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Meu Último Carnaval

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 160-167)

Por:

Kimberlly Isquierdo

Bongalhardo

Era uma noite de Carnaval, similar as noites dos anos anteriores.

A Avenida do Cassino enchia de vida quando um bloco passava, mas morria novamente à espera do próximo. Nesses intervalos, eu aproveitava para animar a criançada e brincar com eles. Ah, um fator importante que esqueci de dizer, eu estava vestida de uma versão muito bonita da gata de

“Os Saltimbancos”. Com orelhas felpudas, rabo penteado roçando no chão, e, o que as crianças mais gostavam, dentes afiados. Ãh?! Não! Não sou uma furry e nem devoro crianças, eu só gosto de encenar. Minha paixão é o teatro, e, apesar de não conseguir sobreviver apenas do que amo, acabo por tornar isso meu hobbie favorito.

Eu dançava e encantava as crianças, por vezes alguns pais apareciam e pediam para tirar fotos com os seus filhos. Foi o que aconteceu naquela noite. Uma moça loura de cabelos compridos e

encaracolados chegou até mim, eu não sabia ao certo dizer sua idade.

Pois, a cada vez que eu a olhava parecia que algo mudava em seu rosto.

Deviam ser as luzes dos trios elétricos. O barulho era intenso. As batidas incessantes que vinham dos tambores preenchiam nossos ouvidos e o ar era preenchido por uma névoa branca(e um pouco de espuma, é claro.).

A mulher pegou minha mão, não podia sentir a textura de sua pele pelo fato de as luvas fazerem parte de meu figurino, mas pude sentir o quão áspera e fria era a mesma.

— A senhorita pode tirar uma foto com meu filho?

— Claro!

Respondi, apesar de não saber se era realmente aquilo que ela disse. Tentei ler seus lábios, mas estava confuso. Nos afastamos juntas do rebuliço. Endireitei minhas orelhas, às vezes as crianças as sovavam demais para saber se eram verdadeiras (minha atuação era muito boa, mas dispenso elogios).

— Ele está doente, precisa de um pouco de alegria nos seus últimos dias...

— Entendo...Sem problemas. Qual o nome dele? — não sei se ela me ignorou ou se não me ouviu, se passou no mínimo trinta segundos antes que ela respondesse novamente.

— Estamos chegando. — a moça sorriu para mim, seus olhos azuis resplandeceram à luz da noite.

Ela estava me levando ao hospital que ficava no outro lado da rua, seu filho deveria estar lá, creio. Okay, ela era um pouco estranha, diria até suspeita. Mas era uma mãe preocupada querendo fazer o filho feliz, não havia mal algum nisso. Além disso, eu não estava indo muito longe.

Também havia vários policiais por perto. Não havia perigo visível.

Assim que entramos no hospital, segui a loura até o elevador. Ela apertou números rapidamente, e logo vi o sinal de subtração (vulgo -) antes do dígito xxx. E, antes que o número pudesse aparecer, o painel escureceu. Era o momento perfeito para eu entrar em pânico, mas o elevador seguia seu caminho normalmente, então decidi não olhar para o visor por um bom tempo. Não sabia dizer como ela fez aquilo, ou talvez fosse um erro comum do elevador. A última vez que eu entrara naquele hospital foi para ver minha avó partir, eu não gostava da sensação que ele me passava.

— Ele está aqui há muito tempo? — indaguei, para quebrar o gelo que flutuava dançando na atmosfera do elevador.

— Desde que nasceu. — respondeu a mulher, enquanto analisava seus próprios pés. — Ele nunca saiu daqui.

— Ah... — aquilo embrulhou meu estômago. Talvez fosse a crise de ansiedade começando ou talvez fosse empatia pelo menino que nunca pôde brincar na rua. — Sinto muito.

Quando finalmente chegamos ao andar até então desconhecido, um vento congelante invadiu meu peito. O ar era gélido. Noites de verão nem sempre eram tão quentes, principalmente na região sul. Esfreguei

uma mão na outra, enquanto curvava os ombros de frio. Deveria ter sido mais esperta e ter amarrado um casaco na cintura. No meio do povo não se sente frio, mas depois que se afasta de todos, aí sim.

Podia dizer que a calma se estabeleceu em mim novamente quando vi o menino sentado em sua cama de hospital. Ele existia, logo, eu não seria sequestrada e nem assassinada, não naquela noite. Ufa! Mas não podia mentir, ainda havia algo soando estranho. O menino estava de olhos fechados com a testa franzida, como se estivesse emburrado com os seus próprios pensamentos. Havia balões negros amarrados ao pé de sua cama, possivelmente sua cor favorita, não irei julgar. Afinal, aos 7 anos eu amava branco e era uma cor bem sem graça para enfeitar aniversários.

No chão, restos de balões coloridos que foram cruelmente estourados estavam espalhados. Me segurei para não dizer “Moço, respeita as demais cores. O seu preto é formado por todas elas”. Mas, ao invés disso, me aproximei da cama, cuidando para não pisar nos restos mortais dos outros balões.

— Olá, querido. Trouxe uma amiga para ver você. — disse a moça.

— Mesmo mamãe? Quem é?

— É uma gatinha muito simpática. — ela sorriu para mim e eu sorri de volta, apesar de o sorriso dela me causar calafrios. Por esse motivo, imagino que meu sorriso saiu um pouco “meio nervoso”.

— Ahn... Vim ver você. Tudo bem, amiguinho?

Tudo que eu desejava naquele momento era sair o mais rápido possível daquele lugar. Podia ouvir alguém fechando a porta,quando olhei para atrás a mãe do menino havia desaparecido. Ah, que bom!

Agora eu estava sozinha. Ficar trancada em uma sala com uma criança que ama o preto não parece assustador para você? Okay, eu sei, estava apenas pensando demais em coisas frívolas e insignificantes..

— Não me chame de amiguinho, Lúcia.

“Opa, isso não é insignificante. Okay, estou indo embora dessa sala.” Pensei. Como o moleque ia saber meu nome? Ele não me conhecia e nem ao menos olhou para o meu rosto! Me levantei e me afastei alguns passos, coçando as mãos, claramente desconfortável.

— Bem, me desculpe. Ãhn, querido. Eu preciso ir embora, está na minha hora, está tarde...

Dei alguns passos de costas. Não queria me tornar a personagem idiota, de um filme de terror idiota e que morre na primeira cena idiota.

Entretanto, sinto que ele ouviu meus passos, pois virou o rosto em minha direção. Minhas pernas tremeram, eu já estava pertíssimo da porta.

Mais um movimento, se eu conseguisse fazê-lo de forma silenciosa, eu escaparia daquela loucura... Foi uma escolha ruim, assim que toquei a maçaneta ele abriu os olhos e, digamos, não gostei muito do que pude ver.

— Já vai embora? — seus olhos eram o breu, o escuro, o vazio total. Bem, se você ainda não entendeu: era o nada absoluto. Não havia brilho, não havia aquele encanto de criança, bem, não havia nada. E, para

acrescentar à esse momento desesperador, sua voz ficou mais grave, é claro (que típico!). Um timbre que não era digno de uma criança comum por volta dos sete anos. — Você acabou de chegar. Nem me mostrou seu show... Que péssima profissional você é.

— Vá se foder! — e com essa linda frase de efeito, eu corri.

Me joguei dentro do elevador com uma força e velocidade curiosamente absurdas. Meu ombro chegou a doer por ter batido na parede do mesmo. No momento, não sabia qual botão apertar, logo achei uma belíssima ideia apertar todos os botões ao mesmo tempo. O que vi antes das portas se fecharem foi a suposta mãe, do suposto demoniozinho, correndo para abrir a porta e pedir uma outra foto. Agora, pude ver seu rosto desfigurado, não entendo o que não me permitiu ver antes. Seria minha miopia ou uma espécia de magia assustadora? Deixa pra lá, acho melhor eu não saber.Agora sim eu podia dizer que meu sorriso era bem e completamente“nervoso”.

Saí do elevador correndo. Estava contente por não ser mais uma personagem idiota de um filme idiota! Mas minha alegria desapareceu rapidamente quando prestei atenção ao meu redor.

Aquele não era meu andar... Ainda não era o meu andar. As ruas estavam vazias, restava apenas a sujeira de um Carnaval passado. Sem policiais, sem pessoas. Nenhuma alma, nenhum bêbado. Aquilo estava muito errado! No fim da rua, dobrando a esquina, se encontrava a criança.

Ele segurava um balão negro e, no rosto, um sorriso gentil surgiu. Ela apontou para onde eu estava. E eu sabia, infelizmente, que estava dizendo isso para alguém.

Voltei depressa para o elevador, não queria ousar olhar para atrás novamente. Corri como o gato que fingia ser. Corri, apenas, corri. De volta ao elevador, apertei diversas vezes no botão, como se esse gesto fizesse as portas se fecharem mais depressa. Senti a plataforma se mexer, ouvi os fios que sustentavam o elevador rangerem. Bem, pelo menos queria pensar que fossem eles, e não uma risada ácida e estridente.

Eu esperei, confusa, com a maquiagem já borrada. Com as luvas manchadas e os pés doendo de estarem sobre o chão gélido. Me abraçava para me aquecer, rezava para voltar à realidade. Eu estava alucinando, não era real. Nada daquilo era real... Não, não era. Não tinha como, não podia ser. Apertei os olhos o mais forte que pude e, quando finalmente tomei coragem de voltar a abrí-los, a porta tilintou e também abriu.

Cedendo passagem para o que estivesse do outro lado.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 160-167)