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CAPÍTULO 3. SOCIUS: INSCRIÇÃO DESEJANTE – SELETIVA 101 

3.2. DESEJO MAQUÍNICO E CRENÇA SELETIVA– DESTERRITORIALIZAÇÃO

3.2.2 Crença como (a)fundação do Tempo 127 

Se o desejo concerne ao agenciamento em seus graus de desterritorialização, a crença de sua vez concerne às intensidades de divergência, por isso já se afirmou serem os dois aspectos de todo agenciamento. Disso não decorre que as crenças já estariam territorializadas nos estratos; são fluxos e linhas de fuga tanto quanto o desejo, mas enquanto este concerne ao espaço diagramático, aquela concerne ao tempo intensivo.

Este tempo que é o da terceira síntese, é que possibilita as seleções que vão se dar com o Eterno Retorno da diferença. É que neste terceiro tempo, “apenas o incondicionado no produto como retorno retorna306

”.

De sua vez, a repetição aqui, concerne “aos sistemas excessivos que ligam o diferente ao diferente, o múltiplo ao múltiplo, o fortuito ao fortuito, num conjunto de afirmações sempre coextensivas às questões levantadas e às decisões tomadas307”.

E é interessante que aqui do que se trata é do futuro308, mas não esse do tempo extensivo e espacializado como se costuma pensar, mas o do Aion, onde o acaso é afirmação e positividade309. Uma teoria dos jogos, mas num sentido bastante singular310,

       306

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 465.

307

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 194.

308

“(...). Com efeito, se o terceiro, o futuro, é o lugar próprio da decisão, pode muito bem ser que, por sua natureza, ele elimine as duas hipóteses intracíclica e intercíclica, desfaça ambas, coloque o tempo em linha reta, endireite-o e dele extraia a forma pura, isto é, faça-o sair dos ‘eixos’ e, terceira repetição, torne impossível a repetição dos dois outros. Em vez de assegurar o ciclo e a analogia, o terceiro tempo os suprime. Então, a diferença entre as repetições torna-se a seguinte, em conformidade com a nova fronteira: o Antes e o Durante são e continuam sendo repetições, mas repetições que só operam uma vez por todas. É a terceira repetição que as distribui segundo a linha reta do tempo, mas também que as elimina, as determina a operar apenas uma vez por todas, guardando o ‘todas as vezes’ somente para o terceiro tempo”. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 465. (Com os itálicos no originial).

309

“(...). Nada sobe à superfície sem mudar de natureza. Aion não é mais de Zeus nem de Saturno, mas de Hércules. Enquanto Cronos exprimia a ação dos corpos e a criação das qualidades corporais, Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos atributos distintos das qualidades. Enquanto Cronos era inseparável dos corpos que o preenchiam como causas e matérias, Aion é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo. Enquanto Cronos era limitado e infinito, Aion é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito como o instante. Enquanto Cronos era inseparável da circularidade e dos acidentes desta circularidade como bloqueios ou precipitações, explosões, desencaixes, endurecimentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos dois sentidos. Sempre já passado e eternamente ainda por vir, Aion é a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do tempo, que se liberou de seu conteúdo corporal presente e por aí desenrolou seu círculo, se

próprio ao virtual. Como se disse: nunca se sabe o resultado de antemão, e por isso as decisões nunca são finais, mas sempre proliferam na multiplicidade do virtual onde se criam diversos futuros311.

E, curiosamente, num texto de Tarde312 intitulado A ação dos fatos futuros, lê-se a seguinte nota:

Observe-se que a noção de diferença ou de diferenciação (mudança) tem o privilégio único de poder voltar-se contra si mesma, enfrentar- se, dar-se por finalidade ela mesma. Não se pode dizer um movimento

movido, a menos que se entenda por isso um movimento variável,

diferenciado. Ao contrário, nada mais claro e mais natural do que as expressões diferenciação diferenciada e diferença diferente. (...) a mudança atributo da mudança é uma mudança real, por exemplo, as perturbações de uma curva ou os desvios de um tipo específico, ou, em um outro sentido, a passagem por graus da diferença de graus à diferença de natureza, o que se produz quando uma curva ou um tipo específico, à força de variar de uma certa maneira, acabam por se transformar em uma outra curva ou em um outro tipo.

Neste texto difícil e obscuro, Tarde tenta estabelecer como os fatos futuros são tão causais quanto os passados, e que é somente à força de muita arbitrariedade dos hábitos mal elaborados que não se chega a considerá-los com a mesma importância. Não seria então de se concluir com ele, mas num outro sentido, que também o futuro nos carrega para o presente, não como pré-determinação, mas como as potências do eterno retorno e do acontecimento? 

      

alonga em uma reta, talvez tanto mais perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por esta razão”. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. p. 170.

310

“Não basta opor um jogo ‘maior’ ao jogo menor do homem, nem um jogo divino a um jogo humano: é preciso imaginar outros princípios, aparentemente inaplicáveis, mas graças aos quais o jogo se torna puro. 1º) Não há regras preexistentes, cada lance inventa suas regras, carrega consigo sua própria regra. 2º) Longe de dividir o acaso em um número de jogadas realmente distintas, o conjunto das jogadas afirma todo o acaso e não cessa de ramificá-lo em cada jogada. 3º) As jogadas não são pois, realmente, numericamente distintas. São qualitativamente distintas, mas todas são as formas qualitativas de um só e mesmo lançar, ontologicamente uno. Cada lance é ele próprio uma série, mas em um tempo menor que o minimum de tempo contínuo pensável;

a este mínimo serial corresponde uma distribuição de singularidades”. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. p. 62. (Com os itálicos no original).

311

“(...). A divergência das séries afirmadas forma um ‘caosmos’ e não mais um mundo; o ponto aleatório que os percorre forma um contra-eu e não mais um eu; a disjunção posta como síntese troca seu princípio teológico contra um princípio diabólico. Este centro descentrado é que traça entre as séries e para todas as disjunções a impiedosa linha reta do Aion, isto é, a distância em que se alinham os despojos do eu, do mundo e de Deus: grande Cañon do mundo, fenda do eu, desmembramento divino. Assim, há sobre a linha reta um eterno retorno como o mais terrível labirinto de que falava Borges, muito diferente do retorno circular ou monocentrado de Cronos: o eterno retorno que não é mais o dos indivíduos, das pessoas e dos mundos, mas o dos acontecimentos puros que o instante deslocado sobre a linha não cessa de dividir em já passados e ainda por vir. Mais nada subsiste além do Acontecimento, o Acontecimento só Eventum tantum para todos os contrários, que comunica consigo por sua própria distância, ressoando através de todas suas disjunções”. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. p. 182.

312

A crença, então, é o que faz repetir a diferença quando os agenciamentos efetuam a máquina abstrata. No que concerne ao socius, a crença atua como força de repetição, também com graus variáveis de estratificação. Se o desejo atua como força de inscrição, a crença atua como força de seleção das inscrições anteriores e das ainda por vir. Mas esta seleção só se efetua a partir da própria inscrição, pois como afirmado, são um mesmo agenciamento.

Propomos aqui esta retorsão da crença em relação ao seu conceito na sociologia de Tarde, uma vez que a diferença também atualiza o pensamento. E essa seleção, como força positiva do socius é o que possibilita as repetições no virtual, pois dá testemunho do Tempo intensivo313. Ademais, em seu sentido etimológico, a crença está relacionada a uma expectativa futura, o que nos permite tal retorsão, mas também com sua mudança de natureza no próprio conceito.

Como se viu, é o mais desterritorializado que tende à territorialização. Por isso se pode afirmar que a crença, no que concerne ao socius, é uma transversal do tempo do agenciamento, pois permite a divergência ou a convergência, conforme os próprios agenciamentos.

(...). O que mantém junto todos os componentes são as tranversais, e a própria transversal é apenas um componente que assume o vetor especializado de desterritorialização. Com efeito, não é pelo jogo das formas que enquadram ou das causalidades lineares que um agenciamento se mantém, mas por seu componente mais desterritorializado, por uma ponta de desterritorialização, atualmente ou potencialmente (...). O agenciamento se compõe pelo componente mais desterritorializado, mas isto não quer dizer indeterminado (...). Certo componente que entra num agenciamento pode ser o mais determinado, e até mecanizado; nem por isso ele dá menos “jogo” àquilo que ele compõe, favorece a entrada de novas dimensões e meios, desencadeia processos de discernibilidade, de especialização, de contração, de aceleração que abrem novos possíveis, que abrem o agenciamento territorial para interagenciamentos314.

E se aqui o problema é concernente ao espaço diagramático, a transversal do tempo da crença no agenciamento, de sua vez, é de onde erigem os problemas das distribuições da diferença, nestas dimensões e meios que favorece, e os processos que desencadeia, e por isso “(...) toda questão é ontológica e distribui ‘aquilo que é’ nos

       313

“(...). Só produzimos alguma coisa de novo com a condição de repetir uma vez do modo que constitui o passado e outra vez no presente da metamorfose. E o que é produzido, o absolutamente novo, é, por sua vez, apenas repetição, a terceira repetição, desta vez por excesso, a repetição do futuro como eterno retorno”. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. p. 158.

314

problemas. A ontologia é lance de dados – caosmos de onde o cosmos sai315”. Se há seleção, por força do Eterno Retorno, há também o que é eliminado que é o negativo, as semelhanças e o Mesmo, nas afirmações do jogo do acaso.

(...) É neste ponto extremo que a linha reta do tempo torna a formar um círculo, mas singularmente tortuoso (...), – precisamente o eterno retorno, no sentido em que este não faz com que tudo retorne, mas, ao contrário, afeta um mundo que se desembaraçou da deficiência da condição e da igualdade do agente para apenas afirmar o excessivo e o desigual, o interminável e o incessante, o informal como produto da mais extrema formalidade316.

Disso resulta que também a crença é produção, produzida enquanto se produz. A crença e o desejo são linhas emaranhadas no socius, forças que não são contrárias, mas diferenciais enquanto se produzem. Por isso, positivas, pois afirmam a diferença em si e naquilo que retorna. Se o desejo é criação, a crença é a seleção das socialidades.

A crença como força do tempo intensivo virtual, será agenciada pela máquina desejante como tendência de seleção, força capaz de fazer retornar a diferença no atual, como pura diferenciação. A diferença elevada à enésima potência. O socius assim, se abre ao futuro intensivo admitindo novas inscrições desejantes.

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