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3 O que torna um patrimônio, Patrimônio? – o caso do Carnaval de Barranquilla

3.4 Organização popular: novos atores na dinâmica da festa

Como reação a essa trajetória marcada por uma gestão majoritariamente privada do Carnaval de Barranquilla, importantes mecanismos de resistência, de reivindicação e de apropriação da festa vem sendo criados por uma parte organizada de seus atores.

Nesse sentido, a privatização crescente da Via 40, impondo limitações de acesso do público ao local oficial dos desfiles, impulsionou a criação de novos espaços para a exaltação e vivência da festa carnavalesca, sendo o caso mais emblemático o “Carnaval da 44”, um desfile organizado desde 1984 pela Associação de Grupos Folclóricos do Departamento do Atlântico (AGFA), na figura de seu presidente Edgar Blanco, e já consolidado na programação da festa, inclusive elegendo sua própria Rainha Popular. Trata-se de um exemplo muito bem sucedido de protagonismo popular e que “se converteu em uma verdadeira alternativa para os grupos que não podem desfilar nos eventos oficiais e para muitos habitantes da

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cidade que não contam com os recursos necessários para deslocarem-se até a Via 40.” (SINNING, 2004, p.72, tradução nossa)

Esta iniciativa se desenvolveu de tal maneira que hoje mais de duzentos grupos de danças, comparsas e de fantasias participam dos cinco eventos que compõe a programação do “Carnaval da 44” – a Coroação dos Reis do Carnaval, a sua própria Batalha de Flores, a Grande Parada Carlos Franco, o Desfile Infantil e a Conquista do Carnaval. O fundador e responsável geral destas festividades, Edgar Blanco, explicou, em entrevista para essa pesquisa, o que lhe motivou a inaugurar esse novo espaço festivo na cidade.

Tem uma via importante aqui, que é a Via 40, onde fazem o carnaval oficial. Nós nos separamos dessa programação, dessa organização há vinte anos; e passamos a fazer nossos próprios eventos, o “Carnaval da 44”, que são cinco grandes eventos massivos, cheios de muita riqueza cultural, folclórica e patrimonial. E são completamente gratuitos. Nós, nesta proposta cultural, começamos em meio a controvérsias e hoje temos um projeto consolidado por mais de um milhão de pessoas que assistem aos nossos eventos. E se converteu em uma verdadeira opção para a gente, não somente que não tem recursos para ir pagar uns camarotes caríssimos no outro carnaval, mas é uma verdadeira opção patrimonial porque aqui

apresentamos nossas verdadeiras manifestações culturais

tradicionais. (Edgar Blanco, informação verbal, 2019)68

Com base nas informações que acabamos de apresentar e na experiência da autora em campo, é possível afirmar que, em comparação ao carnaval privado da Via 40, os eventos do Carnaval da 44 – também chamado de “Carnaval del Bordillo” (carnaval da calçada, do passeio público) – são acentuadamente mais democráticos, apresentando desfiles com a participação ativa de uma grande diversidade de grupos culturais da região do Caribe colombiano, com acesso livre para a população assisti-lo.

149 Figura 5 – Carnaval da 44

Fonte: Portal El Universal (2015).69

Sem dúvidas a criação de um novo espaço, democrático e popular, para festejar a cultura carnavalesca de Barranquilla é a maior conquista da trajetória da AGFA. Contudo, um outro fato marca de forma relevante a trajetória de quatro décadas desta entidade. De acordo com Edgar Blanco, até 2007 havia duas formas de um grupo cultural receber apoio financeiro para viabilizar sua apresentação no carnaval – uma opção era “buscar uma pessoa, que era um político de influência, para que este cedesse algum recurso”; a outra era chamar a atenção da prefeitura e dos meios de comunicação através de atos nem sempre muito ordeiros. Foi ele próprio, representando a AGFA, que mobilizou outros atores culturais da festa e articulou encontros para sensibilizar a gestão municipal de Barranquilla quanto à temática do fomento.

Mostramos a ele [ao prefeito Alejandro Char] que vínhamos fazendo atos de rebeldia, pressionando e questionando a atuação da prefeitura, dos meios de comunicação, “ameaçávamos” não sair no carnaval se não atendessem nossas exigências e sugestões, que nos estavam tratando de maneira indiscriminada. [...] Isso era um conflito todos os anos. Ver os diretores dos grupos folclóricos protestarem nos meios de comunicação, fazíamos plantões, fazíamos atos de protesto. (Edgar Blanco, informação verbal, 2019)

69 Disponível em https://www.eluniversal.com.co/sites/default/files/201502/. Acesso em 22

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Foi por esse caminho que em 2008 a prefeitura, através da sua Secretaria de Cultura, Patrimônio e Turismo, implementou o “Bolsa de Estímulos”, programa de apoio financeiro aos grupos culturais e àqueles que promovem eventos no carnaval. A partir daqui, os grupos e as entidades carnavalescas inscrevem os seus projetos e, de acordo com a avaliação de uma comissão, são beneficiados com o recurso. Na opinião de Blanco, esta conquista dignificou a distribuição dos recursos públicos, promoveu os atores e dinamizou a festa.

Estes recursos servem para ajudar com os trâmites para as licenças, para ajudar com o tema do vestuário e da música. Mais do que tudo, nos serviu para que mais de um milhão de pessoas nos veja em nossos eventos e se dignificou a entrega de uns recursos por parte do Estado local a diferentes organizações que realizam eventos no carnaval e, sobretudo, de maneira tradicional. [...] Hoje a Bolsa Estímulos facilita que muitas organizações façam eventos alternativos no Carnaval de Barranquilla. (Edgar Blanco, informação verbal, 2019)

A dimensão e a representatividade alcançadas ao longo de mais de três décadas dessa experiência exitosa que é o “Carnaval da 44” encorajou o surgimento de iniciativas similares, como é o caso dos já reconhecidos Carnaval da 17, Carnaval da 84, Carnaval do Suroccidente, Carnavalada, Noite de Tambó e Carnaval Gay.

Iniciativas como essas se configuram como movimentos reivindicatórios importantes frente à falta de representatividade, de reconhecimento e de espaço no modelo de “carnaval oficial” que é levado a cabo pela empresa gestora, em primeiro plano, mas também pelo poder público que compactua com o trabalho que vem sendo desenvolvido. Esses grupos constituem um novo tipo de ator na festa, que passa a representar a diversidade de vozes de muitos setores da cidade, complexificando a dinâmica sociocultural no contexto carnavalesco através da defesa dos seus direitos frente ao trabalho realizado pela empresa privada. A atuação dessas entidades revitaliza todo o tecido social da festa a partir das redes de reciprocidade e de relacionamento que articulam.

Todo esse movimento de resistência e de organização cidadã em torno do carnaval demonstra a persistência e a vitalidade da vocação popular da festa e da cultura popular em Barranquilla e na região do Caribe colombiano. (OLIVARES, 2006; SINNING, 2004) Como veremos nas seções seguintes, as tensões e as

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disputas em torno dos mais diversos atores sociais da festa se complexificarão a partir do recebimento do título oficial da UNESCO em 2003.