• Nenhum resultado encontrado

1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

2 A experiência brasileira no campo do patrimônio cultural imaterial Optamos por destacar a experiência brasileira não apenas porque um dos

2.6 A festa como patrimônio cultural imaterial

2.6.1 Por uma compreensão da festa

Émile Durkheim, na sua obra clássica “As formas elementares da vida religiosa”, nos ajuda a adentrar esse universo dos símbolos, configurando-se como farol para a busca por interpretações das suas tantas teias de significados. Ele nos apresenta o simbolismo como um fenômeno universal, o impulso que torna possível o sentimento de unidade de toda e qualquer coletividade humana, já que é o que forma as suas identidades. (DURKHEIM, 2014)

Durkheim, que considerava o universo religioso uma abreviatura de toda a vida coletiva51, defende que o sentimento de unidade do grupo de fiéis não seria possível sem a cerimônia, a liturgia e os objetos de culto (visão católica do simbolismo) diante dos quais se congregam estas pessoas. (NORIEGA, 2014) Mesmo com as ressalvas que a leitura dessa obra merece, especialmente aquelas relacionadas à teoria da

51 Durkheim acreditava que os principais aspectos da vida coletiva começaram como

variedades da vida religiosa, o que era justificado pelo fato de que até um tempo relativamente avançado da evolução as regras da moral e do direito foram indistintivas das prescrições rituais. (NORIEGA, 2014)

115

religião e da moral52, é consenso a sua grande contribuição no que diz respeito às ideias de “unidade grupal” e do simbolismo que a sustenta.

Sem dúvida, quando se considera apenas a expressão das fórmulas,

essas crenças e práticas religiosas parecem por vezes

desconcertantes e pode-se ser tentado a atribuí-las a uma profunda aberração. Mas sob o símbolo é preciso saber atingir a realidade que ele expressa e que lhe dá sua verdadeira significação. Os ritos mais bárbaros ou mais bizarros e os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual, seja social. (DURKHEIM, 2000, p.148, grifo nosso)

Muitos outros autores já abordaram este tema, no entanto, esta obra específica de Durkheim possui um valor especial para este trabalho, pois, ao analisar o simbolismo dos ritos representativos da religião, o autor descortina aproximações inéditas entre religião e festa, o que credencia essa obra como um marco teórico fundamental para a interpretação da relação entre festividades e vida social.

Nesse sentido, Durkheim (2014) defende que a dimensão ritual de toda religião é manifestada através de elementos estéticos e recreativos. Isso, como esclarece o autor, não apenas demonstra uma relação parental com as representações dramáticas, como nos revela que toda cerimônia religiosa evoca a ideia de festa e, inversamente, toda festa, mesmo aquelas totalmente laicas, guardam características de cerimônias religiosas53. A justificativa para tal afirmação deve-se ao fato de que os dois casos possuem efeitos muito potentes que são similares – aproximam os indivíduos e colocam em movimento as massas, suscitando um estado de efervescência coletiva, às vezes mesmo de delírio.

De acordo com o autor, nesse universo ritual marcado pela festa, a energia coletiva é superexcitada, conformando um quadro de êxtase geral, campo fértil de paixões comuns e de excessos – exageros que tornam extremamente tênue a linha que separa o permitido do interdito. Essa exaltação se materializa através de gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, uso de substâncias para elevar o nível vital etc.

52 Ver RODRIGUES (2000) e NORIEGA (2014).

53 Cabe aqui lembrar que a teoria de Durkheim foi desenvolvida em uma das escolas mais

seculares da Europa, a francesa. Esse contexto tornou possível que essa função, tradicionalmente atribuída à religião, ocorresse sem a necessidade de uma divindade ou um sistema formal de crenças. Com isso entende-se que nossa vida é cheia de pequenos e grandes rituais, com ou sem a presença de seres sobrenaturais. (NORIEGA, 2014)

116

Esses rituais marcados pela efervescência coletiva têm o poder de deslocar os indivíduos para fora de si, fazendo com que esqueçam temporariamente do mundo real e alcancem uma outra forma de experienciar a vida social, onde a sua imaginação fica mais à vontade. A possibilidade de acessar esse outro mundo marca outra contribuição essencial da obra durkheimiana – a distinção entre o sagrado e o profano. Em linhas gerais, para Durkheim (2014), o mundo do sagrado é uma dimensão afastada da realidade imediata e é exatamente esse distanciamento das coisas cotidianas que propicia reações em torno dos objetos sagrados. Assim, através da exaltação das energias individuais, os ritos religiosos impulsionam essa passagem da dimensão do profano – o mundo das coisas comuns, cotidianas – para a dimensão do sagrado. Essa distinção apontada por Durkheim está presente em praticamente tudo que foi dito sobre festa depois da sua obra. A possibilidade da passagem de um domínio para o outro e, com isso, da existência individual e coletiva para além da rotina da vida ordinária, investe esses acontecimentos de características especiais. A festa é, nessa perspectiva, o próprio “tempo do sagrado, o período de epifania do divino.” (CAILLOIS apud PEREZ, 2012, p.27)

Esses aspectos fazem Durkheim (2014) considerar a festa como um acontecimento extremamente propício para a superação da dissolução social, configurando-se, inclusive, como a via para uma nova forma de sociação. Para o autor, a comunhão extrema que caracteriza a festa transcende o indivíduo da sua posição individual e o desloca para o coletivo, o que faz com que seja possível reapropriar-se do sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade e reafirmar a sua natureza de ser social através da sua identificação como membro da sua comunidade.

As características que Durkheim atribui à festa são, até hoje, reproduzidas, comentadas e tomadas como elemento norteador por um sem-número de pesquisadores. Fato que pode ser explicado, sobretudo, porque as nossas sociedades – por mais racionais, laicas e científicas que sejam na atualidade – “ainda comportam uma dimensão irracional, ritualística e religiosa que desponta em ocasiões de efervescência coletiva. (VARES, 2015, p.17)

Em se tratando de aspectos do mundo ritual da festa, uma questão central é compreender que, longe de não possuírem utilidade alguma ou de servirem apenas para distrair, esses momentos especiais operam funções importantes na vida das

117

sociedades. Inspirado em Durkheim (2014), o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1997) explica que o ritual – e é nesse universo que situamos a festa – é o local onde o social se realiza. Como resultado das determinações naturais do meio e dos interesses do grupo, o processo ritual seleciona determinados aspectos da vida cotidiana e os investe de um sentido diferente daquele que possuem em seu contexto comum. A comunicação desses novos sentidos acontece através da dramatização e dos seus elementos estéticos e recreativos; é dessa forma “que o grupo individualiza algum fenômeno, podendo assim transformá-lo em instrumento capaz de individualizar a coletividade como um todo, dando-lhe identidade e singularidade.” (DAMATTA, 1997, p.36)

O modo básico de realizar tal coisa, essa elevação de um dado infra- estrutural a coisa social é o que chamamos de ritual, cerimonial, festividade etc. O momento extraordinário que permite pôr em foco um aspecto da realidade e, por meio disso, mudar seu significado cotidiano ou mesmo dar-lhe um novo significado. Tudo que é elevado e colocado em foco pela dramatização é deslocado, e assim pode adquirir um significado surpreendente, capaz de alimentar a reflexão e a criatividade. (DAMATTA, 1997, p.36, grifo nosso)

O rito põe em relevo aspectos do cotidiano ou, nas palavras de DaMatta (1997), o rito coloca em close up as coisas do mundo social. Apesar de se configurarem como momentos especiais de suspensão da rotina ordinária, a sua matéria-prima é a própria vida. Por isso, para compreender as várias camadas de significados sociais que constituem a complexidade do mundo ritual é necessário, antes de qualquer coisa, desritualizá-lo, ou seja, colocá-lo em perspectiva a fim de que seja possível visualizar a diversidade de elementos e de relações que o formam.

E, de fato, entender as relações básicas do mundo social é, automática e simultaneamente, entender o mundo ritual. Os rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais (sagradas ou profanas, locais ou nacionais, formais ou informais). Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com mais consciência. Os rituais seriam instrumentos que permitem maior clareza às mensagens sociais. (DAMATTA, 1997, p.83)

Nesse sentido, a festa enquanto ritual é guardiã de um conteúdo essencial da própria vida social, o que faz com que as suas dramatizações exponham sempre uma concepção de mundo. (BAKHTIN, 2010) Por conta desse conjunto denso de símbolos, significados, relações e representações que compõe o conteúdo festivo é que a festa é sempre muito mais do que ela própria. A festa é o elo que comunica o

118

indivíduo com o imaginário – essa outra perspectiva da realidade social forjada na comunhão radical das consciências coletivas. Acessar o imaginário através da festa possibilita à experimentação humana adentrar o

[...] campo das percepções e das imagens da vida coletiva, que não se reduzem à propria vida coletiva, pois se referem e se remetem à

instância do desejo, do imprevisível, do indecidível, do

indeterminado, da interioridade, da embriaguez mística, do excesso, do gozo. (PEREZ, 2012, p.35)

Experienciar este imaginário em um momento de vida coletiva extremamente intensa é a chave que permite à sociedade o acesso à uma visão alternativa de si mesma – não através de um espelho tal e qual é na vida cotidiana, mas exatamente através da tomada de consciência de uma outra possibilidade de existência. Eis aqui, para muitos, a maior virtude da festa.

A tomada de consciência que o contato com o imaginário social impulsiona é a condição essencial para a festa existir na sua mais profunda potência. Nesse sentido, o francês Jean Duvignaud (1983), seguindo o legado de Durkheim, identifica a festa como o meio para a ruptura completa e perene da ordem das coisas ou, nas suas palavras, como o meio para a destruição concertada do real socializado. Segundo ele, a festa é uma forma de transgressão porque funciona como um mecanismo para desestabilizar ou até desagregar as normas estabelecidas, colocando o homem diante de um mundo sem estrutura e sem códigos. Esta nova ordem seria marcada pela fusão das consciências e das afetividades e permitiria ao homem existir fora dos papeis sociais da realidade normatizada, através de uma experiência de liberdade extrema e de uma alteridade radical – o que o conduziria a um encontro com a sua natureza mais essencial. Essa conjuntura dissolveria as estruturas do real socializado de um grupo e o substituiria por um outro mundo, aquele do imaginário, o das consciências coletivas em comunhão. A única ordem desse novo regime seria, então, a ordem do desejo e, para Duvignaud, é daqui que brota o princípio destruidor da festa. A experiência da festa como ruptura e como negação é carregada de um conteúdo subversivo já que suscita a tomada de consciência de que a vida pode ir muito além da realidade imposta pelos limites do social normatizado, evidenciando a possibilidade dos indivíduos libertarem-se do seu eu atomizado e “de enfrentarem uma diferença radical no encontro com o universo sem leis e nem forma que é a natureza na sua inocente simplicidade.” (DUVIGNAUD, 1983, p.212)

119

Essa experiência anima a existência coletiva e provoca a sociedade a refletir e a se questionar sobre aspectos que a vida cotidiana não lhe permite ver e, a partir disso, inventar uma nova alternativa à realidade vigente. É por isso, inclusive, que, para essa perspectiva, as festas respiram o ar conceitual da communitas, aquela ideia utópica de paraíso, de uma relação social idealizada que se manifesta através da força criativa do processo ritual.

Há, assim, no ritual, a sugestão de que o momento extraordinário pode continuar, não mais como um rito – algo com hora marcada – mas como um extraordinário de maior duração: como uma revolta ou uma revolução. É o rito, então, o veículo da permanência e da mudança. Do retorno à ordem ou da criação de uma nova ordem, uma nova alternativa. (DAMATTA, 1997, p.39)

Alinhado à perspectiva da festa que apresentamos aqui, concordamos com Léa Perez (2012, p.36) quando ela diz que “somos e fazemos coletividade porque produzimos imaginário, somos coletividade porque fazemos festa.” Nesse sentido, a festa – e o carnaval como sua melhor síntese – é a celebração que une o momento supremo do encontro, a fusão com o outro e a aproximação das consciências. A negação da atomização do homem e a abertura para a experiência radical da alteridade. A fusão de deuses e de homens, sagrado e profano, Dionísio reinante. A efervescência das massas, o fervor e o êxtase da energia juvenil. A catarse do delírio, Dionísio errante. A emoção aflorada e o sentimento não domesticado. A ordem do desejo, o instante exato do gozo. O riso debochado e subversivo. A ruptura da regra, o motor da transgressão. A captura do essencial da vida. O alcance de uma outra e inédita experiência humana e social. A tomada de consciência de si próprio, do outro e do todo. A visão de um novo mundo possível. A produção da vida. A mudança, a dinâmica, o movimento. O cotidiano transformado em extraordinário. A destruição do velho e o nascimento do ancestral. A brecha do tempo, a vigência do sagrado.

Por tudo isso é que

[...] a festa é uma das vias privilegiadas no estabelecimento de mediações da humanidade. Ela busca recuperar a imanência entre o criador e criaturas, natureza e cultura, tempo e eternidade, vida e morte, ser e não ser. A festa é, ainda, mediação entre os anseios individuais e coletivos, mito e historia, fantasia e realidade, o passado e o futuro, nós e os outros, revelando e exaltando as contradições impostas à vida humana. Mediando encontros culturais e absorvendo, digerindo e transformando em pontes os opostos tidos

120 como inconciliáveis. A festa é mediação; diálogo da cultura com ela mesma. (AMARAL, 2012, p.74)

Por tratar-se de um fenômeno presente em todas as culturas ao longo da história, tantas outras leituras da festa são possíveis e são propostas continuamente por diferentes campos do saber. No caso deste trabalho, iremos observá-la para além do lugar comum de mero objeto a ser descrito, mas como um mediador que abre para a experimentação humana o campo do imaginário. (PEREZ, 2012)

Consideramos fundamental explicar que na construção dessa definição de festa enquanto repositório de imaginários populares, acabamos elegendo autores que flertam com uma ideia universalizante e, por vezes, até conciliadora da festa – posições estas que observamos com cautela, já que reconhecemos a festa, também, como um espaço profundo de tensões, disputas, negociações e resistências – uma dimensão que sempre acompanhou as festividades e sociabilidades populares e que se acentua com a consolidação das sociedades urbano-industriais e capitalistas e a consequente interface com novos atores e seus interesses.

Por essa via de entendimento as festas possuem uma capacidade extraordinária de expressarem a cosmovisão e a identidade dos grupos que a experienciam. Isso só é possível porque estão profundamente vinculadas às memórias, às visões de mundo, aos modos de vida e ao cotidiano das suas comunidades. Ainda, por serem referências culturais vivas e dinâmicas, permitem a continuidade e a atualização das tradições, ao mesmo tempo em que são o veículo dessas comunidades para sobreviver, para negociar com o novo, para reivindicar e para pensar como gostariam de ser. Compreender a festa a partir deste lugar – do seu potencial simbólico, mediador e representativo – garante a ela posição de destaque no universo do patrimônio cultural imaterial. No entanto, como veremos a seguir, a consolidação da festa nesses moldes encontra desafios importantes nos dias de hoje.