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A dobra interior: sobrecodificar – equalizar – estriar 168 

CAPÍTULO 4: NUMISMÁTICA 164 

4.1 URSTAAT: DENTRO E FORA 165 

4.1.1 A dobra interior: sobrecodificar – equalizar – estriar 168 

Todo agenciamento é territorial, e as forças no jogo do poder se agitam nessa captura que ensejam os Estados. Não que esta tendência seja determinada de antemão, mas as matérias de conteúdo e de expressão que perpassam o phylum deste jogo podem sofrer desacelerações, sufocamentos, paradas. A forma-Estado é o resultado desse desequilíbrio fundamental de dois polos que entram em ressonância para ganhar consistência interna numa máquina despótica, seja dos procedimentos de magia pela captura do nó, seja da

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soberania dos pactos jurídicos. Mas estes polos já coexistem com uma exterioridade que é a da máquina de guerra, que não deixa de conjurar estas formações como linha de fuga404.

Por isso não há como estabelecer uma evolução do movimento dessas forças, como se houvesse uma contraposição e/ou relação de progresso entre selvagens/bárbaros/civilizados. Tudo se passa no devir do eterno retorno da diferença, onde as potências são postas em jogo pelos agenciamentos dos fluxos das matérias da multiplicidade do virtual. E já não é o próprio termo Estado quem indica seu estatuto, na face atual dessa potência como estado de coisas? Mas é também por isso que este movimento preciso da dobragem que laça e captura o que parece definir a forma-Estado e distingui-la das demais nas relações de forças dos jogos de poder.

A problemática das relações de forças no que concerne ao virtual dão testemunho de um espaço diagramático, e que ao se atualizarem mudam de natureza. Mas esta mudança depende da dramatização intensiva que os agenciamentos maquínicos ensejam nos estratos. Esta dependência, de sua vez, não significa uma prévia direção de organização, pois já se sabe, trata-se na verdade da dupla articulação que sempre se dá de forma transversal entre os estratos e é imanente ao processo produção/produzido. Disso resulta que as formas de atualização dessas relações de forças são da ordem da variação.

A forma-Estado é a atualização que foi tomada por um agenciamento territorial despótico de sobrecodificação que tende a unificar os polos de multiplicidades numéricas, mas já na ordem métrica das relações, conjurando a potência numerante das forças em relação, capturando-as. Esta captura efetua uma máquina de signos e uma máquina de ferramentas totalmente distintas da máquina de guerra nômade. O problema da soberania surge daí, onde esta unidade de composição está em jogo, uma vez que a exterioridade da máquina de guerra se insinua por toda parte mesmo quando o Estado dela se apropria e a transforma em instituição militar405. É que se esta potência numerante persiste como

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“(...). Não se trata, é claro, de uma síntese dos dois, de uma síntese de 1 e de 2, e sim de um terceiro que vem sempre de outra parte, e atrapalha a binaridade de ambos, não se inscrevendo nem em sua oposição nem em sua complementaridade. Não se trata de acrescentar sobre uma linha um novo segmento aos segmentos precedentes (um terceiro sexo, uma terceira classe, uma terceira idade), mas de traçar outra linha no meio da linha segmentária, no meio dos segmentos, e que as carrega conforme velocidades e lentidões variáveis em um movimento de fuga ou de fluxo”. DELEUZE, Gilles. et. al., Diálogos. p. 152.

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  De uma perspectiva que já envolve a problemática da relação da forma-Estado com a guerra, a industrialização e a violência, mas que, no entanto, não chega a abordá-las como relação diferencial, confira- se: GIDDENS, Anthony. O Estado-nação e a violência. Segundo volume de uma crítica contemporânea ao

materialismo histórico; trad. Beatriz Guimarães. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

exterioridade, é a própria captura que tende a não se efetuar, a não alcançar seu gradiente de consistência capaz de ensejar a forma-Estado.

Daí muitas consequências advirão tanto no que concerne a tais relações de forças, quanto a como serão apreendidas e elaboradas as formas atualizadas.

(...). Não é mais o Estado que supõe comunidades agrícolas elaboradas e forças produtivas desenvolvidas; ao contrário, ela se estabelece diretamente num meio de caçadores-coletores sem agricultura nem metalurgia preliminares, e é ele que cria a agricultura, a pequena criação e a metalurgia, primeiro sobre seu próprio solo, depois os impõe ao mundo circundante. Não é mais o campo que cria progressivamente a cidade, é a cidade que cria o campo. Não é mais o Estado que supõe um modo de produção, mas o inverso, é o Estado que faz da produção um “modo”. As derradeiras razões para se supor um desenvolvimento progressivo se anulam406.

Disto não se concluiria, de sua vez, um primitivismo primitivo, como se algo preexistisse como causa e uma forma surgisse como consequência. Há aqui uma relação complexa temporal de envolvimento/desenvolvimento em relação de simultaneidade, entre vetores centrífugos e centrípetos dessas relações de forças que ganham consistência no momento mesmo em que se formam. Por isso não há porque perguntar sobre as origens, e por isso as relações não são previsíveis, nem determinantes.

De outro lado, há traços comuns na forma-Estado que dão testemunho de suas distinções como aparelho de captura. É que diferentemente das formas nomádicas e mesmo urbanas, o Estado sobrecodifica os códigos, estratifica os espaços e hierarquiza as relações numa instância transcendente que faz operar nos agenciamentos maquínicos, transformando signos em significações (significados/significantes) e máquinas em mecanismos (instrumentos/aparelhos).

É no processo desejante de estriamento, que faz das relações de forças dos jogos de poder a captura nessa dobragem, que dá testemunho da forma-Estado. Por isso no nível diagramático tudo está complicado na multiplicidade virtual. Daí também, como já vista, a questão do discurso psicanalítico ser agenciado como oficial para explicar este processo, uma vez que da ordem da sobrecodificação (edipianizar as relações subjetivas e de poder), dando ensejo a uma fundamentação significante das relações de forças. “(...). Por isso, sobre a linha de segmentaridade dura, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a máquina abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o aparelho de Estado que efetua essa máquina407”.

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DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 5, pp. 117-118.

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É, pois no nível da intraconsistência que se vê erigir um plano de organização que dará testemunho das binarizações dialéticas (Hegel), na constante e mesmo obcecada busca pela harmonização (já desde Leibniz, passando pelos juízos kantianos, e mesmo a síntese hegeliana), pela interpretação a partir do modelo e do aprisionamento do sujeito (cidadão... ouvem-se aí os ecos da polis?) na tirania do Eu penso.

Vê-se muito bem como deve ser pensada a fórmula jurídica Estado de Direito, uma vez que é a sobrecodificação significante da potência numerante da máquina de guerra que se tenta apropriar nesse regime de estratificação em que as relações de forças estão territorializadas nessa máquina despótica, apropriação esta que a transforma em instituição militar, e que nesse agenciamento pode inclusive se cristalizar em máquina de morte institucionalizada como nas formações totalitárias que atravessaram todo o devir do século XX. A geometria plana da morte!

E não é no mínimo curioso que, já em Gênesis408 haja esta inquietante referência divina a seus exércitos, e confirmada em Salmos409, inclusive na afirmação de que tais coisas foram criadas pelo poder da palavra (logos)? E não há, ainda, um livro todo sobre a potência numérica (Números) que dá testemunho do estriamento por que deve passar o espaço nômade que fica implícito como o que deve ser submetido ao cálculo divino? Portanto, é no momento mesmo da criação de um cosmos (organização) que se vê surgir esta reterriotorialização da máquina de guerra que se insinua como exterioridade que deve ser conjurada pela forma subordinada em determinações métricas ou dimensões geométricas.

E não será também bem por isso que, quando de suas análises sobre Foucault, Deleuze invocará o diagrama numa topologia em que o enunciado e o visível é que darão ensejo ao estratificado nas relações de forças? Ou seja, é neste mesmo lance de dados do fiat divino que se institui pela palavra e pela luz a distribuição das forças no espaço estriado que territorializa o caos nas relações estratigráficas e nas estratégias nos jogos de poder.

Ora, não será na linhagem de Caim que se verá nascerem as organizações de Estado, uma vez que dela seguirão metalúrgicos e artistas, portanto nômades por excelência; mas, justamente daquele que pactua com a potência e lhe obedece de antemão: é Sete quem dará testemunho de um sedentarismo territorial em sua linhagem que será

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“Assim, os céus, e a terra, e todo o seu exército foram acabados”. Gênesis, 2, 1. Bíblia de estudo pentecostal: antigo e novo testamento; trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: CPAD, 1995. p. 34.

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“Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e todo o exército deles, pelo espírito da sua boca”. Salmos, 3, 6.

desterritorializada pelo grande dilúvio do qual Noé será o reterriotorializador desse mesmo agenciamento de aliança: de Noé o lavrador, até Abraão do território.

Se num primeiro momento foi a função nômade quem teve o privilégio da Aliança, vê-se que há aí mais uma retorsão, pois é na linhagem de Caim410 que primeiramente se viu a função de lavrador operar, função esta depreciada pelo divino, que não aceitou suas ofertas tendo privilegiado o nomadismo de Abel; ao passo que Noé que descende da linhagem de Sete cujo filho Enos será o instituidor da função sacerdotal (cf. Gênesis 4, 26), é quem dará ensejo, após o dilúvio, da retomada da função agricultura, plantando vinhas, em suma, agenciamento dionisíaco! E toda a conjuração do que se relaciona com a terra ainda não estriada, desde Eva até Canaã, parece confirmar o dionisíaco como a parte do mal no mito ocidental. Inclusive no episódio de Babel, quando se via aí ficar estabelecida uma unidade política, mas pelo estatuto da autonomia, uma vez mais deverá ser objeto de conjuração divina. Ou a obediência à Lei, ou a sanção arbitrária (violência legítima) inerente a toda Lei!

O poder deve sempre estar submetido à obediência para que possa se instituir na forma-Estado. Veja-se que a mudança de nome de Abrão para Abraão significa uma nova relação, um novo pacto, um novo logos. E é a relação com a terra que vai mudar de estatuto, passando a ter a forma jurídica do pacto instituído pela posse perene constituída em território. Mas há aí um novo regime que captura o próprio pacto, uma vez que não se trata de relações de mesma potência. E é a potência da vida que agora deve ser submetida a este regime de conjuração da autonomia.

Fazer com que o absoluto apareça num lugar – não é esta uma característica das mais gerais da religião (sob a condição de, em seguida, debater a natureza da aparição e legitimidade ou não das imagens que a reproduzem)? Mas o lugar sagrado da religião é, fundamentalmente, um centro que repele o nomos obscuro. O absoluto da religião é essencialmente horizonte que engloba, e, se ele aparece num lugar, é para fixar ao global o centro sólido e estável. Notou-se com frequência a função englobante dos espaços lisos, deserto, estepe ou oceano, no monoteísmo. Em suma, a religião converte o absoluto. A religião, nesse sentido, é uma peça do aparelho de Estado (e isto, sob as duas formas, do “liame” e do “pacto ou aliança”), mesmo se ela tem o poder próprio de elevar esse modelo ao universal ou de constituir um Imperium absoluto411.

É por isso que a tese de que o Estado já nasce todo pronto parece se confirmar uma vez que a mudança opera de um só lance de dados. E é também uma mudança

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Segundo Jacques Attali o significado de Caim é adquirir ou cobiçar; ao passo que Abel remeteria ao nada, ao sopro, à fatuidade, à fumaça. In: ATTALI, Jacques. Os judeus, o dinheiro e o mundo; 3 ed., trad. Joana

Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Editora Futura, 2002. p. 22.

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no pensamento que passa a funcionar como interioridade de sobrecodificação em que novas leis daí advirão.

Vê-se nitidamente o que o pensamento ganha com isso: uma gravidade que ele jamais teria por si só, um centro que faz com que todas as coisas, inclusive o Estado, pareçam existir graças à sua eficácia ou sanção própria. Porém, o Estado não lucra menos. Com efeito, a forma-Estado ganha algo de essencial ao desenvolver-se no pensamento: todo um consenso. Só o pensamento pode inventar a ficção de um Estado universal por direito, de elevar o Estado ao universal de direito. É como se o soberano se tornasse único no mundo, abarcasse todo o ecúmeno, e tratasse apenas com sujeitos, atuais ou potenciais. Já não se trata de poderosas organizações extrínsecas, nem dos bandos estranhos: o Estado torna-se o único princípio que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado412.

Esta estriagem territorial não para de ser atravessada pelos vetores de desterritorialização, mesmo nos relatos divinos, com as tribos nômades que sempre são identificadas como ímpias, em contraposição aos povos escolhidos, rebatidos já nesse horizonte sedentário por excelência, e dando por isso mesmo testemunho da exterioridade da máquina de guerra, e sua potência numerante (mais adiante esta relação será explicitada). Esta contraposição não é, contudo, em si mesma absolutamente determinante, pode haver mesmo uma máquina de guerra na religião, como o demonstram, por exemplo, todos os vetores de desterritorialização das Cruzadas, onde não só as migrações populacionais, mas mesmo um deslocamento intensivo se viu operar e transformar, tanto os territórios, como os afectos do que estava propriamente em jogo na guerra; havia um sentido de localidade da luta contra os Infiéis, tanto quanto a importância da conquista geográfico-territorial.

A história das Cruzadas está atravessada pela mais espantosa série de variação de direções: a firme orientação dos lugares santos como centro a ser atingido parece frequentemente apenas um pretexto. Mas seria equivocado invocar o jogo das cobiças ou dos fatores econômicos, comerciais ou políticos, como se houvessem desviado a cruzada de seu puro caminho. É precisamente a ideia de cruzada que

implica em si mesma essa variabilidade das direções, quebradas,

cambiantes, e que possui intrinsecamente todos esses fatores ou todas essas variáveis, quando faz da religião uma máquina de guerra, e, ao mesmo tempo, utiliza e suscita o nomadismo correspondente413. Com os itálicos no original.

É neste sentido que esta interioridade está sempre em relação com o Fora do pensamento e que em decorrência dos agenciamentos e as transversais de

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DELEUZE, Gilles, et. al. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 5, p. 44.

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desterritorialização/reterritorialização que lhes atravessam, constituem sobrecodificações e institucionalizam as relações de forças já como forma-Estado que captura inclusive o saber. E é também nessa captura do saber que novos regimes de signos podem operar no diagramático da máquina abstrata de onde se vê erigir as matérias e as formas de conteúdo e de expressão nesse estriamento que aprisiona toda potência submetendo-a ao disciplinamento e à arborização hierárquica também no pensamento.

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