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Um sírio vive em função de sua religião tanto quanto um americano vive em função de sua nacionalidade

Philip Khuri Hitti

O segundo pilar da identidade dos árabes é a religião. O Oriente médio foi a maternidade das três principais religiões monoteístas41 e a Palestina, o berço que as embalou, onde elas cresceram e se fortaleceram antes de ganhar o mundo. No Oriente médio, mais do que em qualquer outro lugar do mundo, é praticamente impossível alguém não professar uma religião. Cada região ou mesmo em cada aldeia de cada País há uma religião dominante e para cada uma delas, há uma autoridade religiosa que é responsável por controlar toda a comunidade em todos os aspectos da vida cotidiana e não apenas o espiritual. Assim, “as religiões frequentemente ocupavam o lugar que o estado moderno tomou nos países do Ocidente”, controlando também as leis, a economia, a política, a educação, etc. Segundo Hitti, “A Syrian is born to his religion, just as an American is born to his nationality” (HITTI, apud TRUZZI, 2008, p.32). Hanna Safieh, um imigrante palestino que chegou ao Brasil na década de 1960 explica:

Meu avô, o pai de meu pai, e o irmão dele, que era padre, Shucre Safieh, ele era o padre que era responsável pelo tribunal superior eclesiástico. [...] Na Palestina nós temos os tribunais religiosos porque na Palestina sempre teve o respeito do muçulmano, do cristão, o católico com o ortodoxo, etc. Como nós temos leis diferentes, vamos pegar um exemplo, de casamento, de herança, cada religião tinha o tribunal dela. Por exemplo, o tribunal de herança pra os católicos de lá não era o tribunal civil, nem palestino nem jordaniano que decidia, era o tribunal eclesiástico católico que está no patriarcado católico, latino católico. Era reconhecido pelo Governo Britânico, reconhecido pelos otomanos, pelos britânicos e depois foi reconhecido pelos jordanianos e ainda hoje é reconhecido pelos palestinos. Quando papai faleceu eu consegui ir lá e nós fizemos toda a documentação com o tribunal católico, era o patriarcado latino. O ortodoxo tem o tribunal dele, os muçulmanos também têm os tribunais deles. Resultado, meu tio avô era o padre católico que era o Juiz do superior tribunal católico, naquela época.

Para Truzzi (2008, p. 32), o fator religioso era a “mola mestra da identidade, seja no Líbano, onde no século XIX a maioria era cristã, seja na Síria, de ampla maioria muçulmana [...], e frequentemente esteve na raiz de um padrão de segregação geográfica, que

41 O judaísmo, o cristianismo e o islamismo, são as principais, mas elas não são as únicas nem as mais antigas.

No antigo Oriente Médio, praticamente cada cidade cultuava sua própria divindade, mas a primeira a adquirir um caráter mais universal foi o culto egípcio a Anton, na Idade do Bronze. O Zoroastrismo fundado na Pérsia (atual Irã) data do século VII A.C. e suas ideias acerca de paraíso, ressurreição e juízo final teria exercido forte influência sobre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

distribuía fiéis de mesmo credo entre regiões, cidades ou entre bairros numa mesma cidade, estimulando o facciosismo entre seitas”. Ainda segundo o mesmo autor:

[...] Originou-se daí a ênfase quase obsessiva em marcar distâncias em relação a conterrâneos de origem muçulmana e a tudo aquilo que vulgarmente a eles se associa: o islamismo, fanatismo, poligamia, costumes exóticos, etc. A importância de se mostrar cristão e, sobretudo, plenamente ‘ocidental’, representou um requisito de importância tal a ponto de gerar profundas divisões no seio da própria colônia (ibidem, p. 93).

Muitos sírios e libaneses também se estabeleceram no Nordeste, especialmente em Recife, Fortaleza, Teresina e São Luís e no interior de alguns estados, como Ceará e Piauí e Maranhão. Tal como aconteceu no Sudeste, estes árabes traziam com eles profundas divergências religiosas que, ao serem trasladadas para o Nordeste reproduziram aqui o mesmo padrão de segregação geográfica verificado no Rio de Janeiro e São Paulo a tal ponto, que foram determinantes na escolha do destino de muitos dos imigrantes que chegavam à região. No depoimento de Jorge Azar Chaib (CHAIB, 2006, s/n), um sírio da segunda geração cuja família imigrou para Teresina, Piauí, no início do século passado, percebe-se nitidamente essas relações conflituosas que eram decorrentes das filiações religiosas contrastantes desde a síria e que foram reproduzidas no Brasil pelos imigrantes:

Quando chegava outra leva [de sírios] de fora, ah, bastava ser grego ortodoxo, só grego ortodoxo que entrava, se não, botava pra fora: – não, você vai é pras fazendas que lá é que está a sua religião, dos Druris42, dos Curdos. – Sei que em Floriano havia outro grupo religioso, não sei se eram druris ou se eram curdos. [...] Os que aqui chegaram eram do grupo religioso dos gregos ortodoxos. Aqui só tinha sírio grego ortodoxo. Era disputa mesmo da religião, porque lá na Síria, eles eram adversários, inimigos. Lá era mais ou menos assim: você é grego ortodoxo [ou], você é muçulmano, já são inimigos, embora vivam na mesma cidade. Lá não havia sentido de nação, o que contava era a religião.

A Palestina como a Síria também era um país predominantemente islâmico e de certa forma, dividido geograficamente por religiões e seitas. Mas, não aconteceu com os palestinos em Recife o que aconteceu com os sírios e libaneses em quase todo o Brasil, onde as diferenças religiosas seriam igualmente responsáveis por divisões importantes dentro da ‘colônia’ e, sobretudo, pela ‘avaliação’ que os ‘nativos’ fariam dos imigrantes ali estabelecidos. Belém, como já foi dito, era uma cidade majoritariamente cristã e de seu entorno vieram quase todos os imigrantes pioneiros que desembarcaram no Nordeste. Porém, mesmo os que vinham de outras cidades cuja população era predominantemente muçulmana, como Jaffa, Haifa, Ramallah ou Jerusalém, invariavelmente eram cristãos e ao chegar aqui, se

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Provavelmente o autor se referia aos drusos, populações que se identificam como árabes, vivem no Oriente Médio e são seguidores de uma seita derivada do islamismo.

não eram católicos, simplesmente se convertiam ao catolicismo43, eliminando assim, de forma involuntária, um dos principais fatores que poderia provocar cisões no interior da comunidade ou, por outro lado, diferenciá-los e distanciá-los dos ‘locais’.

As peculiaridades da imigração cristã no Recife guardam semelhanças notáveis com as de outra cidade nordestina, Floriano, no Piauí, onde se formou uma grande colônia de imigrantes sírios cristãos. Segundo uma apreciação de Procópio que investigou a imigração síria na região, a religião cristã praticada pela maioria dos imigrantes sírios seria um elo que os aproximaria dos ‘locais’:

Com tantas diferenças, a religião seria apenas mais uma delas, mas felizmente, não se constituiu em obstáculo. Pelo contrário, serviu de elo de aproximação, pois a maioria dos imigrantes era cristã, religião de quase totalidade dos florianenses. Do que foi apurado, apenas dez por cento da população síria, na época, era católica e o resto muçulmana. Entretanto, os sírios que vieram de Khabab e Maalula para Floriano, eram católicos, com raras exceções a citar a família Bucar, que é de Homs, região densamente islâmica da Síria. (PROCÓPIO, 2006, p.46)