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Por: Eduardo Canesin

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 30-37)

11h30 da noite. Estava frio e as ruas estavam quase desertas — afinal, ainda era segunda-feira e, acima de tudo, aquela região era famosa por ser perigosa. Raiane corria, descalça, noite adentro. Dirigia-se ao bairro da Luz, antiga Cracolândia, seu lar.

A menina tinha oito anos e corria desesperada e sozinha. Aliás, não poderia ser diferente: nascida e criada nas ruas, só podia estar sozinha.

Sempre. Mesmo quando acompanhada de sua mãe — o que não era o caso agora.

Ranho escorria pelo seu nariz e seus olhos estavam embaçados com o choro. Suas mãos sujas esfregavam a cabeça dolorida. Estava quase sem fôlego, mas não parava de correr. Não podia parar.

Se parasse, aquilo — fosse o que fosse — a pegaria. Ela sabia disso.

Aquelas ruas, mesmo desertas e escuras, nunca atemorizaram Raiane, que estava acostumada a percorrê-las independentemente do

horário. Era assim, afinal, que ela conseguia levar drogas ou desempenhar as tarefas que lhe exigissem — tudo em troca de algumas moedas, que sempre eram confiscadas por sua mãe (que invariavelmente as usava para comprar crack).

Raiane nunca conheceu seu pai e tudo que tinha era uma mãe viciada que também vivia nas ruas. Uma mãe que não amava a filha — afinal, se amasse, jamais teria deixado aquele velho fazer coisas tão terríveis com ela, em troca de dez reais. Mas aquilo era história antiga, já acontecera há uns dois meses. O que preocupava a menina era um outro assunto, bem atual e ainda mais terrível.

Tudo começou na tarde daquele dia. Após passar horas infrutíferas mendigando, a menina não conseguiu muito dinheiro. Voltou para a Praça da Sé, local que estava lhe servindo de morada nas últimas semanas

— dado que sua mãe estava sendo procurada na Luz, por ter roubado um comerciante da região.

Ao chegar na praça, tentou implorar algumas moedas para os turistas que saíam da catedral, mas rapidamente foi enxotada dali, já que outras crianças, maiores e mais fortes, tinham aquele espaço como seu ponto de mendicância.

A menina tentou argumentar da melhor forma que podia: com socos, pedradas e pontapés. No entanto, acabou derrotada pelos meninos da região, que também dominavam (e melhor do que ela) as regras e argumentos do debate das ruas.

Machucada e nervosa, saiu de perto deles e procurou pela mãe.

Apesar de a progenitora sempre ficar em algum canto da praça, não era uma busca tão simples: havia muitas pessoas naquela mesma situação, amontoadas pelos cantos, ociosas, sob efeito de alguma droga.

Ainda assim, a menina encontrou quem procurava. O curioso é que Raiane nunca parou para se perguntar o motivo para procurar tal pessoa:

a mãe não lhe fazia bem, tampouco cuidava dela. Apenas a agredia, gritava e tirava suas moedas. A despeito disso, a garota sempre continuava com suas buscas e voltava para aquela mulher.

O sol começava a se pôr. Raiane se aproximou da mãe e viu, pela atitude nervosa dela, que estava com crise de abstinência, desesperada para conseguir crack. Sem receber nenhum cumprimento ou saudação, a menina foi puxada e chacoalhada, para lhe entregar as moedas.

Raiane gritou alguns palavrões, mas, por fim, cedeu e entregou o parco dinheirinho. De tão parco, ainda apanhou da mãe, que estava irritada. Tudo aquilo acontecia em frente a um policial que passava pela praça e fazia vista grossa para eventos daquele tipo: seu dever era impedir que os miseráveis assediassem os cidadãos de bem. Entre si, os viciados poderiam se matar, que ele não se importaria. Até ficaria feliz, pois significaria menos gente dispensável no mundo. De todo modo, naquela tarde ninguém matou qualquer outra pessoa — ao menos não lá.

Com as moedas colocadas no bolso, a mãe de Raiane andou até um traficante, que ficava na praça, agindo numa semi-clandestinidade: todos

sabiam que ele era traficante, mas, como não criava problemas e pagava o pedágio corretamente, os policiais o deixavam agir em liberdade.

A mãe deu o dinheiro, recebeu uma pedrinha e, com as mãos trêmulas, começou a fumar a única coisa que a acalmava. A única coisa que amava.

Raiane seguiu a mãe durante todo o trajeto, chorosa e irritada.

Pouco depois, correu para ganhar a sopa que era distribuída toda noite naquela praça. Pegou a fila rotineira e conseguiu se alimentar. Aquilo e algum lanche que ganhava durante sua mendicância diária eram os únicos alimentos que a menina tinha a cada dia. Justamente por isso, estava esquelética e doente — embora não soubesse de sua doença, já que não consultava um médico. E, além do mais, não estava tão esquelética quanto sua mãe, a qual não pegou sopa naquela noite, já que tinha um manjar muito mais apetecente, sua droga.

Sem estar saciada ou aquecida, tampouco com o humor melhor, a menina terminou a sopa e voltou para perto de sua mãe. Os minutos se passaram e viraram horas. Quando já era umas dez da noite, a adulta se levantou, como em transe, e começou a andar.

Raiane não estranhou aquilo: no que lhe dizia respeito, sua mãe sempre aparentava estar em transe, quando sob efeito de drogas.

Acompanhou a progenitora, sem lhe dirigir palavra e sem que a palavra lhe fosse dirigida: esse era o diálogo entre as duas, o silêncio que nada dizia.

Andaram e andaram por bastante tempo (a menina não sabia precisar quanto e, mesmo se soubesse, não faria diferença). Estava ficando com sono, queria dormir, mas a mãe continuava em sua caminhada.

Passaram pela República, já deserta àquela hora. Tudo estava escuro. A mãe seguia com sua caminhada incerta, com os passos lentos e fracos. Em determinado momento, Raiane ficou apreensiva: aquelas ruas vazias não costumavam ser percorridas pelas duas àquelas horas. O que sua mãe pretendia?

Será que a mulher estava irritada por ter recebido poucas moedas e emprestaria a filha para mais algum velho, em troca de dinheiro? Raiane estremeceu e ficou nervosa só de pensar nisso. Ainda assim, não resmungou, pois sabia que não faria diferença.

Já passava um pouco das onze quando Raiane viu, no fim de uma rua pouco iluminada, uma pessoa parada. Uma mulher baixinha, idosa, com alguma terrível deformidade na face desfigurada. O que era aquilo, que a menina nunca tinha visto na vida? Raiane só pensava que não gostaria de ser daquele jeito: a cara retorcida tinha uma cor esverdeada, os dentes, irregulares e pontudos, saltavam para fora da boca. A velha não parecia ter narinas, apenas orifícios cravados em um rosto detestável.

O mesmo valia para as orelhas, que Raiane não conseguiu localizar.

A idosa usava uma peruca loira, tão velha quanto sua usuária:

várias partes estavam desbotadas ou tinham sido arrancadas. Olhando de perto, aliás, seria possível ver que haviam tufos de várias cores de

cabelos, todos sujos e desgrenhados. Era, sem sombra de dúvidas, a pior peruca já feita — não que Raiane tivesse alguma experiência para analisar isso objetivamente ou estivesse pensando em tal assunto naquele instante.

Na verdade, a menina apenas pensava que estava com medo.

Conforme se aproximava daquela idosa, sua espinha gelava, sobretudo quando via em mais detalhes o estranho rosto numa cabeça desproporcionalmente grande, se comparada com o resto do corpo. Ela tentou puxar a mãe, mas sua progenitora seguiu andando, em transe.

Quando estavam a uns três metros da idosa, Raiane ouviu que ela balbuciava algumas palavras melodiosas ininteligíveis. Será que estava cantando? A menina não parou para refletir sobre o assunto, apenas continuou em pânico. Estacou e não queria mais se mexer. Sua mãe, que até então andava, indiferente à filha, também parou e segurou a menina pelo braço.

A idosa se aproximou os últimos passos, tropegamente, e ficou em frente das duas. De perto, era ainda pior do que Raiane imaginara.

Justamente por isso, assim que a velha segurou uma mexa de cabelo da garota, Raiane empurrou a mãe e saiu correndo. Sentiu uma forte dor, já que a velha puxou seu cabelo. Quase caiu, mas, recuperando o equilíbrio

— e perdendo alguns fios de cabelo —, continuou com a fuga, indiferente à progenitora e com um temor que jamais poderia ser colocado em palavras.

Ouviu um forte grito — não sabia se vinha de sua mãe, caída no chão, ou da velha, que começou a correr em disparada (numa velocidade que seus passos trôpegos de poucos segundos antes jamais permitiriam prever). Olhou para trás mais uma ou duas vezes e sempre percebia que aquela idosa maligna estava atrás dela.

Nisso, passaram-se vários minutos. Raiane estava quase sem fôlego, com ranho escorrendo pelo nariz e os olhos embaçados pelas lágrimas. Não sabia o que estava acontecendo, só sentia que tinha de correr. Correr e correr. Fugir. Mas para onde?

Tentava chegar à Luz, local em que era conhecida por alguns moradores de rua e no qual se sentia segura. Mas teria como ficar segura contra aquilo? Contra aquela terrível idosa?

Raiane estava apavorada, quase caindo no chão, sem forças. As ruas estavam desertas, não havia quem pudesse socorrê-la. E, mesmo que houvesse, alguém a socorreria? Desesperada, a menina pisou em falso, com os pés doloridos com a corrida, e caiu.

Ficou no chão por alguns segundos, recuperando o fôlego — sem êxito. Tudo estava tão escuro, vazio e silencioso… Raiane olhou ao redor e não viu nada, mas não pôde se alegrar. Ouviu, próximo a si, um assobio melódico e algumas palavras sendo proferidas. O som ficava mais alto a cada segundo e a garota não tinha forças para se levantar.

No documento VÁRIOS AUTORES 1 (páginas 30-37)