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1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

2 A experiência brasileira no campo do patrimônio cultural imaterial Optamos por destacar a experiência brasileira não apenas porque um dos

2.3 Os desafios para uma implementação efetiva da política patrimonial brasileira

Todo esse contexto é otimista na medida em que apresenta progressos importantes e coloca o Brasil como figura relevante no debate patrimonial frente a instituições internacionais como a UNESCO e o Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina (CRESPIAL). No entanto, o país enfrenta grandes desafios para a consolidação desses avanços, com questões bastante complexas a serem resolvidas no campo da cultura e do patrimônio.

Por um lado, os desafios com as questões de ordem econômica comuns à seara patrimonial no mundo todo – como é o caso das distorções de uso protagonizadas especialmente pela figura do mercado (conforme demonstrado em seção anterior). Por outro lado, os assuntos relacionados à cultura continuam sendo tratados como periféricos pelo Estado brasileiro, sem nenhuma centralidade na administração pública do país. Essa ausência de protagonismo faz com que a trajetória cultural e patrimonial no campo político seja marcada por um quadro de

36 Segundo levantamento de Marins (2016), até o ano de 2015 o Conselho Consultivo do

IPHAN havia indicado o registro de 38 bens imateriais, uma média de 2,9 nominações anuais. De acordo com a análise do autor, trata-se de uma “média baixíssima que é, em parte, oriunda de uma metodologia mais sofisticada e lenta do que as antigas práticas de identificação e nomeação do patrimônio edificado, tradicionalmente descritivas e feitas sem consulta a sociedade local. Não há, contudo, como negar que o investimento do Estado nessa ação é de escala obviamente irrelevante em relação ao rol de bens materiais, que recebeu 167 tombamentos na década de 2000 e 123 entre 2011 e 2015. (MARINS, 2016, p.18)

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instabilidade e vulnerabilidade, sendo bastante comum a descontinuidade de projetos e uma oscilação constante entre avanços e retrocessos37.

O campo do patrimônio imaterial precisa enfrentar, ainda, um conjunto de desafios específicos que interferem na implementação efetiva da política vigente. Nesse sentido, segundo avaliação de Márcia Sant‟Anna (2015) – que gerenciou o DPI de 2004 a 2011, o que mais chama a atenção é que o aparelho estatal, mesmo depois de quase duas décadas de legislação, ainda oferece resistência com relação à salvaguarda de bens imateriais oriundos da cultura popular e, além disso, ainda insiste em uma compreensão equivocada de que o registro é um recurso com alcance apenas declaratório, sem consequências jurídicas e obrigações legais. Em estudo recente sobre esta questão, Queiroz (2016) defende a eficácia jurídica do Decreto 3.551/2000 e sua capacidade para produzir efeitos legais. Amparado pelo texto da Constituição Federal – especialmente nos Artigos 215 e 216, base de interpretação do registro, o autor posiciona o instrumento como ato protetivo dotado de efeitos jurídicos concretos.

A hipótese foi construída a partir do marco das teorias neoconstitucionalistas que defendem a força normativa da

Constituição. Assim, ainda que não houvesse a devida

regulamentação infraconstitucional, o que não é a realidade do patrimônio imaterial, dada a existência de um conjunto de normas

37 Elegemos alguns fatos recentes que ilustram esse quadro de instabilidade e

vulnerabilidade. (i) Em 2016, assim que tomou posse, o então presidente Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura e o rebaixou à secretaria no Ministério da Educação; (ii) no mesmo período, uma manobra presidencial criou a Secretaria Nacional de Patrimônio Histórico, que seria destinada, especialmente, para a concessão de pareceres técnicos de obras de grandes dimensões. Segundo servidores do IPHAN, a razão real para essa mudança foi a tentativa de driblar uma Instrução Normativa de 2015 que estabelece que o órgão participe da análise de licenciamentos de obras, de forma a assegurar que o patrimônio nacional não seja danificado. Tudo indica que na nova secretaria os laudos seriam emitidos por cargos ligados aos interesses dos políticos e das empreiteiras e não por servidores capacitados do IPHAN. Essas situações demonstram que a posição periférica que a cultura ocupa na estrutura estatal, abre precedentes para um uso desvirtuado de bens culturais e patrimoniais. A grande pressão popular, da classe artística e intelectual frustrou as duas tentativas – o MINC foi recriado e a Secretaria do Patrimônio não se efetivou. (iii) Em 2019, assim que toma possa, o então presidente Jair Bolsonaro extingue o MINC e cria uma Secretaria para cuidar do tema, anexada ao Ministério da Cidadania. Essa medida, somada a muitas outras que vem sendo levadas a cabo, fragiliza radicalmente mais uma

vez as políticas de cultura no país. Ver cobertura das notícias em

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1833974-governo-quis-esvaziar-orgao-que- cuida-do-patrimonio.shtml e https://oglobo.globo.com/cultura/minc-um-ministerio-deriva-em- meio-tempestades-do-governo-temer-21485901. Ambos acessados em 24 set. de 2018.

95 legais e infralegais, o Registro tem o seu efeito extraído da própria Constituição Federal de 1988. (QUEIROZ, 2016, p.34)

Esse entendimento titubeante por parte da própria estrutura estatal ressoa diretamente na quantidade de recursos investidos no setor e, como um efeito bola de neve, os problemas de orçamento limitam uma série de ações, prejudicando diretamente o trabalho de mobilização dos detentores dos bens salvaguardados e de sensibilização do público geral.

Outra dificuldade apontada por Sant‟Anna (2015) é a baixa integração das áreas do governo nas ações relacionadas ao patrimônio imaterial, como é o caso da saúde, educação, previdência social, justiça, meio ambiente e trabalho. A mobilização de setores diversos em torno de uma área acentuadamente complexa e dinâmica como é a gestão do patrimônio imaterial deveria ser encarada como medida fundamental para a sustentabilidade dos bens por ela preservados.

Em 2017 Fortaleza foi palco do Seminário “Desafios para o Fortalecimento da Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil”, que reuniu representantes de instituições públicas, de organizações privadas e da sociedade civil para discutir as inflexões que avançam contra o universo patrimonial na contemporaneidade e avaliar os resultados da aplicação do Decreto Presidencial 3.551/2000. Como resultado do encontro, a II Carta de Fortaleza reafirma uma serie de princípios fundamentais para a ação institucional e da sociedade neste campo e alerta para a gravidade do momento atual.

A despeito dessas muitas realizações, a continuidade desse trabalho de salvaguarda encontra-se, atualmente, ameaçada pela crescente insuficiência de estrutura institucional, recursos humanos e financeiros; pela ausência de qualificação técnica apropriada de alguns ocupantes de cargos estratégicos e de gestão; pelo entendimento equivocado da noção de patrimônio imaterial e da sua salvaguarda, que ensejam apropriações indevidas de cunho meramente populista e que ignoram a complexidade desse processo; pelas crescentes e preocupantes intolerâncias de toda natureza e pelas mudanças políticas que afetam a estruturação do setor público. (IPHAN, 2017, p.2)

Partindo deste panorama, a Carta propõe dezesseis diretrizes para que seja viável a continuidade da política pública de salvaguarda no âmbito do IPHAN, das instituições estaduais e municipais de preservação do patrimônio cultural e das organizações da sociedade civil. Sendo este um documento construído de forma coletiva, através de um debate qualificado sobre o cenário contemporâneo do

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patrimônio imaterial brasileiro, seus aportes devem ser refletidos e levados em consideração por toda a comunidade que, de alguma forma, interage com esta temática. Assim, destacamos, de forma resumida, algumas dessas diretrizes:

 Impulsionar a cooperação entre órgãos da administração pública a fim de fortalecer o caráter transversal da política de patrimônio imaterial;

 Aprimorar a interlocução com a sociedade civil e os mecanismos e instâncias de gestão participativa nos processos de salvaguarda;

 Priorizar a estruturação da política nacional da diversidade linguística no âmbito do Ministério da Cultura;

 Democratizar o acesso às informações e documentos produzidos nos processos de identificação, reconhecimento e salvaguarda;

 Avançar em uma articulação institucional entre o IPHAN e Ministério do Meio Ambiente para a regulamentação das respectivas atuações no âmbito da proteção dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético;

 Criar um fundo orçamentário para ampliação dos instrumentos do PNPI;  Desenvolvimento de esforços para o reconhecimento e proteção da propriedade intelectual coletiva;

 Difusão de informações acerca do patrimônio cultural imaterial e dos processos e ações necessárias à sua salvaguarda, com vistas a ampliar a apropriação dessas noções e princípios pela sociedade;

 Ampliar e fortalecer iniciativas de salvaguarda em andamento;

 Defesa dos princípios da diversidade cultural a fim de coibir toda e qualquer violência física e simbólica. (IPHAN, 2017)

O presente nos mostra que grandes desafios ainda deverão ser enfrentados para o aprimoramento das políticas e da gestão da preservação do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Certamente a instabilidade do campo político brasileiro e a falta de protagonismo da cultura nas políticas de desenvolvimento do país são obstáculos reais que colocam em risco os compromissos firmados no nosso texto constitucional, os avanços da legislação patrimonial e a continuidade de programas e ações já em andamento. No entanto, a trajetória recente do IPHAN que narramos

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aqui – com a consolidação de um conceito ampliado de patrimônio, uma legislação que reconhece o seu caráter processual e dinâmico e o avanço dos processos de salvaguarda – demonstra que, mesmo em meio a um cenário desafiante, avanços importantes foram levados a cabo, o que inspira esperança para o futuro das políticas e ações patrimoniais no país.