração da língua com o campo social e com os problemas políticos encontra-se no âmago da máquina abstrata, e não na superfície. A máquina abstrata enquanto relacionada ao diagrama do agenciamento nunca é linguagem pura, exceto por erro de abstração. É a linguagem que depende da máquina abstrata e não o inverso210.

Quer isso dizer que é nesse diagramático do plano de consistência, portanto intensivo, que os enunciados maquínicos211 inventarão as matérias que poderão dar

      

destacam de seus corpus quando os sujeitos da frase, os objetos da proposição, os significados das palavras

mudam de natureza, tomando lugar no ‘diz-se’, distribuindo-se, dispersando-se na espessura da linguagem”.

DELEUZE, Gilles. Foucault. pp. 28-29.

205

“(...). As palavras de ordem ou os agenciamentos de enunciação em uma sociedade dada – em suma, o ilocutório – designam essa relação instantânea dos enunciados com as transformações incorpóreos ou atributos não-corpóreos que eles expressam”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p.

19. E é justamente a partir do exemplo citado por Ducrot sobre o agenciamento jurídico na sentença do magistrado, quando transforma o acusado em condenado, que chegam os Autores a tal conclusão! (Idem, p. 18).

206

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2 p. 26.

207

Esta problemática tem sido objeto de várias considerações, inclusive biológicas, até mesmo pelos

evolucionistas que apontam esses agenciamentos e suas implicações. Confira-se: FERRY, Luc. O que é o ser humano? Sobre os princípios fundamentais da filosofia e da biologia / Luc Ferry, Jean-Didier Vincent; trad.

Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p. 111 e seguintes. O texto mostra como as ações desterritorializantes da posição ereta, dos seios protuberantes e sua correlação com o diafragma e da laringe deslocada por esses componentes foram importantes ao surgimento de um aparelho fonador que permitiria a fala, como a alimentação pela ação do fogo (desterritorialização energética) contribuiu para o desenvolvimento do cérebro e como a linguagem surge dessas multiplicidades.

208

“(...). A linguística não é nada fora da pragmática (semiótica ou política) que define a efetuação da condição da linguagem e o uso dos elementos da língua”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 26.

209

“(...) A máquina abstrata atravessa todos esses componentes heterogêneos, mas sobretudo ela os heterogeneíza fora de qualquer traço unificador e segundo um princípio de irreversibilidade, de singularidade, de necessidade”. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético; trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 51.

210

DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 33.

211

“(...). O que nós chamamos de enunciados maquínicos são esses efeitos de máquina que definem a consistência onde entram as matérias de expressão. Tais efeitos podem ser muito diversos, mas eles jamais são

ensejo à própria linguagem, não mais como significantes/significados, mas pela extração de signos-partículas nesse agenciamento212, no qual significantes/significados é o que emperra o funcionamento da máquina, pois busca, ao invés, uma axiomática estratificada. É que, como se viu, as relações são sempre exteriores aos termos que as constituem e a passagem do virtual ao atual não se dá por semelhança. E é só da perspectiva de uma semiótica de estratos, sem agenciamentos, do mundo da representação que o significante tiraniza a língua.

A problemática da interpretação no Direito mostra-se, sob este ponto de vista, adstrita nos equívocos da representação. Trata-se o texto, seja o da lei, seja o da descrição do caso, como uma entidade absoluta com significantes/significados plenos, bastando ao intérprete operar logicamente a subsunção para fazer justiça.

Nem sob a perspectiva da hermenêutica se avança, uma vez que o texto é apenas o substrato material fixado dos sentidos, do que poderia dizer o texto (forma) em suas interpretações (conteúdo), sendo a razão, ademais, o horizonte dessa busca e tendo como pressuposta a coerência do próprio sentido213. Ignoram-se, destarte, todos os afetos, todos os componentes de agenciamento, toda a realidade do virtual/atual e toda a diferença intensiva imanente que se atualizam, não em sujeito, mas hecceidades pré-individuais, anônimas. O texto não mais como tecido vivo, não mais como o entretecido, mas reprodução vazia da relação significante/significado. De outro lado, aplicam-se as consequências do texto, assim interpretado, àqueles a ele sujeitados (porque é somente neste agenciamento de

      

simbólicos ou imaginários, eles sempre têm um valor real de passagem e de alternância”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 146-147.

212

“(...). Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas. O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que faz com que heterogêneos mantenham-se juntos sem deixar de ser heterogêneos; (...)”.DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 141.

213

“(...). O sacerdote interpretativo, o adivinho, é um dos burocratas do deus-déspota. Surge um novo aspecto da trapaça, a trapaça do sacerdote: a interpretação estende-se ao infinito, e nada jamais encontra para interpretar que não seja uma interpretação. Assim, o significado não pára de fornecer novamente significante, de recarregá-lo ou de produzi-lo. A forma vem sempre do significante. O significado último é então o próprio significante em sua redundância ou seu ‘excedente’. É totalmente inútil pretender ultrapassar a interpretação, e mesmo a comunicação, pela produção de significante, já que é a comunicação da interpretação que serve sempre para reproduzir e para produzir significante. Não é certamente assim que se pode renovar a noção de produção. Essa foi a descoberta dos sacerdotes psicanalistas (mas que todos os outros sacerdotes e todos os outros adivinhos fizeram em sua época): que a interpretação deveria ser submetida à significância, a ponto de o significante não fornecer qualquer significado sem que este não restituísse, por sua vez, um significante. A rigor, com efeito, não há mesmo mais nada a interpretar, mas porque a melhor interpretação, a mais pesada, a mais radical, é o silêncio eminentemente significativo. Sabe-se que o psicanalista nem mesmo fala mais e que só interpreta, ou, melhor ainda, faz interpretar, para o sujeito que salta de um círculo do inferno a outro. Na verdade, significância e interpretose são as duas doenças da terra ou da pele, isto é, do homem, a neurose de base”. DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 2, p. 65.

estratificação que se pode pensar o sujeito enquanto expressão deste estrato), efetuando transformações materiais inauditas. Seria preciso ler Kafka para perceber os absurdos?

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