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Por: Jeziel Bueno

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 185-197)

Foi em uma terça-feira tão ordinária quanto qualquer outra.

A princípio, como já era de se esperar, não acreditei no que estava diante dos meus olhos. Susan, minha esposa, estava me olhando, vestida em sua camisola de cetim com a expressão sonolenta, assim como em outras mil manhãs como aquela.

— O que foi? — perguntou, enquanto esfregava os olhos.

— Você está se sentindo bem? — foi a única coisa que consegui dizer.

— É claro! Está tudo bem. Sim, senhor! Tudo às miiiil maravilhas.

Ela se distanciou, rumo a cozinha, com seu jeito engraçado de caminhar quando estava com sono. Mesmo quando não estava com sono, Susan sempre fora uma pessoa engraçada.

O que acontece, na verdade, é que as coisas não estavam nada bem. Ou, inexplicáveis talvez fosse o termo mais correto a ser usado. Dos cabelos castanhos de Susan, projetava-se um pequeno chifre pontudo e curvo, de coloração vermelho escura e textura áspera. Segui-a pelo corredor, carregando como um idiota, uma caneca com café, a qual eu já havia me esquecido completamente.

Susan estava apoiada sobre o balcão, segurando nossa cafeteira elétrica e enchendo para ela outra caneca com café fumegante. Cheguei bem perto dela e por um momento, minha curiosidade quase me fez tocar com a ponta dos dedos, aquele chifre. Contudo, preferi não fazer isso, por razões conflitantes em minha mente. Por um lado, aquilo podia ser uma espécie de pegadinha. O chifre poderia ser uma prótese de plástico com a finalidade de me pregar uma peça, especialmente por estarmos na semana do Dia das Bruxas. O problema é que ele parecia tão real.

Mas o motivo real de eu não ter tocado aquele chifre era outro. Se eu tocasse e o sentisse sólido em minha mão, isso me diria algo muito importante.

Me diria que o chifre era mesmo real.

— Acabaram-se as frutas. — disse ela, da forma mais trivial possível — Você vai passar no mercado depois do serviço?

Abri a boca, mas as palavras não saíram. Susan, agora mais animada depois de tomar alguns goles de café, ergueu seus olhos para mim e me fitou com interesse.

— Você está pálido... Já comeu alguma coisa?

Prontamente, Susan se sentou diante da mesa e começou a preparar o meu desjejum. Mecanicamente, eu também me sentei e, apesar de ser quase impossível lutar contra o forte impulso de encarar aquele chifre em sua cabeça, me esforcei para agir normalmente. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo. Minha esposa havia desenvolvido uma protuberância em sua cabeça e aparentemente — e impossivelmente

— não havia percebido.

Mastiguei uma fatia de pão com manteiga que, naquele momento, mais parecia ter sido feita de papelão. O café também não estava com um gosto muito melhor.

Depois de alguns momentos, enquanto eu terminava de abotoar a camisa, vi com assombro, que Susan saía do quarto, vestida para o trabalho, maquiada e com os cabelos escovados, porém, o que mais me incomodaria seria o que ela faria a seguir.

Olhou seu reflexo no espelho e não viu o chifre.

Ela passou por mim e, apressada, me deu um beijo na bochecha e seguiu na direção da porta da entrada.

— Bom dia. Te amo!

— Também de amo! — eu respondi, me esforçando para proferir cada palavra.

Gastei quase meia hora para amarrar os cadarços do sapato. Fora o que havia acontecido, tudo ali parecia perfeitamente normal, os móveis permaneciam no lugar e cada pedacinho da nossa casa continuava da

mesma forma como sempre fora. Havia apenas uma coisa que não se encaixava. Uma coisa muito errada.

Minha esposa tinha um chifre na cabeça.

Dirigi até o trabalho e fui para o escritório como fizera durante todos os dias da semana pelos últimos quatro anos. De maneira distante, cumprimentei meus colegas brevemente e, uma vez que não estava com cabeça para desenvolver qualquer tipo de assunto, me dirigi imediatamente para a minha mesa. Mais tarde, no horário de almoço, escolhi o canto mais afastado de todos. Não queria parecer desagradável com meus colegas, mas minha mente estava um turbilhão de pensamentos.

As horas se passaram não tão lentamente quanto eu desejara. Em algum momento, olhei para o grande relógio de parede que havia no centro da sala.

17:45.

Faltavam 15 minutos para acabar o meu expediente e pra eu ter que voltar pra casa.

Quase uma hora depois e eu já estava estacionando na garagem, ao lado do Chevrolet de Susan que, como de costume, havia chegado mais cedo do que eu. Demorei alguns minutos a mais no carro, adiando algo que eu sabia que não poderia evitar. Enfim, rumei para o hall de entrada e subi de elevador até o nosso apartamento. Abri a porta e entrei.

Na sala de estar, a TV estava ligada e o apresentador do telejornal comentava alguma notícia sobre Economia. Ouvi o som de vasilhas

sendo manuseadas e percebi que Susan estava na cozinha, provavelmente preparando alguma coisa para o jantar. Ela passou apressada por mim e foi direto para a sala de estar. Agora o telejornal estava transmitindo uma matéria sobre hábitos alimentares saudáveis e Susan adorava esse tipo de coisa. Ela havia adotado recentemente os hábitos veganos, mas nós dois sabíamos que aquilo era apenas uma fase pois, assim como eu, minha garota não conseguia viver sem um bom bife. Segui seus passos e a encontrei de costas para mim, vestida apenas com uma das minhas camisetas, exibindo suas belas pernas. Admirei-a por um instante. Aquela imagem sempre me animava, Susan ficava linda quando usava minhas roupas. Vi a borda de renda de sua calcinha rosa. Demorei para subir o olhar, mas quando finalmente ergui os olhos, lá estava ele. O chifre curvo e vermelho se erguia do flanco esquerdo do crânio de Susan e... ele havia crescido? Talvez fosse fantasia da minha cabeça, assim como a própria existência do chifre em questão.

Assim que a reportagem acabou, Susan se virou em minha direção e um sorriso despontou em seus lábios instantaneamente.

— Ei, seu pervertido! — disse ela e só então percebi o volume em minha calça. Eu estava extremamente excitado... — É melhor se comportar, garanhão! Pelo menos até depois do jantar.

Ela passou por mim e deu um leve tapa em minhas nádegas.

Envergonhado pela situação, fui direto para o banheiro e tomei um longo banho. A seguir, me juntei a ela na mesa de jantar. Susan havia preparado alguma receita especial com tofu, brócolis e salada de batatas. Talvez

estivesse saboroso, mas naquele momento, não fui capaz de aproveitar a comida. Eu só conseguia prestar atenção naquele maldito chifre. Susan me falou sobre seu dia e sobre várias coisas que aconteceram no trabalho.

Me contou sobre a sequência nova — e desafiadora — de exercícios que seu personal trainer havia lhe indicado na academia. Me contou sobre várias coisas, mas não saberei falar com detalhes sobre nenhuma delas.

Quando fomos para a cama, Susan adormeceu extremamente rápido. De fato, ela estava bastante cansada. Em contrapartida, eu não consegui pregar os olhos nem por um momento. Só conseguia pensar naquele chifre e conseguia vê-lo mesmo quando estava com os olhos fechados. Todas as luzes estavam apagadas, mas mesmo assim, eu sabia que ele estava ali. Eu podia sentir aquela coisa profana no mesmo quarto e na mesma cama que eu.

Assim que os primeiros raios de sol começaram a surgir pelas frestas das persianas, me levantei. Dei a volta na cama e, após um longo suspiro, dei uma boa olhada para a mulher que eu amava.

E como me arrependi de ter feito isso.

Para o meu espanto, ela não mais possuía um chifre em sua cabeça. Agora haviam dois.

Durante a noite, o chifre que eu havia visto no dia anterior, projetando-se do flanco esquerdo da cabeça de Susan havia se tornado indiscutivelmente maior, estava agora com quase quinze centímetros. No flanco direito, agora um pequeno chifre, a versão anã do primeiro, começava a despontar por entre os cabelos de minha esposa.

— Bom dia! — a voz embargada de uma Susan despertando do sono me surpreendeu.

Tudo o que eu queria era empunhar um alicate e arrancar aquelas monstruosidades da cabeça dela, torcendo desesperadamente para que tudo voltasse ao normal. Sem outra alternativa, baixei o olhar e fiquei por um momento encarando meus próprios pés.

— Bom dia! — respondi.

Os próximos dias se passaram como um pesadelo para mim. Eu não conseguia comer direito, pensar direito. Meu rendimento no trabalho começou a ficar nitidamente prejudicado. Também comecei a perder peso. No terceiro dia, os chifres estavam enormes e percebi que não era apenas aquilo que havia mudado em Susan. Quando cheguei em casa, senti cheiro de carne vermelha sendo assada na grelha.

— O que houve com a dieta vegana, amor?

— Estou cansada de comer mato, meu bem! E eu estou com taanta fome...

E estava mesmo. Ela comeu três pedaços de bife enormes, o que me surpreendeu bastante. Susan sempre fora magra e suas refeições eram tão modestas que eu costumava dizer que ela comia feito um passarinho.

Mas não naquela noite, quando ela devorou vorazmente aquela quantidade significativa de carne a ponto de lamber os restos no prato.

De madrugada, dormiu feito uma pedra, bem diferente de mim, que já não conseguia mais dormir por causa daqueles malditos chifres.

No quinto dia, resolvi fazer um teste. Susan trabalhava e era óbvio que tinha que interagir com outras pessoas. A menos, é claro, que ela tivesse abandonado o trabalho e fingia todas as manhãs que saía para trabalhar. Esse pensamento era algo que me dava calafrios. Mesmo assim, resolvi pôr aquela situação à prova. Chamei um casal de amigos para jantar conosco em nosso apartamento. Na verdade, minhas reais intenções se resumiam em trazer outras pessoas para vê-la. Não era possível que alguém pudesse olhar para ela e não notar aqueles chifres enormes, vermelhos e que começavam a se retorcer.

Rogério e Mayara chegaram cedo. Trouxeram vinho e, assim que cumprimentaram Susan, eu não tirei os olhos deles, mas para minha surpresa, apenas sorriram e a cumprimentaram, sem esboçar qualquer reação em relação aos chifres.

Ou talvez eu apenas estivesse ficando maluco. Às vezes as pessoas simplesmente enlouquecem e está tudo bem com isso, não é mesmo? É sim, senhor!

O jantar correu sem problemas, mas Susan devorou sozinha meio rocambole de carne recheada. Comeu de uma forma que eu jamais havia visto, mal mastigando a carne a cada garfada. Todos rimos, contamos histórias e então eles foram embora. Susan se queixou de estar com dor de cabeça e foi pra cama cedo. Fiquei até avançadas horas da madrugada com a TV ligada, assistindo a algum programa qualquer. Depois, como um homem derrotado que não tem outra alternativa, arrastei os pés para

o quarto e me deitei. Estava tão cansado que, após várias noites sem dormir, eu finalmente adormeci.

Mas meu sono não durou muitas horas.

Acordei com um peso sobre meu corpo e quando abri os olhos, sob a penumbra, vislumbrei a silhueta de uma mulher em cima de mim, com a mão fechada sobre a minha garganta. Assim que ela percebeu que eu havia despertado, seus dedos começaram a pressionar o meu pescoço, as unhas compridas ferindo a minha pele. Então, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela abriu os lábios e falou. Mas aquela voz não era a voz da minha Susan.

— Eu vou comer a sua alma! — soou uma voz absurdamente grave, sobrenatural.

Desesperado, agitei meus braços e golpeei-a no rosto com toda a força, mais de uma vez. Meus golpes surtiram efeito e a mulher que eu amava foi arremessada para fora da cama. Por causa do estrangulamento, minha traqueia estava ardendo e por isso, tossi violentamente. Me levantei da cama com a respiração ofegante e caminhei na direção dela.

Susan estava caída sobre o assoalho e um pequeno filete de sangue escorria de um corte em seu lábio superior. Ela havia mudado bastante desde a última vez que a vi, os chifres agora estavam enormes, o que veio primeiro, já estava com quase trinta centímetros de comprimento e o que veio depois, pouco mais de quinze. Olhou para mim com pupilas extremamente dilatadas e brilhantes.

— O que aconteceu? — ela perguntou, confusa e atônita, mas agradeci a Deus por estar falando com sua voz normal.

Sem saber qual a maneira correta de proceder, eu me levantei e a abracei. Abracei-a bem forte, absorvendo o máximo que podia do seu calor. Em meio a uma leve nódoa de odor de enxofre no ar, senti, mas com dificuldade, uma nesga do perfume de seus cabelos.

— Vai ficar tudo bem! — eu disse — Vai ficar tudo bem!

Eu não podia estar mais enganado.

Por mais que eu achasse que não iria dormir — isso já estava se tornando uma rotina para mim — acabei cochilando na poltrona ao lado da cama. Quando despertei, quase parei de respirar quando percebi que ela estava vazia. Susan havia desaparecido. Desesperado, procurei-a por todo o apartamento, mas ela havia saído e deixado a porta de entrada aberta. Ou melhor, havia deixado a porta escancarada. Corri ao aposento que chamávamos de quartinho da bagunça e apanhei uma caixinha de madeira que havia herdado do meu pai. Sem tempo a perder, apressei-me para fora do apartamento. Susan não estava no corredor. Desci ao térreo pelo elevador e ela também não estava no hall de entrada. Saí do prédio e comecei a caminhar a passos largos pelos arredores. Em nosso condomínio, havia uma região mais afastada onde ficava o playground para as crianças e foi ali que a encontrei. Mas Susan não estava sozinha.

Uma garotinha de não mais de seis anos, cabelos loiros e vestidinho cor de rosa, estava encarando a minha esposa. Os olhos da menina estavam sem vida, como se ela tivesse sido a cobaia de um

hipnotizador. Devagar, a garotinha caminhava lentamente na direção de Susan.

Uma presa indo ao encontro da serpente.

— Susaaaaaaaan! — gritei a plenos pulmões.

Ao ouvir meu grito, a garotinha acordou do transe. Olhou para os lados, confusa, como se não tivesse a menor ideia de como havia parado ali. Correu e desapareceu por entres os prédios do condomínio. Já Susan, por sua vez, voltou seus olhos para mim e senti uma mão gelada subindo pela minha espinha. Susan não era mais Susan. Agora a pele dela estava toda vermelha, com uma textura emborrachada. Os chifres adquiriram uma coloração de vermelho escuro, como se tivessem sido tostados no fogo e estavam ainda maiores e mais retorcidos do que na última vez. As mãos outrora delicadas de minha esposa agora terminavam em longas garras pontiagudas e seus pés descalços, encontravam-se bifurcados como pés de bode. Mas o que mais me aterrorizava eram os olhos. As pupilas figuravam agora recortadas, como os olhos de uma víbora, sob órbitas amarelo douradas. Quando me fitou, estremeci por completo, como se tivesse sido tocado pelas mãos de mil almas desesperadas. Uma língua bifurcada sibilou por entre seus lábios e ela falou, mas uma voz grave e demoníaca falou junto com ela.

— Me desculpa! Mas eu estou com taaanta fome.

Com lágrimas nos olhos, abri o fecho da caixinha de madeira do meu pai e a abri. Susan adquiriu uma malícia no olhar e, estendendo as

garras na minha direção, começou a se aproximar de mim. Gritou. E seu grito ribombou feito um trovão.

Meti a mão no interior da caixinha e puxei de dentro dela o revólver .38 do meu pai. Rolei o tambor e depositei apenas uma bala em seu interior. Ergui o braço e apontei para a dona do meu coração.

Puxei o gatilho.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 185-197)