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II – Dossiê Hideki

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 99-107)

No dia 21 de julho de 1994, uma quinta-feira, Silnara Hitaka, 30 anos, sentiu o coração sair do compasso quando viu apenas os filhos dos vizinhos voltarem da escola.

— Cadê o Biel? — questionou a mãe, apreensiva. Perguntando sobre o menino de dez anos, que deveria retornar com os demais.

— Não vi — respondeu uma das crianças.

— Eu também não. — respondeu outra. — Na verdade, não o vimos o dia todo.

— Verdade. Ele não foi para escola hoje.

— Como assim? Eu o deixei do outro lado da rua, na frente do colégio, antes de ir trabalhar. — inqueriu a mulher, começando a se desesperar.

— Tia, ele não foi. Não o vimos em lugar nenhum.

Diário Renascer, p. 8; junho, 2004.

É charmoso esse arco de pedra, com estatuetas de anjos ao longo de sua extensão. Contudo, suas palavras me inquietam. Cheguei à cidade enquanto a tarde estava nublada. Na estrada, vim observando a paisagem correndo em caminho contrario a direção do ônibus. Pensava em tudo o que vivi ao longo de minha pequena história e em tudo o que viverei depois daqui. Os fones tocavam uma canção que falava sobre acreditar em si mesmo, estranho ao ser dito por dragões imaginários. Desci na rodoviária da cidade, e caminhei entre uma profusão de pessoas que iam e viam, algumas ficavam e outras partiam para nunca mais voltar.

Enquanto olhava seus rostos passarem por minha visão periférica, pensava nos caminhos das vidas que se entrelaçam e nos laços das almas interconectadas. Há relações de carinho e amizade, que nem mesmo o tempo ou espaço, quiçá a própria morte, podem desfazer. E essas conexões, nos antigos mitos, são representadas por finas linhas escarlates que conectam os indivíduos. Quantas delas devem estar se entrecruzando nessa estação? Será que alguma, um dia, irá se emaranhar na minha? Foi nesse momento que, indo em direção ao ponto de taxi, vi os traços da realidade se romperem como ondas feitas por uma pedra jogada sobre a

superfície de um lago, a partir do revoar de uma borboleta solitária, que passou ao lado direito do meu rosto, emanando um brilho tênue de suas assas avermelhadas. Estaquei, e senti meu ombro sendo empurrado pelo choque com algum estranho que se desculpou. Ouvi sua fala muito longe, virei-me a fim de balançar a cabeça em concordância e observei seus lábios em câmera lenta, enquanto continuava em passos igualmente retardados. Todos estavam caminhando devagar, à medida que a realidade tremeluzia, e desapareciam como simples névoa quando saiam da minha área de percepção, enquanto risos de crianças chegavam em meus ouvidos e notei passarem pequenos vultos, se perseguindo mutuamente, como que em uma brincadeira. Voltei o rosto para a direção que caminhava até então e vi a borboleta pairando, enquanto sua conjuntura perdia a forma, tornando-se uma silhueta nebulosa que ecoou meu nome de uma boca não vista. Apontou para uma direção, contraria de onde intencionava ir.

— Rapaz? Tudo bem com você? — ouvi, tais palavras vindas de longe. E, sentindo um leve toque em meu ombro esquerdo, despertei com um desconhecido a minha frente.

— Sim, estou ótimo. — respondo, recobrando o controle dos sentidos. — Estava apenas tentando lembrar para onde preciso ir. — concluo, falando com o senhor que ostenta um crachá que o identifica como taxista. Então, entrei em seu veículo e pedi para ser trazido aqui.

Pois, precisava fazer uma visita importante.

“É um momento muito delicado para toda a comunidade, pois afeta a todos nós como indivíduos, sobre tudo como pais que ficam preocupados com a segurança dos seus anjinhos. Pois, já somam seis desaparecidos em três anos. Saibam que as portas da igreja Restauradora dos Últimos Dias estão abertas aos fiéis. A morada do clã Hideki, está aberta para todos aqueles que buscam alento. Continuamos desenvolvendo um trabalho de alfabetização eclesiástica com os pequenos, para que encontrem o caminho de paz e segurança com Deus.

E vamos juntos, igreja, comunidade e justiça, resolver esse mistério e estancar as feridas dos corações que sofrem. Lembrem-se sempre, conhecereis a verdade e ela vos libertará.”

Coluna Pastoral, p. 3; junho, 1997.

Atravesso o portão e sigo em meio a planície verdejante com lápides a se perder de vista. O cemitério Caminho do Renascimento é muito antigo, fundado pelos primeiros imigrantes que chegaram a essa região. Continuo com passos lentos enquanto a chuva fina se mantém constante, beijando a minha nuca, vinda do sul. Gélida, preludiando o inverno. Me abraço, envolto no moletom, tendo uma mochila as costas.

Pois, já havia despachado a bagagem, para o hotel, no táxi que me trouxe.

Continuo, lentamente, tendo na memória lampejos da infância de quando vim aqui, afim de visitar o mausoléu ou participar de eventos religiosos.

Lembro bem o caminho que devo seguir, para poder visita-los. Desde que fui morar na capital, me afastei dos preceitos cristãos da família. Quem

diria, o último Hideki é ateu. Com as nuvens tingindo de cinza o crepúsculo que se aproxima, está cada vez mais difícil enxergar a frente com toda esta neblina e percebo que estou perdido. Devo ter virado errado em alguma lápide de um desconhecido. Mas, continuo em frente.

À menos que tenha andado em círculos, sei que o caminho não é para trás. Busco focar nas lembranças de outrora, imaginando o percurso em um dia ensolarado, muito diferente do que tenho agora, enquanto me abraço ainda mais forte, pois está cada vez mais frio. À noite se apodera, a cada segundo, do dia que já não mais luta por existir. A sombra do crepúsculo já aceitou seu destino e a vermelhidão começa a se vestir de preto. Sei que existem postem elétricos por aqui, contudo, não consigo enxergar seu brilho. Entrementes, as memórias se desmancham feito tinta na chuva, e penso ter visto meu irmão iluminando o destino com uma lamparina. Minha respiração fica ofegante e posso perceber o ar frio que minha boca expele. Mesmo assim o segui, até o fim do caminho e o vi desaparecer a frente da construção gótica que trazia entalhado em seu umbral a forma de um quimono com o C.H. e cordas ao redor, o brasão familiar. Empurro um dos lados da pesada porta e adentro a galeria, com ataúdes de mármore em caves laterais, infestada de teias de aranhas e tendo dois pilares com tochas acessas ao centro, ladeando uma grande cruz entalhada de ideogramas que representam glória e prosperidade. De soslaio, consigo definir reflexos escarlate e me viro a tempo de ver um objeto cair no chão. Dou um sobre salto e começo a olhar em todo o redor, circulando em meu próprio eixo, esperando por acontecer alguma coisa

que não sei o quê ao ouvir o eco do meu nome sendo dito, em torvelinho, por diversas crianças ao mesmo tempo. Essa repercussão despertou uma revoada de morcegos que juntaram o barulho de suas asas a algazarra infantil, formando uma nuvem revolta que começa a circular o altar, fazendo as chamas bruxulearem, e depois avança, atravessando a porta, em direção a noite beijada pela garoa. Prossigo, temeroso, em direção ao objeto e, a frente, consigo distinguir quatro ataúdes. Leio o nome do meu pai e do meu irmão, graças a pouca luz tremeluzente que me possibilita enxergar, pude então perceber que o fim desse caminho era um ponto de partida. Pois, dois deles, estão vazios.

O jovem de vinte e um anos Daniel Hideki foi assassinado pela própria mãe, Abigail Hideki. Segundo testemunho do Sr. Hideki, o rapaz havia chegado em casa alterado e “Era notável o sinal de que havia consumido bebida alcoólica e possivelmente drogas. Minha esposa estava muito aflita, pois nosso filho casula, Matt, fora levado da escola e Daniel sabia onde ele estava, mas não queria revelar. Disse que o estava protegendo. Ela ficou colérica, e isso prejudicou muito o seu estado, pois sofre de problemas psicológicos. E, enquanto buscava controla-lo, aceitando calado todos os impropérios que dizia, Oh Deus, ela o apunhalou. Eu, só percebi quando aconteceu e não pude fazer nada para salvar meu amado filho.” A suspeita foi detida e não manifestou resistência à prisão.

Notitia Criminis; agosto, 2001.

Achei o caminho de volta quase que por extinto e peguei um taxi para o hotel. Após acordar, hoje pela manhã, não tinha certeza se havia vivido ou sonhado, mas, com o passar das horas, uma questão dominou a minha mente. Em todo esse tempo eu não tive notícias dela. Me foi revelado que não possuía mais parentes e, considerando que meu pai era filho único, meus avós morreram antes de eu nascer e meu tio Samuel, que cheguei a conhecer, morreu em um acidente de carro, intui erradamente o que foi dito.

A comunidade está ferida com morte trágica do bispo. Fora encontrado por uma de suas funcionárias, enforcado nos galhos de uma arvore de sua propriedade. Não havia sinais de roubo ou luta corporal. Acredita-se que o cristão tenha tirado a própria vida, enquanto outros atribuem o ocorrido a chamada maldição do clã Hideki. Seu corpo foi enterrado no mausoléu familiar, na tarde da segunda-feira (07), e ritos e homenagens seguem até o fim de semana em memória do grande homem e de sua obra de evangelização.

Coluna Pastoral, p. 1; agosto, 2002.

Me apresentei ao xerife Himura e comuniquei que, frente a pesquisa que realizava, desejava ter acesso as informações dos casos que envolviam meus parentes.

— Posso lhe garantir que não temos nada de novo, além do que já foi divulgado. — e me encarou do outro lado da mesa, enquanto a

lâmpada amarela derramava um tom melancólico em seu rosto. Pegou um cigarro da carteira sobre a mesa e ascendeu enquanto dizia. — a não ser a carta, que mantivemos em sigilo.

— Carta, que carta? — perguntei atônito.

— Quando recebi sua ligação, hoje cedo, soube na hora que iria se interessar por isso. — falou, enquanto tirava uma pasta suspensa de uma das gavetas e me entregou — É uma loucura suicida. Seu pai era querido, um bom homem de Deus. Não achei honroso divulgar seus delírios. — tentei pega-la, mas ele continuou segurando e me encarou profundamente. Sustentei seu olhar e disse — Obrigado, pelo auxilio.

— Lembre-se que o ajudei, patriarca Hideki. — respondeu, e então soltou.

À porta da delegacia, próximo ao táxi que me aguardava, pude ver, seguindo a estrada que levaria ao caminho da mansão, pairar uma revoada escarlate. Então, entro no veículo.

— Para mansão da colina, por favor. — o homem vira o corpo, no assento a frente, e me encara.

— Tem certeza, garoto? — encaro de volta, incisivo, sem emitir resposta.

— Para lá então, mas lhe digo que não poderei esperar. — falou, voltando sua atenção para o volante e iniciando o percurso.

— De acordo. — concluo, sem demonstrar interesse, e abro a pasta. Começo a folhear seu conteúdo e me detenho ao observar um papel amarelo com a assinatura do meu pai. Começo a ler.

— É um lugar amaldiçoado, podem ser ouvidas vozes e sermões do bispo que se enforcou...

Termino minha leitura silenciosa, enquanto o condutor discursa sobre o mau agouro da região e a casa sombria, e guardo o dossiê na mochila. No aclive, vejo o grande lago abaixo da colina, sendo cortado por pequenas embarcações. Sigo em contemplação, buscando aquietar o coração ansioso que pulsa ao passar de cada segundo.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 99-107)