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Por: Paulo Mota

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 152-160)

Olívia, meio sonolenta, pegou o smartphone e observou as horas:

três da manhã. Sentindo sede, foi até à cozinha tomar um copo de água.

Sorveu o líquido e notou algo estranho. Com sono e a indisposição típica da madrugada, não teve vontade de acender a luz. O janelão da cozinha americana conduzia a luz externa do condomínio, porém a penumbra não permitia observar o estado da água. Era um gosto ferroso, lembrando carne malpassada. Olívia não tomou toda a água e derramou o restante na pia.

Voltou a dormir. Poucos minutos depois, senta na cama em sobressalto. O pesadelo fora terrível. Sozinha no quarto, Olívia acendeu a luz do abajur e tentou se recompor do susto. Tudo pareceu tão vívido e real.

— Meu Deus! O que foi isto?

Olívia puxou o smartphone da mesinha de cabeceira e resolveu dar uma olhada nas redes sociais. Foi passando o dedo e se deparou com um post de um amigo metido a esotérico falando de uma tal hora morta.

Olívia olhou o relógio: três e quarenta da manhã.

— Já passou, ainda bem — resmungou Olívia, sem ter notado que tomara a água às três da manhã.

Olhou mais algumas fofocas e acabou adormecendo, acordando quase atrasada para o trabalho. Levantou apressada, tomou seu banho e foi preparar um café rápido. Ao colocar água na chaleira, se deparou com a pia meio vermelha. Na pressa, não deu muita importância ao fato.

Imaginou ser algum morango ou beterraba. Mas tinha um probleminha.

Ela não tinha cozinhado beterraba, muito menos limpado morangos na pia.

— Mistérios da meia-noite — ironizou Olívia.

Olívia tomou rapidamente o seu café e saiu em desabalada carreira para não perder o ônibus. No coletivo, escutou por entre ouvidos dois homens contando uma história sobre a antiga “Hidráulica” da cidade onde antigamente desovavam corpos de vítimas da revolução de 1893 que dividiu o estado do RS entre ximangos e maragatos.

A Hidráulica local fora uma das primeiras do estado que tratava a água a ser distribuída na cidade. A lenda reza que na lua cheia de março dos anos bissextos, espíritos dos mortos por degola retornam sem cabeça e despejam seu sangue no reservatório para se vingar dos assassinatos.

Olívia ouviu tudo e pensou ser invencionice ou brincadeira de mau gosto daqueles caras.

A rotina de Olívia deveria seguir o curso normal das atividades.

Trabalho, amigos, família, coisa e tal. Mas a lembrança da madrugada passada e o papo dos caras no ônibus continuavam a matutar em sua cabeça. No trabalho, o colega chamou a sua atenção:

— Dona Olívia Saraiva! — Nome completo quando queria chamar a atenção da colega.

— Poxa, cara! Desculpa, é que eu tô com umas coisas aqui na cabeça que não me deixam concentrar no trabalho.

E assim, seguiu o resto do dia, até que finalmente chegou a hora de retornar para casa. Neste dia, Olívia não teve nem vontade de participar do tradicional bate papo com as amigas. Foi diretamente para o ponto de ônibus embarcar no primeiro coletivo que aparecesse. No caminho, passou pela ponte que liga os extremos da cidade, ponte histórica que também foi testemunha de sangrentas batalhas durante as muitas escaramuças que mancharam o Rio Grande do Sul de sangue. Olívia lembrou da estória no ônibus da manhã e também recordou das aulas de história dos tempos de escola. Da ponte, lembrou da batalha da revolução de 1923. Enquanto observava as águas mansas do rio seguirem seu curso, Olívia tentava lembrar das lições sobre a revolução de 1893, fato narrado no causo fantástico dos homens do ônibus. Não lembrou de muita coisa.

“Vou perguntar para mamãe, que foi professora de história. Ela deve saber, com certeza” — pensou Olívia.

Chegando em casa, Olívia foi direto ao telefone, falar com a mãe.

Mesmo à distância, colinho de mãe sempre é bom para reconfortar, ponderou. Na conversa, a mãe de Olívia a confortou e disse para não dar bola para essas estórias que o povo conta. Geralmente é lenda urbana ou coisa parecida. Também contou para Olívia sobre a revolução de 1893 e que realmente, os maragatos degolavam os adversários e que a primeira vitória dos federalistas foi às margens do riacho Inhanduí, localizado no município onde Olívia morava.

Além de detalhes da história, a mãe de Olívia disse que tinham um parente distante que foi um dos líderes da revolução, pelo lado dos federalistas, os chamados maragatos. Era o Gumercindo Saraiva, coronel caudilho que comandara tropas de federalistas no início da revolução e ordenara muitas degolas e decapitações. Também explicou que por causa de tantas batalhas e também por desatinos econômicos, a família Saraiva hoje faz parte dos chamados herdeiros da pampa pobre, antigos estancieiros que perderam quase tudo que tinham e passaram a viver com parcos recursos.

— Filha, o importante é estudar, trabalhar e construir o teu próprio futuro. O que herdamos é a garra e a fibra das pessoas que ajudaram a desenhar este estado com seu sangue.

— Mãe, nem me fala em sangue. O papo daqueles caras me intrigou e aquela mancha vermelha na pia me assusta até agora.

— Deixa de bobagem, guria. Deve ter sido algum chá de hibiscos que tu fizeste ou vinho que tomaste.

— Só se eu estiver louca, pois não lembro de nada que eu tenha feito, bebido ou cozinhado com esta cor, no dia de ontem.

Olívia se despediu de sua mãe e foi limpar a pia, tirar aquela mancha que continuava a lhe assustar. Aproveitou e preparou um jantar rápido para receber o namorado que chegaria de viagem. Mataria a fome e a saudade.

Tocou o telefone e o namorado avisou que o chefe pediu para estender a viagem com a finalidade de visitar outro cliente que não estava agendado. Fazer o quê, sentenciou Olívia, resignada por mais uma noite sozinha em casa. Ao menos tinha a relativa segurança de morar em um condomínio fechado.

Restava à jovem fazer o de sempre, assistir à alguma série televisiva, revisar o conteúdo da especialização que fazia e fuxicar com as amigas nas redes sociais. Rotina realizada, hora da cama. Olívia não tinha o hábito de levar copo de água para o quarto, mas nesta noite pensou que seria melhor fazer isso. Não queria levantar de madrugada e ter que tomar água com gosto estranho. Devia ser a boca seca que deixou aquele gosto na água. Depois de se abastecer com água, deitou e dormiu um pouco mais tranquila.

Novamente, sentiu vontade de tomar água. Olívia acordou com a boca seca, com muita sede. Meio acordada, meio dormindo pegou o smartphone e conferiu as horas. Três da manhã. Estranhou a coincidência e pegou o copo para beber água, afinal a sede era grande. Sorveu alguns goles e sentiu o mesmo gosto ferroso da madrugada anterior.

— Vou ter que escovar melhor os dentes e a língua antes de dormir

— murmurou Olívia.

O namorado sempre dizia que Olívia era boa de cama, piada infame de quem julga os outros dorminhocos. Bastava deitar, que era sono profundo. Mas nestas duas últimas noites Olívia sentia dificuldade para dormir. Novamente recorreu ao recém-eleito sonífero preferido: redes sociais no smartphone. Corre dedo pra lá, corre dedo pra cá e se deparou mais uma vez com aquele amigo narrando a estória da hora morta.

Estava escrito no post:

“Chamada de Hora Morta, ou ainda Hora do Diabo, as três horas da manhã é famosa por ser um momento em que demônios e maldições ficam mais fortes. Não faltam relatos de pessoas atormentadas por pesadelos ou alegando que se veem presas em algum encanto maligno precisamente às três horas da madrugada. Segundo o cristianismo, isso acontece porque Cristo morreu às três horas da tarde, e a hora se tornou simbolicamente relacionada a Jesus. Então, seria a hora oposta, ou seja, a hora maligna, hora morta, hora do Diabo. ”

Três da madrugada. Olívia se atentou ao assunto. Após ler o que o amigo escrevera, começou a ficar assustada. Era muita coincidência.

Como esperado, o sonífero eletrônico funcionou e Olívia adormeceu. Outra vez, teve pesadelo. Desta feita o pesadelo pareceu ainda mais real. Foi possível visualizar de forma nítida o mar vermelho de sangue no reservatório da velha “Hidráulica”. Também conseguiu vislumbrar sobre as antigas paredes de pedra um cortejo de homens sem

cabeça a esguichar sangue na água. Uma cena que a deixou muito perturbada. Olívia não conseguiu mais dormir.

Ao acender a luz, olhou para o copo. A cor da água era carmim.

Não era água manchada, era sangue puro. Olívia ficou petrificada. Teve quase certeza que a tal maldição da hora morta chegara até ela. Mas por que ela, tão pacifista, que não se animava a matar um rato, teria que, supostamente, pagar pelo pecado de seu antepassado assassino?

Nestas horas, todo santo ajuda. Olívia lembrou das aulas de catecismo e foi buscar um rosário antigo que herdara da sua avó, feito em madrepérola e que acompanhava a família já há gerações.

Revirou um velho baú onde guardava itens de estimação e encontrou o rosário. Para sua surpresa, o rosário também estava manchado de sangue. Pegou o objeto e jogou ao chão. Ao cair, as peças se separaram e formaram o desenho de uma adaga no piso do quarto.

Olívia deu um grito, ficou mais uma vez paralisada sem saber o que fazer.

Reagindo, saiu do quarto em disparada e foi para a sala. Telefonou para a mãe novamente. Olívia contou sobre o acontecido e sua mãe sugeriu ter sido devaneio ou alucinação.

— Tu andaste te drogando, Lívia? Lívia, já te disse que drogas não fazem bem.

— Ora, mamãe, se nem na minha adolescência eu quis experimentar, não seria agora que eu iria me entregar às drogas. Droga é este sobrenome que tu me deste. Eu vi, mãe, eu senti o gosto do sangue dos homens que aquele teu parente mandou degolar na revolução.

— Filha, esta cruz eu já carrego há muito tempo, eu nunca quis te assustar com esta história de família. É que eu pensei que tinha acabado, pois faz tempo que nenhum parente passava por isso. É um segredo que os Saraiva guardam há décadas. De cada geração dos Saraiva, uma pessoa é escolhida aleatoriamente como penitência pelos pecados do Gumercindo. Esta é nossa maldição. Pelo menos, ano bissexto acontece apenas de quatro em quatro anos.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 152-160)