• Nenhum resultado encontrado

A Estrada do Silêncio

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 46-65)

Por:

Rangel Elesbão

Inspirado no caso Christopher Chandler, ocorrido em 11/12/2002.

Olivia estava sonolenta. Piscava os olhos tentando manter a atenção voltada na estrada. Dirigia desde o início da manhã, e agora já estava cansando. Sua namorada Barb, dormia no banco do carona.

A estrada era uma longa reta asfaltada e pouco movimentada, naquela hora da madrugada. Era costeada por uma região pantanosa, com árvores e lagos.

— Estacione no próximo motel para dormirmos! — disse Barb com os olhos fechados, se remexendo no banco.

— Sim! Mas não passamos por nada na estrada, há tempos... A cidade mais perto fica a uns trinta quilômetros daqui, aguento dirigir até lá.

Juntas há cinco anos, elas haviam planejado sua viagem minuciosamente, para fazer turismo na região. Depois de meses de

planejamento, finalmente conseguiram conciliar suas férias, e concretizar seus planos.

— A neblina está ficando mais densa...

— Deve ser a formação dos vapores vindos do pântano...

— Ainda bem que a luz da lua, ajuda a iluminar o caminho...

— Pare o carro! Estou apertada!

Olivia reduziu a velocidade, e estacionou no acostamento.

Enquanto Barb descia correndo, se encostou na porta acendendo um cigarro.

— Tem um carro vindo em nossa direção. É o único que vejo desde a ultima cidade que passamos...

Barb levantou a cabeça e viu as luzes dos faróis se aproximando lentamente.

— Que estranho... Porque será que está tão devagar?

— Que sinistro! O motorista deu a seta para estacionar... Está vindo atrás de nós!

— Vamos sair daqui! — disse Barb recolocado a roupa, e entrando no carro.

O carro parava atrás delas no acostamento. Um Cadillac preto, coberto de lodo e musgo do pântano. O vidro do para-brisas estava tão sujo, que Olivia só conseguiu ver o vulto do corpo do motorista.

— E se for alguém precisando de ajuda?

— Ande, Olivia! Estou com medo! — ela falou, vendo o carro parado atrás delas.

Olivia ligou e arrancou. Logo, o casal já trafegava sozinho na estrada novamente.

— O Cadillac parecia ter mergulhado no fundo do pântano...

— Pare de falar nisso! Ainda estou toda arrepiada!

— Mas você não viu nada, o motorista nem sequer desceu do carro...

— É isso, que torna tudo mais assustador! Não saber quem estava lá, e o que queria... Esse algo desconhecido, que me deixa encucada...

Olivia segurou a sua mão e apertou.

— Eu a protejo! — disse.

De repente, as luzes alta dos faróis se acenderam, atrás delas.

As duas não contiveram seus gritos de susto.

— Está bem atrás de nós, de novo!

— Ele estava com os faróis apagados, o tempo todo!

Olivia pisou no acelerador, tomando distância.

— Corre! Vai amor, acelera!

— Tô indo o máximo que eu posso, Barb!

— Ele está chegando muito perto!

O Cadillac acelerava e quase encostava ao lado de Olivia, que já estava na sua velocidade máxima. Quando as duas janelas, ficaram lado a lado, ela pode ver o lodo escorrendo pelos vidros e lataria, misturados com algas, folhas e detritos. Ainda estava molhado, como tivesse acabado de se sujar.

— O que você quer com a gente? — gritava Barb, histérica.

Mas sua namorada conseguiu acelerar e pegar mais velocidade na descida do asfalto, e ganhou vantagem na perseguição.

Logo o Cadillac sujo de lodo, já estava mais próximo, retomando a distância perdida.

— Ele de novo, Olivia! Como esse carro velho, consegue andar tão depressa?

— Agora quem está ficando com medo, sou eu!

Subitamente, elas sentem uma batida atrás do carro.

— Está batendo no para-choque!

Olivia acelerou, pisoteando o pedal. Mas não adiantou. O outro carro investiu com força contra elas, batendo e as empurrando.

— Esse louco quer empurrar a gente para fora da estrada!

— Ele quer nos empurrar para dentro do lago, Barb!

Quando acabou de falar, Olivia viu ao longe outro carro vindo na sua frente. Parecia se aproximar em alta velocidade, e dava vários sinais com o farol alto.

Barb sentiu seu sangue gelar.

— É outro carro! Estou com medo! Vamos ser assaltadas!

— Deixe de ser histérica, Barb! Para de gritar, ou perco a direção e capotamos.

— Então continue correndo!

Luzes coloridas se acenderam em cima do veículo vindo na sua frente, piscando intermitentemente.

— É uma sirene! É um carro da polícia, Olivia!

Quando olharam no espelho retrovisor, viram o Cadillac atravessado no meio da pista. Tinha parado de persegui-las.

— Ele ficou com medo e parou!

A viatura da polícia fez sinal para que elas encostassem no acostamento.

— Aquele Cadillac está nos seguindo faz tempo, bateu atrás de nós!

— disse Barb, assim que desceram do carro.

O policial direcionou o facho da sua lanterna para o Cadillac.

Estava parado no meio da pista, com os faróis acesos.

— Que sorte encontrar a viatura...

— Não é sorte! — o policial interrompeu Olivia — Estamos fazendo buscas nessa região. Recebemos ligações de alguns motoristas, relatando ser perseguidos por um Cadillac Fleetwood, preto, modelo 1949...

O policial sacou a arma do coldre e a empunhou. Caminhou lentamente na direção do veículo.

— Desça do carro, com as mãos na cabeça! — gritou.

Nenhum movimento no Cadillac. Apenas o barulho do seu motor ligado.

— Desça com as mãos...

Olivia e Barb se olharam assombradas. Pareciam compartilhar o mesmo pensamento:

— Se ele tiver armado? — quis saber Barb.

— Ele já teria atirado... — falou o policial.

O casal permaneceu abraçado, junto ao seu carro. Barb tremia incontrolavelmente.

Quando chegava na frente do capô, os faróis do Cadillac começaram a piscar, dando sinais de luz alta e baixa.

Parado ao lado da janela, apontou a arma, e novamente ordenou:

— Saia com as mãos pra cima!

Silêncio total na estrada.

De repente, o estrondoso som da buzina dispara.

Num pulo, o policial atira, assustado; estilhaçando o vidro.

— Que merda é essa? — ele falou num fio de voz, enquanto abria a porta e dava um salto para trás. Arregalou os olhos, horrorizado com o que via.

As duas correram em direção ao policial, que chamava reforços pelo rádio.

Barb deu um grito rouco, e se abraçou em Olivia, escondendo o rosto no peito dela.

Pela porta aberta, elas viram o que as perseguia. Sentado no banco do Cadillac, estava o cadáver de um homem em estado de decomposição.

Pedaços de carne pútridas e de coloração esverdeada, desprendiam-se dos ossos. O cheiro adocicado de carne podre era nauseante, e rapidamente se espalhou quando a porta foi aberta. Havia um saco de plástico amarrado na sua cabeça, e o seu corpo estava imerso em lodo e sujeira do fundo do pântano.

— O identificamos pela placa do veículo. O nome dele era Robert Baxter. Seu irmão registrou seu desaparecimento, há cinco meses atrás...

Parece ter emergido do fundo de um pântano...

— Mas como? — balbuciou Barb. — Como um esqueleto, nos perseguia daquela forma?

Antes que pudesse imaginar uma explicação, Olivia sentiu um calafrio percorrendo todo o seu corpo.

A Morsa

Por:

Mariano Storti

Incrédulos e com uma expressão de terra arrasada, os pais de Camila fitavam um álbum de fotografias. Nele, a garota, invariavelmente, aparecia com um largo sorriso. Ela tinha apenas...

— Meu Deus! Por que fizeram isso com ela? Quem fez isso com ela? — perguntavam-se, chorosos, aqueles pais que, desde que Camila se fora, passaram a ser feitos de carne, ossos e lágrimas. Eles estavam vivos por fora. E mortos por dentro.

A garota desaparecera durante a festa de formatura. Uma semana depois, seu corpo fora encontrado em um matagal por um grupo de jovens que estava fazendo trilha no local. Camila tinha o pescoço quebrado. Na fratura, houve um deslocamento da glote, impedindo a passagem do ar.

Ela morrera sufocada. Estava nua e com sinais de violência sexual. O crime abalou aquela pequena cidade, que até então carregava uma gostosa monotonia e um aprazível sossego em suas vielas.

Camila não iria mais para a faculdade. Camila tinha apenas...

Os policiais iniciaram as investigações. Foram ao local onde o cadáver padecia com a ação do tempo. Colheram depoimentos dos pais, dos outros estudantes, dos convidados do baile. Os estudantes e os convidados pouco se lembravam daquela noite. Haviam bebido.

Os investigadores analisaram fotografias. Caçaram pistas. Apesar do labor investigativo, possuíam mais perguntas do que respostas. O mistério os encolerizava. O mistério atormentava os habitantes da pequena e outrora pacata cidade.

— Haveria na cidade outro crime tão cruel como esse? — questionavam-se os moradores durante as missas, na quitanda, na praça.

— Os policiais descobririam quem matou Camila?

— Ou o assassino confessaria seus crimes?

Sim, haveria outros crimes cruéis na cidade.

Não, os policiais, inexperientes com tão vis homicídios, não descobririam a identidade do assassino.

Sim, o assassino se entregaria. Mas antes disso, mataria mais algumas pessoas. Pretendia deixar um legado de sangue.

Seu Dimitri era um septuagenário de cabelos brancos, olhos azuis-turquesa, nariz aquilino e queixo pontiagudo. Simpático e conversador, possuía um sotaque peculiar. Adorava uma dose de vodca antes do almoço.

— É para abrir o apetite — dizia aos seus clientes antes de sorver o líquido em um gole só e bater o pequenino copo de vidro no balcão de carnaúba que ele mesmo fizera. Seu Dimitri detinha algum conhecimento de marcenaria e, às vezes, criava alguns móveis.

Após a bebida escorregar goela abaixo, queimando a garganta, seu Dimitri desfrutava do almoço. Apreciava em demasia uma sopa de peixe, com cogumelos, pepinos, azeitona, batata, creme de leite e repolho. Fazia a refeição no trabalho mesmo e sempre a interrompia quando chegava algum cliente.

O velho tinha uma simplória mercearia onde era possível comprar desde frutas e legumes a sabão em pó e amaciantes de roupa. O pequeno comércio servia mais para a distração de seu Dimitri do que para o lucro, que, na maioria das vezes, era irrisório. No entanto, era o suficiente para a sobrevivência. Não necessitava mais do que isso.

O corpo de seu Dimitri foi enterrado com o caixão fechado. O rosto do idoso ficara esfacelado depois de incontáveis golpes de martelo e de foice. Um policial que costumava comprar pães e leite fresco na mercearia antes de voltar para a casa encontrou o defunto, que tinha os miolos no chão misturados à sopa de peixe. Sobre o balcão, estava escrito

“De volta para sua terra” com letras recortadas de páginas de revista.

Seu Dimitri era viúvo. Não tinha filhos. Poucas pessoas, na maioria fregueses que haviam se tornado amigos, foram ao velório daquele velho que distribuía simpatia e sempre uma boa história.

Depois de Camila, uma garota alegre de apenas..., agora um idoso, dono de uma comezinha mercearia. Aparentemente dois brutais assassinatos sem qualquer elo.

— Será que esses dois homicídios não tem nenhuma relação? — interrogavam-se os fregueses de seu Dimitri

— Uma garota...e um idoso. Quem está matando nossa gente?

— E o que a polícia está fazendo? Quem será a próxima vítima?

Os investigadores continuavam seu trabalho. Sim, haveria outra vítima. O pânico na pequena cidade recrudesceu mais ainda.

— Senhor, o salão não está aberto ainda. Ainda está muito cedo — disse o barbeiro para um cliente, que batia à porta.

— Mas eu só queria fazer a barba. Daqui a pouco, tenho um compromisso. Prometo-lhe uma gorjeta muito boa.

O barbeiro suspirou.

— Está bem, então. Entre, por favor.

— Obrigado. Posso deixar minha sacola ali? — pediu o cliente, apontando sobre uma mesa que ficava no centro do salão.

O barbeiro deixou o cliente passar, olhou para a rua. Não viu ninguém e fechou a porta novamente. Era muito cedo. Estava ainda escuro. A loja demoraria para abrir. As persianas pretas estavam abaixadas.

O cliente sentou-se confortavelmente numa cadeira acolchoada de tecido preto. Logo em seguida, o barbeiro o cobriu com uma capa branca

e reclinou a cadeira. Enquanto preparava a espuma, o barbeiro iniciou uma conversa.

— Você não é daqui, é?

— Não, não sou.

— Tem nome?

— Morsa.

— Morsa? Como aquele bicho?

— Exatamente, como aquele mamífero que vive em águas geladas e tem presas enormes.

— Curioso, muito curioso.

— Eu sou Morsa — disse o cliente, sorrindo de um jeito sinistro.

O barbeiro besuntou de espuma a face do cliente. Logo em seguida, já estava passando uma navalha extremamente afiada com incríveis cuidado e habilidade.

— Vê estas fotografias?

O cliente meneou a cabeça da maneira mais suave que pôde para que a navalha não o ferisse.

— São de alguns fregueses antigos. Viraram amigos.

A essa hora, a lâmina deslizava na altura da jugular direita do cliente, que estava imóvel.

— Sabe, o salão é um excelente lugar para compartilhar histórias.

Depois que eu acabar, se você quiser, pode me contar uma.

O freguês concordou, erguendo a mão e o polegar esquerdos.

O barbeiro prosseguia o escorregar da navalha na pele do cliente.

Minutos depois, anunciou:

— Pronto, seu Morsa. A barba que havia aqui não há mais.

O cliente passou sua mão áspera pelo rosto agora liso e se aproximou do espelho. Aprovou o serviço e entregou ao barbeiro uma nota graúda.

— Fique com o troco.

— Muito, muito obrigado — agradeceu o barbeiro. Virou de costas e se dirigiu ao balcão para guardar a nota.

Morsa, agilmente, retirou um vidro com clorofórmio e um lenço de algodão do bolso. Abriu o recipiente e encharcou o pano. Seguiu o barbeiro e o segurou pelo pescoço, pressionando a junção do antebraço com o braço na garganta dele. Em seguida, comprimiu o úmido lenço nas narinas do barbeiro. Ele desmaiou.

Algum tempo depois, o barbeiro já estava com as mãos amarradas na poltrona onde se enxaguavam os cabelos depois do corte. Na boca, um pano o impedia de gritar.

— Aqui está a sua gorjeta.

Morsa retirou o pano e, rapidamente, introduziu a ducha na boca do barbeiro. Em seguida, ligou-a. A água começou a descer pela garganta, fazendo-o se debater. O líquido passou pela traqueia, chegou aos pulmões e ao estômago. O barbeiro morreu afogado.

O assassino fazia mais uma vítima. Após Camila, uma garota alegre de apenas..., um idoso, dono de uma pequenina mercearia, agora um

barbeiro, que obtinha o sustento em um reles salão de beleza. Qual era a relação entre esses assassinatos que apavoravam a pequena cidade? Era isso que intrigava seus habitantes. Essa era a pergunta a qual as autoridades policiais ainda não tinham a resposta.

— Haveria outros crimes bárbaros como esse? — interrogavam-se homens e mulheres, que, por medo, evitavam sair de suas residências.

— A polícia, enfim, descobriria quem estava fazendo aquela barbárie?

— Ele se entregaria?

Morsa colocou na sacola o vidro de clorofórmio, os panos e as cordas que amarraram o barbeiro. Deixou o salão. Ainda estava muito cedo. Ainda estava muito escuro. A cidade ainda dormia. E ele foi ao seu compromisso. Caminhou até a delegacia. O assassino revelaria sua identidade.

...

— Bom dia — cumprimentou Morsa.

— O que deseja? — perguntou o policial que estava próximo à entrada da delegacia.

— Eu sou Morsa.

— Sim, e daí?

— Sou o assassino em série que vocês estão procurando.

— Quê?! — assustou-se o policial, retirando a arma do coldre e apontando para o homicida.

— Não se mexa. Fique aí parado — ordenou o policial.

— Se quisesse fugir, não teria vindo aqui, não acha? Tem cada policial imbecil... — desdenhou Morsa.

Em pouco tempo, o assassino estava algemado. Logo depois, conversava com o delegado na sala de depoimentos. Morsa explicava o que todo assassino em série tem para cometer os crimes: sua motivação.

— Gosta de música, doutor?

— Por que a pergunta?

— Gosta ou não gosta?

— O que tem isso a ver com seus crimes? — questionou, intrigado, o delegado.

— Ora, ora, meu amigo. Tudo, absolutamente tudo.

— Não sou seu amigo.

Morsa sorriu, jogando a cabeça para trás.

— Posso fumar? — pediu Morsa, já sabendo a resposta.

— Claro que não.

— Entendo. Mas o doutor não me disse se gosta ou não de música?

O delegado suspirou.

— Todo mundo gosta de música.

— Exato! — concordou, apontando para o delegado, os indicadores das mãos ainda algemadas.

E continuou:

— E de que tipo de música o delegado gosta?

— Olha...acho que sou eu que faço as perguntas aqui.

— Mas estávamos evoluindo, doutor...garanto que lhe direi o porquê de ter matado essas pessoas inocentes. Então, de que tipo de música o delegado gosta?

— Rock...os mais antigos, de preferência.

Morsa sorriu.

— Minha pergunta foi inútil. Eu já tinha a resposta. Sei que ouve rock no seu carro, na sua casa...Por isso, estou me entregando para o senhor.

— Nossa, quanta honra! Fico lisonjeado com sua consideração.

— Imagino que queira saber qual foi minha motivação

O delegado apenas balançou a cabeça, batendo a ponta dos dedos na mesa.

— Bem, deve ser algo relacionado à música... — supôs o delegado.

— Isso mesmo. Posso tomar um café? — pediu o assassino.

— Não. Desembucha logo.

Morsa pigarreou e começou a falar:

— Sabe, delegado, as pessoas não sabem apreciar uma boa música.

E rock, ah, o rock...definitivamente é um excelente tipo de música.

Concorda, delegado?

— Sim. Aonde você quer chegar?

— E as pessoas, caro delegado, além de não apreciarem uma boa música, têm memória curta. Com o tempo, esquecem-se das coisas. Hoje, ninguém mais ouve a maior banda de rock...

— O senhor se refere aos Beatles?

— Claro!

— Também sou fã deles. Mas qual a relação de seus crimes com os Beatles?

— Cometi os crimes por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr.

— Explique-se melhor.

— Matei aquelas pessoas para que, pelo menos, nessa pequena cidade, os Beatles sejam lembrados eternamente.

— Não entendi.

— Ultimamente, venho percebendo que as pessoas estão ouvindo músicas de qualidade, vamos dizer, duvidosa, para ser educado. Não citarei aqui quais canções são essas, mas pessoas de bom gosto, como nós, não as escutam de jeito nenhum.

— Afinal, fale logo o porquê de ter matado aquelas pessoas inocentes.

— Bem, para que os Beatles jamais sejam esquecidos, os assassinatos que cometi estão relacionados às músicas dos quatro garotos de Liverpool. Por exemplo, a Camila. Vamos começar por ela. Camila era uma garota de apenas...

— 17 anos — interveio o delegado, certificando-se nos autos

— Correto, meu nobre delegado. Apenas 17 aninhos. Pronta para ir para a faculdade. Cursar sabe-se lá o quê. Isso não me interessava. Eu estava no baile de formatura. Trocamos uns olhares. Sim, modéstia à parte, sou um cara atraente, não acha?

O delegado estava impassível. Com os braços cruzados e mirando com os olhos pressionados o assassino. Morsa prosseguiu com o relato.

— Ah, o jeito que ela dançava. Tão doce e, ao mesmo tempo, tão provocativo. Pelo menos eu achei. Mas quando eu a vi parada lá...Ela era linda. Consegui atraí-la para um lugar mais reservado. Ninguém percebeu. Aqueles jovens estavam todos bêbados. Uns até drogados.

— Um instante, você falou “Quando eu a vi parada lá”? — indagou, apreensivo, o delegado, inclinando o tronco para frente e colocando uma das mãos embaixo do queixo.

— Exatamente — respondeu Morsa, sorrindo, percebendo que o delegado entendera a mensagem.

— I saw her standing there é uma música dos Beatles e significa

“Eu a vi parada lá”.

— Perfeito, delegado. Estamos evoluindo com a elucidação desses terríveis assassinatos que acometeram essa bucólica cidade. Quando eu apodrecer na cadeia, sentirei falta desse lugar — disse o assassino, com uma satisfação tenebrosa.

— E Dimitri?

— Ora, essa é fácil. Dimitri era um velho de origem soviética...

— Back in the USSR — interrompeu o delegado, citando mais uma música dos Beatles, que quer dizer: “De volta à União Soviética”.

— Impressionante, delegado!

— E o barbeiro, seu doente? Não, espere. É o começo de Penny Lane...

— Penny lane there is a barber showing photographs (Em Penny Lane há um barbeiro mostrando fotografias) — cantou Morsa o primeiro verso de um dos clássicos dos garotos de Liverpool.

— Você vai mofar na cadeia. Você é um maníaco!

— Com todo o respeito, doutor, I’m the Walrus (Eu sou a Morsa), de Lennon-McCartney, música lançada no álbum Magical Mystery Tour, de 1967.

— Guardas! Levem esse assassino! Ele ficará preso aqui até o julgamento.

Dois homens levantaram Morsa da cadeira e começaram a arrastá-lo para a prisão. De costas, o assassino perguntou ao delegado:

— Como está a sua esposa, a adorável Rita?

— Do que você está falando?

— Estou falando de uma música dos Beatles chamada Lovely Rita, do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967.

Pouco tempo depois, ao entrar em casa, o delegado não acreditava na cena que seus olhos contemplavam tristemente.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 46-65)