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A Verdade Podre

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 77-83)

Por:

Walter Niyama

Mesmo que por computador, Marcelo estava feliz. A pandemia do Covid-19, uma doença que se alastrou pelo mundo, frustrou os planos do jovem para comemorar seu aniversário em grande estilo ao lado de seus amigos e parentes. Mesmo sendo um vírus com taxa de letalidade baixa, ninguém queria ser irresponsável, tendo muitos deles pais com sessenta anos ou idade próxima a isso.

O próprio Marcelo era de grupo de risco por conta de sua asma.

Mas ele entendia também que tinha sorte e privilégio de morar em uma casa confortável com o pai conseguindo manter o emprego no meio da pandemia fazendo home-office para a firma. Sua mãe, advogada, também estava cuidando de vários casos do escritório em casa, e quando saía, tomava todos os cuidados necessários. Por isso não se incomodou muito com o fato de sua festa ser feita através da tela de um computador, com todos os seus amigos online nos notebooks ou nos celulares, cada um em

sua casa celebrando. Eles botaram o papo em dia, jogaram games e ao fim cantaram “feliz aniversário” para Marcelo.

Sentado à mesa de jantar com o computador, seus pais vieram por trás e se juntaram ao filho, aumentando o volume de vozes na cantoria.

— Muitas felicidades... Muitos anos de vida!!!

E então Marcelo assoprou as velas em seu bolo e todos os amigos ali gritaram e bateram palma. Um deles até tentou puxar um “com quem será”, mas logo foi silenciado e todos riram do companheiro inconformado pelo que tinha acontecido.

— Brigado, gente, de verdade — agradeceu Marcelo. — Vocês não fazem ideia do quanto significa para mim vocês estarem aqui comigo, mesmo que virtualmente.

— Tamo junto, parceiro!

— Amigo é pra essas coisas!

— Você merece, lindo!

— Valeu, vocês são os melhores! — Marcelo agradeceu de novo.

— 18 anos, já é um homem.

— Já pode ir preso, há, há, há.

— Logo mais vai estar arrasando com as gatinhas na faculdade.

Sim, apesar da pandemia, estava tudo perfeito na vida de Marcelo que naquele momento completava 18 anos.

Na manhã seguinte, quando acordou, o agora adulto Marcelo notou um cheiro estranho. Ele levantou-se da cama e cheirou seu lençol. Sim, estava impregnado, mas a fonte era... Ele mesmo. O jovem estava

surpreso, não havia suado nem nada, mesmo assim sentia um odor estranho em todo o seu corpo. O rapaz encostou seu braço próximo ao nariz. Sim, definitivamente estava vindo dele o cheiro.

Marcelo demorou-se no banho e mesmo assim o odor estranho continuava nele. O que podia ser? Não fazia sentido seu corpo inteiro estar com aquele mesmo cheiro esquisito. Batidas na porta do banheiro.

Seu pai queria tomar banho também.

O rapaz não queria preocupar os pais a toa, por isso passou desodorante e perfume, na esperança de disfarçar o cheiro estranho.

Achando que tinha feito um bom trabalho, saiu do banheiro, cumprimentou o pai e voltou para seu quarto.

Os dias foram passando e o cheiro ruim de Marcelo só ia piorando.

Ele não conseguia mais se concentrar nos estudos, o fedor era muito forte.

No começo ele até conseguiu disfarçar com o perfume, mas chegou a um nível em que não havia nada a ser feito. Ele começou a viver rodeado de insetos, atraídos por seu mau-cheiro. Não importava quanto inseticida usasse, sempre apareciam mais.

Seus pais achavam que ele estivesse simplesmente deixando de tomar banho, muitos estavam fazendo isso no período de isolamento social. Mas o rapaz explicou que não, que aquilo tinha começado do nada.

O pai se certificou de que o filho havia mesmo tomado banho. O odor horrendo continuava. Decidido, aquilo era uma emergência. Não iriam tentar descobrir o que era pela internet, o levaram para um hospital em que possuíam plano.

No hospital, o médico que o atendeu achou que talvez o jovem tivesse trimetilaminúria, também conhecida como “síndrome do odor de peixe”, mesmo que o cheiro que Marcelo exalasse, apesar de ruim, não lembrasse o de peixe podre. Os exames também constataram que não se tratava disso.

Uma médica achou que poderia se tratar de uma bromidrose. Mais uma vez os exames disseram que o diagnóstico estava errado. Os pais de Marcelo estavam se preparando para leva-lo ao hospital mais uma vez, quando ele, ao se levantar da cama, cansado, já que mal conseguira dormir por causa do cheiro, não encontrou força em suas pernas e ele tombou no chão, batendo a cabeça e desmaiando.

Marcelo foi levado às pressas para o hospital. Seus pais o levaram de carro. Sua mente oscilava pelo caminho, ficando consciente em alguns trechos. Assim que chegaram ao destino, uma equipe de especialistas o internou. O trabalho era difícil, a equipe estava reduzida, já que vários foram escalados para cuidar dos pacientes com coronavírus. O forte fedor que o rapaz exalava também não ajudava em nada. Uma das enfermeiras, a mais nova, chegou a vomitar.

Quando Marcelo recobrou a consciência, viu que se encontrava em uma cama hospitalar. Mesmo cercado por uma cortina, ele sabia que estava em um quarto de hospital. Havia eletrodos monitorando seus batimentos. Levando a mão para a cabeça percebeu que ela estava enfaixada. E o fedor... O fedor parecia mais forte do que nunca.

Ele esfregou os olhos com força, desesperado, até que sentiu algo estranho em seu rosto. Quando deslizou as mãos para baixo, percebeu que a pele de seu rosto estava indo junto. Ele conseguia ver a parte interna da pele seu rosto. Podre e em decomposição.

“Finalmente”.

— Hã, quem está aí? — perguntou Marcelo.

“Eu estou aqui. Sempre estive com você”;

— Meu Deus! — Marcelo gritou. Estava com raiva. Queria jogar tudo para os ares. — Estou ficando louco!

”Acalme-se, Marcelo. Logo tudo irá terminar”.

Marcelo começou a tentar respirar fundo e controlar sua respiração, mesmo com o fedor invadindo suas narinas. Tentava dizer para ele que a voz era apenas fruto de sua imaginação. Nada mais. Que assim que seus pais aparecessem, ele os avisaria sobre e logo ele receberia o tratamento necessário.

“Não sou fruto da sua imaginação, Marcelo. Sou o verdadeiro dono desse corpo. Você o roubou de mim, tentou expulsar-me dele, mas não conseguiu. Eu me escondi, vivi anos observando você viver a minha vida.

Achava que um dia iria consegui-la de volta, mas percebi que isso é impossível. Portanto, só me restava isso: deixar que a natureza agisse”.

Marcelo continuava insistindo mentalmente que era só sua cabeça lhe pregando uma peça. Nada mais nada menos.

“Você não se lembra, não é? Você é um morto. Deveria estar debaixo da terra. Ao invés de seguir para seu caminho natural, decidiu

tomar posse de meu corpo. Não se lembra disso? Bom... Talvez isso explique como possa ter vivido sem nenhuma culpa ou remorso todos esses anos. Vivendo como filho dos meus pais. Então você nem sabia que o estava enganando, que na verdade o filho de deles agonizava em silêncio e reprimido”.

— Enfermeira, médico, mamãe! Alguém me ajuda, por favor!

Estou enlouquecendo!

“Mas sabe, como morto, você não trouxe apenas sua alma de morto para dentro de mim, mas seu corpo também. Cansei de ficar vendo você ter a minha vida. Cansei de ver você crescer, ter amigos, amar, quando na verdade você deveria estar enterrado. Essa relação parasita acaba agora, com o hospedeiro morrendo. Revelando seu verdadeiro corpo para o mundo”.

— Socorro!!!

Quando um médico acompanhado de uma enfermeira enfim entraram no quarto, isolado por conta do fedor do paciente, eles deslizaram as cortinas para o lado e se depararam com Marcelo se automutilando com suas unhas, arranhando-se pelo corpo todo. Quando mais pele ele rasgava, mais ficava evidente uma carne podre e asquerosa.

O médico e a enfermeira tentaram avançar para cima dele, para pará-lo, mas ele ameaçou arranhá-los e mordê-los, o que os obrigou a chamar por ajuda.

Quando a ajuda veio, ele já estava morto.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 77-83)