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1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

1.4 Patrimônio e nacionalismo: simbiose do poder

Somado ao panorama apresentado na seção anterior, uma questão central é compreender que as políticas de preservação das primeiras instituições patrimoniais surgidas no ocidente foram influenciadas, de forma direta e contundente, pela ascensão dos nacionalismos.

Nesse momento de profundas transformações e de extrema fragilidade social foi necessário “inventar” uma cultura nacional e compartilhá-la amplamente através de políticas educacionais com o intuito de promover um sentimento de pertencimento desses novos e deslocados cidadãos com a sua “nova” nação. Através da disseminação de “uma língua e uma cultura, uma origem e um território” (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p.16), estas nações modernas foram constituídas com base na memória de um passado que não existia mais, mas que as creditava uma história pregressa gloriosa. Por meio de narrativas cuidadosamente elaboradas, estas nações foram estabelecidas como grandes “comunidades imaginadas”5 (Anderson, 1989), como “um artefato cultural e não um objeto natural, [...] uma ficção constituída historicamente.” (CANCLINI, 1994, p. 99)

Assim, é compreendendo que a nação, para além de uma entidade política, é um sistema de representação cultural (HALL, 2011), que o patrimônio pode ser considerado um dos suportes mais importantes para a consolidação deste

5 Noção desenvolvida por Benedict Anderson em livro em que analisa como a ascensão do

sentimento nacional (dos nacionalismos) foi forjada no calor da vida social através de “uma comunidade política imaginada”. Para o autor, o que difere uma nação da outra é a forma pela qual elas foram imaginadas.

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empreendimento. Foi esse o caminho que consagrou de forma absoluta os monumentos históricos, já que eles se configuraram como mediadores poderosos na promoção do sentimento nacional. Com base nisso, os estados nacionais empreenderam um esforço no sentido de selecionar, construir e, inclusive, de inventar seus próprios patrimônios para demarcar suas identidades. Em outras palavras, o patrimônio nacional foi organizado como uma narrativa a fim de servir de sustentação às novas comunidades imaginadas. Mais uma vez fica evidente a centralidade que o patrimônio possui nos processos de desenvolvimento da história mundial.

É importante ressaltar que a materialidade foi característica definidora de todo esse processo – não exclusiva porque festas populares, por exemplo, eram estimuladas, apesar de terem sua carga simbólica alterada em função dos objetivos nacionalistas6. O inglês John Ruskin, no final do século XIX, já atribuía à materialidade a morada segura para a memória, assegurando, dessa forma, o propósito e o valor do monumento histórico. Segundo ele, “nós podemos viver sem a arquitetura, adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos lembrar.” (RUSKIN apud CHOAY, 2001, p.139)

Assim, os traços nacionalistas que originaram e definiram a natureza do patrimônio na sua concepção moderna foram representados, essencialmente, por bens materiais onde os valores do excepcional, do belo e do singular espelhavam os traços identitários da nação. Esse paradigma, herdado das ideias renascentistas de arte e beleza, reduziu o alcance da preservação apenas aos patrimônios de pedra e cal7 avaliados como autênticos para a história nacional, especialmente grandes edifícios religiosos e civis, como os monumentos, igrejas, museus, bibliotecas etc. Com efeito, essa prática será exclusiva no ocidente até a década de 1960.

As noções de autenticidade e permanência fundam a prática de preservação ocidental e orientam toda a sua lógica, conduzindo à criação de instrumentos voltados para a proteção, guarda e conservação dos bens patrimoniais, pelo tempo mais longo e da forma mais íntegra possíveis. (SANT‟ANNA, 2009, p.51)

6 Como aconteceu na década de 1930 no Brasil, quando um decreto de Getúlio Vargas

obrigou todas as escolas de samba do Rio de Janeiro a apresentarem samba-enredos inspirados na história do país. (PINHEIRO, 1996)

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Refletindo sobre este contexto, Nestor García Canclini (1994) elencou alguns paradigmas político-culturais sob os quais o campo da preservação do patrimônio se organizou. Dois deles nos interessam sobremaneira para arrematar a compreensão desse período – o “tradicionalismo substancialista” e o “conservacionista e monumentalista”. Segundo o autor, o primeiro é justificado porque remete a uma prática em que se

[...] julgam os bens históricos unicamente pelo valor que têm em si mesmos, e por isso concebem sua conservação independentemente do uso atual. Patrimônio está constituído por um mundo de formas e objetos excepcionais, onde não contam as condições de vida e trabalho de quem os produziu. Seu traço comum é uma visão da humanidade ou do “ser nacional” oriundos de um passado glorioso já desvanecido. Seu único sentido é salvaguardar essências, modelos estéticos e simbólicos cuja conservação inalterada servirá precisamente para testemunhar que a substância desse passado transcende às mudanças sociais. (CANCLINI, 1994, p.103)

De forma relacionada, a concepção “conservacionista e monumentalista” é definida pelo protagonismo vertical do Estado na seleção e promoção de um patrimônio, com o objetivo de “preservar e custodiar especialmente os bens históricos capazes de exaltar a nacionalidade, de serem símbolos de coesão e grandeza”. (CANCLINI, 1994, p.104) O autor denuncia, aqui, que a associação que o Estado faz com a sua herança monumental é utilizada, entre outras coisas, para legitimar o sistema político vigente que, em muitos casos, depois de conservar e reinaugurar monumentos acaba por ocupá-los fisicamente com o funcionamento de órgãos oficiais – reforçando, assim, a imbricação do Estado com sua história nacional. Ou seja, as narrativas construídas para explicar e legitimar as nações modernas servem ao próprio poder que as transmitem e as difundem. (BOSI, 2003)

Fica evidente que todo o percurso que levou à consagração do monumento histórico trouxe avanços importantes para o campo do patrimônio, em especial por deslocá-lo definitivamente do âmbito do privado e do aristocrático para o do público, bem como criar legislação própria para a sua preservação. No entanto, não devemos superestimar o alcance dessas experiências precursoras, já que “elas não afetaram profundamente práticas conservadoras que continuaram mais ou menos idênticas durante cerca de um século, entre 1860 e 1960.” (CHOAY, 2001, p.171) O âmbito patrimonial manteve-se limitado ao nacionalismo de pedra e cal de tal forma

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que não problematizou aspectos essenciais que configuram a sua propria complexidade.

Ante a magnificência de uma pirâmide maia ou de um palácio colonial, não lhe ocorre [ao Estado] minimamente pensar nas contradições sociais que expressam. A atenção privilegiada à grandiosidade do edifício costuma também desviar dos problemas regionais, da estrutura dos assentamentos rurais ou urbanos em meio aos quais os monumentos adquirem sentido: tem-se notado várias vezes que a salvaguarda do patrimônio é eficaz quando leva em conta as grandes obras em relação aos sistemas construtivos e aos usos contextuais do espaço. (CANCLINI, 1994, p.104, grifo nosso)

Assim, o uso da excepcionalidade e da monumentalidade como critérios únicos de preservação por parte dos Estados Nacionais relegou ao esquecimento todo o conjunto de sentidos e valores intrínsecos a toda e qualquer produção cultural humana, invisibilizando, dessa forma, a dimensão simbólica dos bens culturais.

Nessa fase não houve espaço para valorização das manifestações da cultura popular, cotidianas, das formas de fazer e viver da sociedade, consideradas desprovidas de valores mais elevados, de caráter rudimentar, anacrônico, irrelevante para a constituição da narrativa do patrimônio que se pretendia oficializar. O discurso da excepcionalidade, que se espraiava por outros continentes, inevitavelmente conduziu a um caminho de exclusão e rejeição de tudo o quanto não se amoldava em conceitos e abordagens das elites sociais e do poder dominante. (QUEIROZ, 2016, p.47)

Esse entendimento vai continuar intocável mesmo diante do debate patrimonial mais organizado que começou a ser empreendido nas primeiras décadas de 1900. Destaca-se, como resultado desse período, a Carta de Atenas8, datada de 1931 e considerada o primeiro documento de nível internacional a tratar da questão do patrimônio cultural – ainda sob a alcunha de monumento histórico. Influenciada pelo contexto posterior à Primeira Guerra Mundial, onde muitos países acumularam danos aos seus patrimônios arquitetônicos, a Carta trata exclusivamente dos bens materiais, apresentando diretrizes para a sua manutenção física por meio de temas como administração e legislação dos monumentos, valorização e deterioração desses bens, técnicas de conservação e cooperação internacional. Ou seja, não apresenta nenhuma inovação com relação ao que já vinha sendo discutido nas últimas décadas. 8 Documento disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201931.pdf. Acesso em 10 out. 2016.

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A Carta deixou de fora questões relevantes que foram pontuadas na ocasião deste congresso em Atenas, como as relações entre os monumentos antigos e a cidade (CHOAY, 2001), além de não ter contemplado pontos promissores de uma problematização que já vinha sendo feita em torno da noção de patrimônio desde meados do século XIX por intelectuais de diferentes campos do saber, como historiadores e críticos da arte, sociólogos, arquitetos, teóricos da preservação e poetas, por exemplo9. Destaca-se, nesse sentido, a ambiciosa e inovadora reflexão do austríaco Alois Riegl (1858-1905) que em sua obra “O culto moderno dos monumentos” tece uma análise bastante crítica acerca da noção de monumento histórico, abordando-a como um objeto social e filosófico. Ao sinalizar a necessidade de uma investigação dos sentidos atribuídos pela sociedade ao monumento histórico, ele propõe uma dupla abordagem: histórica e interpretativa. Como veremos no decorrer deste trabalho, a vanguarda das suas ideias teriam que esperar mais de meio século para serem incluídas de forma sistemática no debate patrimonial.

Apesar das suas limitações, é creditada à Carta de Atenas uma importância na cronologia patrimonial por ter sido a precursora de um movimento mundial de elaboração cada vez mais crítica em torno da noção do patrimônio cultural e seus inúmeros e complexos desdobramentos. A partir dessa experiência uma serie de outras cartas, convenções e recomendações foram preparadas, ampliando e aprofundando gradativamente o entendimento acerca do universo patrimonial no mundo todo. Este movimento desencadeou um processo de mundialização do patrimônio, que, como veremos a seguir, ganha força a partir da década de 1970.

9 Na Inglaterra o debate foi protagonizado pelo anti-intervencionismo radical de John Ruskin

(1819-1900) e William Morris (1834-1896). Na França, de um lado estava Eugène Emannuel Viollet-le-Duc (1814-1879), que justificava restaurações agressivas apostando em um passado morto e em uma nostalgia do futuro; do outro os defensores irrestritos dos monumentos, Ludovic Vitet (1802 – 1873) e Prosper Merimée (1803-1870). O italiano Camilo Boito (1835-1914) ganha protagonismo no debate por ter estabelecido os fundamentos críticos da restauração como disciplina (perspectiva profissional) e por sua posição dialética (entre os anti-intervencionistas radicais e os restauradores radicais; entre Ruskin e Viollet-le-Duc). A reflexão do austríaco Alois Riegl (1858-1905), que vai além da perspectiva profissional de Boito, já foi contemplada no corpo do texto. Ressaltamos que esta apresentação elucidativa dos teóricos que marcaram a problematização do patrimônio entre o século XIX e início do XX foi sintetizada aqui tendo como base as interpretações de Françoise Choay. (2001, p.125-173)

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1.5 Expansão do campo patrimonial: da reivindicação por múltiplas