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Borboletas Carmesim

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 95-99)

Por:

Ailton S. d’Santos

I – O Retorno

“É tênue a malha que separa os mundos e ao plenilúnio ela enfraquece ainda mais. Quando dançam as borboletas em matiz carmim, aqueles que amamos regressam para nos apoiar”. Estas palavras estão esculpidas no arco de pedra do cemitério. Warui yume é uma cidade estabelecida por imigrantes japoneses, no início do século XX. Contudo, mesmo sendo uma povoação de linhagem oriental, a influência protestante do continente prevaleceu e a grande maioria de seus habitantes é fiel da igreja Restauradora dos Últimos Dias, fundada pelo Clã Hideki.

Diário Renascer, p. 6; março, 1980.

O para-brisa continua sendo golpeado sem dó. As nuvens estão furiosas, mas Daniel não parece estar muito bravo. Sei que está chateado poque teve que me pegar na festa a essa hora da madrugada. Meu corpo não me obedece e não consigo enxergar nada a frente dos faróis.

— Ei, Daniel. Me responde Daniel!!! Isso é neblina? É Neblina Daniel? Parece que o inverno está chegando? Hein, Daniel, hein? Está chegando?

— Cala boca imbecil. Chegar em casa nosso pai vai te virar do avesso. Por Deus cara, sabe que não podemos fazer essas coisas. E você sai escondido e sobra para mim.

Ele respondeu, afastando com o braço direito as minhas mãos que tentavam alcançar seu rosto. Estou rindo muito de tudo isso.

Gargalhando, mas uma pontada súbita atravessa meu peito, e vejo sua face na penumbra, dentro do carro, enquanto me cuida e me protege.

— Eu amo você. — falo e começo a chorar, em meio ao sermão que não chega em meus ouvidos. Sua boca continua mexendo e tento toca-lo com meus dedos. Mas, meus braços não o alcançam. Então, seu rosto começa a se decompor e os dentes caem um a um enquanto fala.

— Como sempre, eu pago a conta pelas consequências de seus atos! Tudo culpa sua...

— Ahhhhhhhhhhhhh... Poof! puf! — acordo de súbito, erguendo o corpo com um dos braços estendidos, apoiando-me sobre o cotovelo e com a respiração ofegante.

— Matheus? O que houve, você está bem?

— Sim, estou bem Caio. Foi só um sonho ruim. — respondo ao rosto que apareceu na lateral da beliche, olhando para baixo, com olhos sonolentos.

O quarto está silencioso, tendo apenas o ruído leve do ventilador de teto como trilha sonora da madrugada. Não consigo mais dormir, então sento na cama e abraço as pernas. Sinto tanto saudade. — sussurrei, para mim mesmo.

Desde que passei a ser tutelado pelo estado vivo em um internato na capital. Passaram-se tantos anos e, na verdade, eu nunca consegui entender. Daniel me pegou na escola aquele dia, parecia muito preocupado. Consigo visualizar cada linha do seu rosto como se fosse ontem.

Estava brincando com os meus amigos de pega-pega, entre as grades do parquinho no pátio da escola, quando fui chamado para diretoria e meu irmão aguardava lá, junto com o professor. Me abraçou muito forte e disse que precisava que eu fosse embora com ele.

— Matt, vou precisar te deixar aqui com essa pessoa. Por um tempo, mas volto logo. — estávamos no escritório da assistência social da cidade, em frente a uma senhora de meia idade cujo cabelos loiros perdiam o tom. Usava um terno bege e óculos com grandes lentes.

— O que aconteceu? — ele parecia muito perturbado, mas controlava bem a entonação da voz.

— Nada maninho, mas nós vamos fazer uma viajem. O que acha?

— Que bom. Vamos pro lago? — pulei, de alegria, levantando da cadeira. Eu amava as viagens em família.

— Que bom que gostou da ideia. Sim, vamos passar lá. Mas, vamos só nós dois. E... a mamãe. — falou inseguro. Engolindo seco, antes de pronunciar as últimas palavras. Então ele me abraçou, mais forte do que antes, e saiu logo depois de entregar um grande bloco de dinheiro a mulher de roupa bege. Contudo, ele não voltou e não fomos ao lago.

Ele disse que iria voltar, mas não voltou. A mamãe não veio me pegar e levar para casa. O papai, também não. Então, fiquei sobre a guarda da assistência social, e me trouxeram para capital a fim de viver nesse lugar.

E, seis anos depois, vieram me contar que minha família não existia mais.

Que meu irmão estava morto... Meu pai, cometera suicídio.

A manhã já ia alta e nem sequer percebi quando consegui dormir.

Pelo menos, não tive mais pesadelos e pude descansar. Já conclui meus estudos e passei na faculdade de jornalismo, as aulas começam no próximo semestre. Portanto, continuarei morando na capital. Mas, entrei na maioridade há duas semanas e isso é estranho. Entrementes, papai me deixou muito dinheiro e agora poderei visitar a mansão Hideki e aproveitar para alinhar as questões burocráticas dos meus bens. Então, levanto da cama lentamente, sem me importar que já passam das dez horas. Tomo meu banho e meu café da manhã, ainda mais devagar. No fim, já passa de meio dia. Confiro os documentos, reviso a bagagem, meu itinerário e, ao fim, volto a escrivaninha do dormitório para tornar a abrir minha pasta com recortes de jornais e dados de pesquisa. Uma extensa

investigação pessoal, acerca da vila de Warui yume. Removo um dos recortes do involucro plástico e ergo a frente dos olhos. Essa publicação de mais de oito anos, que me perturba desde o ano passado quando a descobri. Pode ser a chave para as borboletas que vejo em meus sonhos e ao longo dos caminhos, sempre em portas que me levam para fora daqui. Nunca entendi para onde, mas sinto que é para lá. Alucinações materiais que meu psicólogo atribui ao vazio e a depressão, mas sei que as vejo. Sei que me chamam. São perguntas que não conseguirei respostas aqui, com os especialistas que insistem em chamar de traumas os sonhos que tenho com meu irmão. Alguns são tranquilos e carinhosos, outros são aberrantes pesadelos. Mas nada, nada explica essa imagem da fachada da mansão, onde ele aparece na janela do segundo piso.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 95-99)