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III – De Volta ao Lar

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 107-115)

Dada a falta de informações, a maioria das pessoas considera a história da Mansão Hideki apenas uma lenda. Mas muitos acreditam que essa ausência possa ser proposital, devido a influência do clã, as autoridades teriam mantido o caso em segredo para não causar temor na população. Seja pelo terrível desfecho ou pelos supostos espíritos que a mansão abriga, pois, dada a religiosidade dos cidadãos, a história desse mal poderia ter uma repercussão muito negativa.

Diário Renascer, p. 8; fevereiro, 2008.

Desci à um quilometro de onde começa as escadarias de pedra, entre as árvores, e lá em cima, no pico do monte, está a mansão. Começo a subir enquanto ouço o vento sussurrar, por entre as copas, sua lamuria que precede uma tempestade. Trespassado o último degrau, tenho a frente o grande portão de ferro e, através dele, posso ver o jardim e seus

canteiros. Assim como o umbral de entrada. As nuvens, nesse momento, começam a se compactar sobre as torres da construção e despejam seu lamento condensada. Abro o portão, que range dado a ferrugem e atravesso o jardim enquanto uma névoa enegrecida passa a dominar minha visão periférica que começa a ondular como em um sonho dantesco. Aperto os olhos fortemente com os dedos, e corro por entre o caminho cujo lajedo está danificado por ervas daninhas. Detenho-me em frente ao velho carvalho. Não lembro muito bem dele, mas tenho fixado na memória a fotografia do corpo, balançando com a brisa. Percebo que a corda ainda está aqui e... o cadáver também. Não consigo segurar o ímpeto e avanço em sua direção, quem sabe Deus para tentar salva-lo.

Contudo, estaco rapidamente ao perceber que seus olhos se abrem, cuja íris e esclera são negras, e focam em mim. Todo o meu corpo se contorce com calafrios, mas tenho minha atenção tomada por um estrondoso barulho. A pesada porta dupla de madeira foi aberta e trespassada pela revoada escarlate, que havia se transformado em um tufão. Retomo minha atenção para o enforcado que, não está mais lá. Sinto uma pressão no ombro, que me faz ficar de joelhos, e grito enquanto tento remover a mão que me agride. Acima, vejo seus olhos incisivos, me encarando com face cadavérica sob o chapéu de feltro negro com aba reta. O frio de seus dedos queima minha carne e começo a ficar tonto, entretanto, percebo a revoada de outrora, atravessando a extensão que nos separa, se chocar com a criatura, me libertando de seu aperto ao arremessa-lo para longe.

Me levanto com dificuldade e começo a rumar para dentro da construção,

pondo a mão esquerda sobre o lugar onde fui ferido, e observo uma silhueta na janela do piso superior. Correndo, atravesso o portal e cambaleio um pouco ao sentir o chão tremer. Atravesso o hall, em direção as escadas, e tomo uma forte pancada nas costas que me arremessa facilmente. Vou de encontro a escadaria e, com o corpo de lado, observo o momento exato em que o grande lustre central se choca com o chão, fazendo ruir a estrutura e abrindo um buraco no piso. As bordas da fissura começam a ceder e as rachaduras se espalham. Levanto, sentindo muita dor nas costelas fraturadas, e começo a subir. No momento exato que galgo o último degrau, uma névoa negra atravessa o umbral, flutuando sobre a cratera em sua forma abissal de face maligna e terno puído. Volto a correr, cambaleando com o tremor constante do ambiente, enquanto me choco com as paredes do corredor, do outro lado, a tempestade rompe uma das vidraças e o vento me atinge o rosto, trazendo estilhaços de vidro que me cortam os braços ao tentar me defender enquanto avanço. — Filho. Meu anjinho. — ouço, vindo das escadas. De súbito, uma porta lateral se abre e sinto uma pressão em meu pulso que me puxa para dentro da imensidão escura.

A lareira está acessa, aquecendo o ambiente ricamente decorado.

Estantes repletas de livros e uma escrivaninha luxuosa decoram o lugar.

Sobre a base da lareira, o brasão da família em alto relevo. Percebo a luz e sinto o calor, mas os braços estão cortados e minhas costelas ainda doem. Quando me dirijo a frente, afim de me encostar em uma das poltronas, a porta é aberta de chofre e o Daniel é arremessado para dentro.

Gritos são proferidos do lado de fora, mas, não consigo discernir o que dizem, ou entender o que está acontecendo. Minha mãe entra em prantos, suplicando.

— Ele vai falar, por favor não o machuque, Ele vai falar....

— Não, não vou deixar que encoste nele seu monstro... que se esconde as vistas de Deus... — então golpes de faca começam a rasgar a carne do meu irmão. — DANIEL!!!! — mas, meu grito morre a garganta.

Minha mãe grita desesperada e avança, mas sofre um golpe no rosto e cai. Ela, então, é agarrada pelos cabelos e arrastada de volta ao corredor.

Tão rápido quanto o vislumbre dessa memória foi o retorno a realidade, quando senti um toque em minha mão direita. Então percebi que o lugar estava um caos, com livros destruídos, teias de aranhas e moveis estragados. Olhei para baixo e dei um passo inquieto para ao lado, ao perceber uma menina de pele pálida, lábios roxos e olhos fundos. Ela me puxou para frente da lareira, apontou para o símbolo e desfez-se no ar, como um punhado de cinzas que desmorona. Empurrei o brasão e ouvi o mecanismo sendo acionado, quando um estrondo abafado me fez virar para a porta, que parecia ser golpeada por um aríete. Então, percebi que uma figura humanoide translucida, utilizava as costas para barrar o acesso. Ele trazia a tez pálida, mas seus olhos eram empáticos, ao passo que de seu corpo brotava sangue de lacerações frontais. Ordenou, como um sussurro, transparecendo uma vontade férrea.

— Vai!

A lareira havia se aberto, a fim de revelar uma passagem, e então desci as escadas enquanto pequenas tochas iam se ascendendo conforme meu avanço. A escadaria era estreita, circundado a estrutura, e cheguei a um túnel. Desci, ofegante e desesperado, enquanto ouvia o eco do confronto entre duas forças que, estranhamente, estavam ligadas a mim.

Ao fim do corredor cheguei em uma porta de madeira, cuja fechadura abri com a chave que achei no mausoléu, e entrei sem ao menos questionar o que encontraria.

— ... por favor senhor, eu quero minha mãe! Me deixa ir embora, por favor. — a criança chorava desesperada, atada nua em uma cadeira ajustada na posição de trinta gruas, o que possibilitou notar que seu anus sangrava. Duas agulhas com mangueiras estavam conectadas as artérias de cada um de seus braços e, por sua vez, conectadas em um aparato que possuía marcadores numéricos. Ao lado, haviam ferramentas de embalsamar sobre uma mesa. Uma seringa flutuante foi em direção ao menino e a agulha lhe perfurou o pescoço. E, ecoando no vazio, eu pude ouvir as palavras. — Calma meu anjinho Gabriel, tudo vai ficar bem.

A imagem se desfez ao piscar dos olhos e pude perceber um ambiente parcialmente destruído. A fissura do teto deixava entrar a precipitação e a iluminação dos raios, que trespassava a parte do telhado que havia ruído com a queda do lustre, este que está sobre o que parece ser uma velha cadeira de dentista. As borboletas atravessam a porta e se dirigem a uma cortina encardida, posta bem a frente de uma luxuosa poltrona, do outro lado do lustre. Corri afoito e puxei a corda lateral que

abriu a cortina para ambos os lados. Nesse momento, senti minha alma se fragmentar, frente a todo o horror que observo. A minha frente, vejo nichos e em cada um deles uma redoma de vidro cilíndrica que traz uma criança nua. Onze ao total, sendo de ambos os sexos, tons de pele e tipos de cabelo. Todas com os olhos vidrados a frente, encarando para sempre o vazio. Seus rostos congelados eram iluminados pelos raios que cortavam o céu, e uma borboleta havia pousado em cada redoma. Não sinto mais dores, não sinto mais o calor do meu corpo, pois, compreendi para o que havia sido guiado. Enquadro minha cabeça com as mãos ao lembrar do meu pai, seu riso, suas palavras e seus conselhos. Vivíamos sob uma égide de mentiras erguida sobre a base da fé e sofrimento alheio, enquanto rezávamos o pai nosso e dormíamos sobre um cemitério de sonhos.

Um impacto me fez rodar sobre o próprio eixo, ao passo que ouvia o choque de vários objetos no chão. A figura que segurava a porta, no piso superior, havia sido arremessada do outro lado da sala, e estava caída sobre os restos de uma mesa. Então pude perceber que de seu peito começou a se tornar visível uma linha vermelha que partia em direção ao meu. Ele encarou o bispo, que adentrava no local. Ouço o barulho de vidro sendo partido e sinto uma chuva de cacos cair sobre mim. Então me arrasto, buscando abrigo no canto esquerdo, a tempo de ver que os cadáveres embalsamados rompiam suas prisões e saltavam dos andares da galeria macabra. Seus olhos emitiam um brilho vermelho, e ouço o estalar de seus corpos ao se moverem desajeitados. Marcham, de

encontro ao inimigo, com seus membros desengonçados e mãos com dedos rígidos, tocam a criatura que emite um urro abissal, me forçando a proteger os ouvidos, enquanto um círculo de luz intensa surge ao redor de onde digladiam. O corpo do bispo começa a se desfazer, nos pontos onde é tocado pelas crianças, transformando-se em cinzas. As borboletas começaram a surgir, saindo dos corpos embalsamados, tornando-se branco prateadas para então desaparecer como poeira estrelar, deixando um círculo de marionetes sem vida.

Fiquei atônito, tentando absorver tudo o aconteceu, abraçando muito forte os joelhos e encarando o vazio com olhar febril. Sinto um afago em meu cabelo e começo a sorrir, ao ouvir, sendo dito como um sussurro. — Bom trabalho, maninho.

“Sei que não deliro, e o Senhor é testemunha disso. A face do mau me acossa, à espreita entre os umbrais dos leitos vazios. Minha esposa definha e meu filho está desaparecido. É Ele, que me persegue, o herege que levou meu anjinho e me desafiou. Eu, que sou o representante escolhido por Deus. Ouço sua voz vilipendiosa e vejo sua face nos espelhos, me acusando, com sua língua bifurcada. Mas, ele não vai vencer, pois possuo a graça e tenho em minhas mãos o poder sobre a vida e a morte. Partirei dessa existência limitante para renascer nos campos da salvação, como legislador, juiz e executor”

Bispo Levi Hideki

Cheguei no início da manhã e não tive dificuldades em ser atendido, o próprio Dr. Megami me deixou em frente a porta do quarto 17 e posso vê-la, pelo vidro, sentada em uma cadeira de rodas observando o jardim através da janela. Notei seus vastos cabelos brancos, muito mais velha do que uma mulher de quarenta e dois anos aparentaria, posta em um roupão cinza. Tinha a face neutra, não demonstrava dor, nem perturbação. Nem sentimentos, apenas a mais pura apatia.

A porta rangeu suavemente quando comecei a abri-la e, de chofre, virou o rosto e me encarou. A íris azul retomou sua coloração e um brilho lhe dominou toda a face, a qual pude notar uma cicatriz. Ergue-se com ímpeto, e a cadeira rolou até chocar-se em um biombo, chorando copiosamente enquanto corre de encontro aos meus braços.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 107-115)