• Nenhum resultado encontrado

Por: Jean Marcelo Donda

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 65-77)

Genival finalmente confessa ao Delegado de Polícia Charles:

— Quem matou o senhor Sidney foi a Nancy. Ela tocou a campainha na quitinete dele para brigar, motivada apenas pela sua reclamação sobre a falta de sabonete no banheiro de uso comum do prédio. Na semana anterior implicou com o quadro do hall do sexto andar. Quando ele abriu a porta, ela o empurrou e o seu Sidney caiu, bateu a cabeça no chão e desmaiou. Depois ela enfiou a imensa faca em sua barriga com toda a força do mal. A faca atravessou o corpo do seu Sidney e o sangue começou a jorrar. Joguei toalha e até tapete, mas não dei conta de enxugar, era muito sangue. Ela me mandou derrubar a lata cheia de tinta de cor azul no chão da quitinete para encobrir o sangue, como se ele tivesse tropeçado na lata antes de morrer, já que seu apartamento estava em reforma. Ela é a mulher do inferno, eu não entendo como tanta coisa ruim cabe naquela cabeça. Ela é a manifestação do demônio, todas as

quitinetes daquele prédio estão amaldiçoadas por ela, porque maldade não ocupa espaço. Nancy aproveitou que o computador do morador Sidney estava ligado, imprimiu a falsa carta de suicídio e jogou o remédio fora. O investigador Adriano é muito bom por ter descoberto que poucas horas antes de ser morto, seu Sidney comprou na farmácia próxima duas caixas de remédio para pressão. Graças ao investigador eu me livrei da assassina maldita.

— Além de amasiado, você é cúmplice. Genival, você também vai passar vários anos de sua vida na prisão. Se fosse mesmo inocente, teria ligado para a polícia assim que o morador caiu no chão, deveria ter denunciado. Você estava na cena do crime — disse o Delegado Charles.

— Senhor delegado, quando eu fui socorrer o seu Sidney, Nancy ficou tão ensandecida que cortou meus dois dedos. Senti muita dor e não tive coragem de fugir. Tive muito medo, ela jurou que iria me matar em breve e eu sei que isto poderia acontecer a qualquer momento. Ela é a fonte do mal. Eu posso ficar preso também, mas quero que essa desgraça morra na cadeia e pague por todos os seus crimes.

— Crimes? Pelo que sei, no seu edifício houve muitos suicídios nos últimos anos. Quais crimes? - perguntou o Delegado.

— A Nancy é a síndica, conhece todos os moradores, que os considera seus piores inimigos. Quando está calma, ela agride funcionários, têm ataques de fúria, joga seu próprio lixo e seus próprios excrementos sólidos nas portas dos moradores em sinal de vingança. Sei que ela jamais vai assumir os seus crimes. É muita crueldade na cabeça

desta desgraçada. A grande verdade possível é que naquele edifício nunca houve nenhum suicídio. Nancy matou o seu Sidney e todos os outros sete moradores. Quando ela está nervosa ela grita, fica vermelha, amaldiçoa e vai ao seu escritório do mal para elaborar a planilha da morte do próximo condômino. Para executar seu plano, ela toca a campainha, entra no apartamento do morador para matá-lo, constrói um cenário de suicídio e engana até experientes peritos criminais. Ela não é só uma assassina e não é só uma louca, ela tem em si a imensidão do mal. É só isso que eu tinha pra contar.

Genival foi julgado e condenado. Nancy também está presa, mas em breve espera sair da cadeia e já faz planos para sua “nova” vida: ser síndica em outro prédio, onde continuará praticando crimes contra condôminos, utilizando uma voz angelical para esconder sua essência demoníaca.

A Ponte (ou a incessante canção do entardecer)

Por:

Mauro André Oliveira

Lembra que um dia teve um filho. Entrementes, vive hoje numa profunda tristeza, pois nenhuma mulher que por qualquer circunstância venha a se afastar da cria recém-saída de seu ventre, um dia será feliz. E, malgrado a dor, vez ou outra enquanto espera o cair da noite sentada sobre a pedra à beira da lagoa, uma bela canção reverbera ao longe trazida pela brisa do crepúsculo, provendo o seu coração de uma paz súbita e fugaz.

Em vão, tenta fugir desse mundo tenazmente cinza que hoje habita

— bem diferente do universo que traz em suas recordações, quando tudo que irrompia à sua frente tornava-se absurdamente colorido, como as águas da lagoa, tão azuis como a ardósia; e o próprio firmamento, com suas variações de cores e imagens a alternar-se num fantástico

caleidoscópio. Mas tudo isso ficou para trás, do outro lado da ponte, e hoje tudo que seus olhos alcançam é tão-somente um horizonte pigmentado na opacidade de um sépia empedernido.

E sempre que rumina suas lembranças, revive a nostalgia do tempo em que sonhava com o amor. Acredita, porém, que já não sofre com a recorrência da solidão, porquanto a si apenas se culpa pelo desdouro que lhe aflige. Ia casar, ter filhos, construir uma família num lar cândido e feliz. Leonardo, o nome do noivo que tanto amava, e agora tão distante como os sonhos perdidos nos rudimentos de seu mundo estéril. E ainda que imperecível o encanto do primeiro amor, não conjectura mais algum dia reencontrá-lo. Mas o que poderia fazer Leonardo, se um dia ela lhe confidencia que estava grávida de outro homem?

Órfã, e impelida ainda em tenra idade a lançar-se em busca de uma atividade remunerada, o serviço de copeira na casa dos Javier, uma tradicional e aristocrática família da região, foi o que desafortunadamente conseguiu para custear seus estudos e subsistência. E por ostentar o esplendor da perfeição, não tardou para seu patrão, o mau-caráter doutor Ezérez Javier — cujos escrúpulos eram incapazes de conjecturar o sofrimento alheio —, desvairar-se pelo seu corpo e inocência. Entregara-se como o pássaro atraído ao alçapão, na ilusão de que disporia de forças para escapulir à armadilha de um fascínio fugaz. E o simplório Leonardo, ao regressar dos longínquos campos onde a lida só não era tão infausta pela perspectiva do soldo que lhe custearia a festa de casamento, viu-se de repente destruído.

— Vagabunda, é o que eu sou!

Dona Eleonor já não perdia tempo em recriminá-la pela indelével culpa a corroer sua alma, de modo que hoje apenas roga o seu silêncio quando ela vem à sua casa. Já há tempos acompanha o seu caso e, não obstante, ainda não logrou se acostumar com a persistente compunção da amiga Artemísia Vince por um deslize que, malgrado conferido pelo seu alvedrio, nunca fora naturalmente por ela desejado.

— Da próxima vez que retornar, vou lhe contar um segredo.

Deixa a casa de dona Leonor correndo, num árduo esforço de cruzar a ponte e chegar antes do escurecer à tapera que lhe servia de abrigo. Teme demasiadamente um bando de medonhos corvos que amiúde a persegue por entre as veredas do pântano que atravessa para retornar ao lugar de onde veio. Antes, porém, de transpor a ponte, subitamente ouve um belo cântico a ecoar por detrás de um tabuleiro cingido por um canteiro de lírios. E nos versos entoados em harmônica melodia, logo reconhece trechos de uma canção antiga que cantava com Leonardo num caraoquê de um bar de beira de estrada. Mas não sabe se pelo negrume da noite que se avizinha ou pelo súbito êxtase em sua alma, não consegue divisar de onde vem aquela música entoada por uma voz tão agradável e ressonante. E em vão grita, grita, grita, mas ninguém responde e também ninguém consegue enxergar em meio à escuridão.

Desolada, atravessa a ponte antes que a luz do dia se perca totalmente por

entre as ominosas sendas do anoitecer, e logo vai encontrar-se na solidão da tapera, perdida nos seus recorrentes pesadelos.

No fim do outro dia, logo que avista ao longe um fulgor tênue vindo da casa de dona Leonor, para lá vai às pressas, na esperança de ter notícias do filho extraviado. Mal consegue caminhar, pensando no segredo que a velha tem para lhe contar. É a única pessoa com quem ainda conversa, mas só podia atravessar a ponte para visitá-la quando acendia a luz de sua casa no alto da colina, indicando, a toda a evidência, que sua visita seria bem-vinda.

— Preciso saber o que aconteceu com meu filho — suplica, sem olhar para sua anfitriã sentada à mesa num canto escuro da sala. — Tenho um pressentimento que ele esteja deste lado da ponte.

A velha continua a tomar seu café numa xícara de porcelana na cor alizarina. A princípio, permanece em silêncio, com a testa franzida, a contemplar o espectro em pé ao lado da porta em sua específica e enigmática languidez.

— Artemísia Vince, você não verá mais ver seu filho — revela, sem rodeios, com a convicção dos que conhecem os transcendentes caminhos da vida e da eternidade. — Estão em planos diferentes.

Uma espessa neblina envolve toda a região, e a cada passo que consegue dá por entre as sinuosas alamedas que a levam de volta à ponte, percebe que sobre si desabam todas suas angústias e desencantos. Então, meu filho está morto, reflete. Esse é o motivo de minha busca em vão, dos meus dias tão vazios? Nestas retumbantes divagações, de repente vê

surgirem do alto de uma mata espessa os misteriosos corvos, que logo lhe tomam a frente em sobrevoos contínuos e rasantes. Temendo sobremaneira o ataque das aterrorizantes aves, embrenha-se no primeiro atalho que irrompe diante de si e, sem olhar para trás, corre sem parar até alcançar o leito da estrada mestra, de onde ouve cada vez mais perto aquela canção trazida para o seu estranho mundo pelo vento do entardecer. E acompanhando o rastro envolvente da música a se espalhar por todo o espaço que a circunda, não demora e encontra o velho bar de beira de estrada onde cantava com Leonardo nas inesquecíveis noites de sábado. No fundo, ao lado do balcão, na mesma máquina de caraoquê em que revelava seus dons musicais quando vivia por estes lados, um jovem entoa maviosamente um icônico single inglês: “We skipped the light fandango”...

Aparentemente, nenhum dos presentes se dá conta que uma estranha de olhar aturdido ingressa ao recinto em que cantam, dançam e se divertem com muita bebida alcoólica. Exceto um sujeito de meia-idade, de cavanhaque pouco denso, cabelos longos e usando um chapéu no estilo caubói americano, que a chama pelo nome assim que a avista.

— Artemísia... É Leonardo, ela o reconhece de pronto. Mas como está diferente, parece muito mais velho... Vai sentar-se ao seu lado, sem ainda compreender como podem ter se distanciado no tempo dessa maneira: ela, ainda tão jovem, enquanto ele já ostentando uma aparência de quem já passou dos quarenta anos. Leonardo a cumprimenta e, ato contínuo, esclarece que somente através do amor desmedido que ela

devota ao seu filho, que lhe foi possível estar ali naquele momento.

Artemísia não consegue assimilar os fatos que lhe assomam tão de repente, e então pergunta a Leonardo o que houve com seu filho, por que não consegue encontrá-lo...

Leonardo então a previne que sua memória deve ter parado no tempo antes dos tristes episódios que ocorreram vinte anos atrás, sendo necessário esclarecer-lhe a verdade, o que de fato ocorrera naquela fatídica tarde de outono. Relata, então, que logo que sua patroa soube de sua gravidez e da transgressão perpetrada pelo marido, expulsou-a de casa. Então, sem ter para onde ir, ela foi morar numa tapera abandonada nos confins da lagoa. Não aceitando, porém, que uma humilde empregada doméstica viesse a dar à luz um filho com sua linhagem, seu ex-patrão a procurou por dias com o propósito de livrar-se do estorvo que tanto contratempo havia trazido ao seu honrado lar. E quando soube o lugar onde ela estava homiziada, determinou a dois capangas dele que a matassem. Então, num determinado dia — segue Leonardo —, depois de tanto tempo sem vê-la, resolveu ir visitá-la, pois já tinha conhecimento que ela estava morando na velha tapera à beira da lagoa. Mas o perverso Ezérez Javier, que um dia fora seu patrão e amante, já havia enviado os sicários para matá-la.

— Cheguei um pouco depois, e nada pude fazer — conta Leonardo, com a voz claudicante. — Você já estava morta, Artemísia — anuncia Leonardo, diante da perplexidade da desventurada à sua frente. — Você morreu naquela triste tarde de outono.

Revela-lhe, então, que após defrontar-se com o seu corpo prostrado no chão da sala da tapera, saiu no encalço dos assassinos, logo os alcançando num trecho da estrada, e após uma prolongada e sangrenta refrega, conseguiu ferir mortalmente os dois com a faca que carregava à cintura. Ressalta que, quando estava a fugir por entre os desvios que permeiam as terras pantanosas, cruzou com a mística benzedeira que mora por aqueles arrabaldes carregando o seu bebê.

— Dona Leonor conseguiu salvar a criança, Artemísia — revela Leonardo, exultante.

— E cadê ele? — brada Artemísia, em sua obstinada inquietação

— Cadê meu filho?

Leonardo então lhe esclarece que seu filho não pode vê-la, pois nem todo mundo pode manter esse contato que entre ambos se sucedia.

Então lhe conta que após matar os jagunços de Javier, decidiu procurá-lo para concluir sua vingança. Mas Javier já havia fugido para a capital, e depois de alguns dias, chegou a notícia que lá ele morrera de um infarto fulminante. Temendo a polícia — prossegue Leonardo —, também fugiu para terras remotas, encontrando ocupação num garimpo distante, onde fez fortuna garimpando pedras preciosas. Depois de alguns anos, retornara para o povoado, quando então procurou dona Leonor e se propôs a subsidiar os estudos de seu filho, que agora é um jovem estudante de medicina.

— E foi naquela ocasião em que estive com a velha benzedeira que soube que ela estava mantendo contato com você — revela Leonardo.

Foi quando descobri que também tinha o dom de ver e conversar com os que estão além dessa vida.

Conta-lhe, nesse ensejo, que logo após saber que ela estava grávida de outro homem, sua finada mãe um dia apareceu ao lado de sua cama e o consolou, dando-lhe forças para que conseguisse sobrepujar aquele momento difícil. Depois, encontrou os facínoras responsáveis pelo seu homicídio, e que por ele haviam sido mortos, juntos a Javier nos volutabros das terras pantanosas onde hoje habitam.

— Ah, então são eles... — pondera Artemísia, perplexa — Os corvos!

Nesse instante, o jovem que estava a cantar no caraoquê, aproxima-se da mesa e aproxima-senta ao lado de Leonardo. Veste uma blusa azul que aproxima-se confunde com a cor de seus olhos furtivos, e traz sobre si a aura dos que amam a vida, dos que enxergam o mundo como uma poesia possível.

Artemísia permanece sobressaltada, a fitar o belo rapaz sentado à sua frente, mas que evidentemente não pode vê-la. Leonardo pega então a mão de Artemísia e a coloca sobre a mão do jovem, a quem o chama de Leon. E então conta a ele sobre Artemísia, a mulher que o gerou no ventre e que estaria ao seu lado até hoje, não fosse a crueldade a permear o espírito de alguns elementos de nossa espécie humana.

Leon, mesmo sem vê-la, sente sua mão sobre a dele, e pergunta o que ela quer que ele faça por ela. Artemísia, nessa hora radiante, pede apenas que ele nunca pare de cantar, pois sempre que ele está cantando, ela o ouve do outro lado da ponte onde hoje vive. Leon então se levanta

e volta ao caraoquê, e antes de começar a entoar uma nova canção, anuncia que aquela música é uma homenagem à sua mãe Artemísia Vince, que para sempre estará presente em seu coração. E por um instante para ela quase infinito, permanece embevecida enquanto o ouve cantar as músicas que ela cantava nos tempos em que por aqui esteve, e quando retorna para o outro lado da ponte onde hoje habita, Artemísia contempla o firmamento e vislumbra um horizonte a alternar-se nos mais belos e alegóricos matizes, formando um esplêndido caleidoscópio.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 65-77)