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4 OS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO

4.8 Outra imigração palestina

Alguns anos após a sua chegada ao Brasil e pouco depois da Primeira Guerra Mundial, os imigrantes palestinos pioneiros que haviam se estabelecido pelo interior do Nordeste começaram a perceber que a imigração para o Brasil era ‘um caminho sem volta’. Impedidos pelas circunstâncias políticas de retornarem em definitivo a sua terra natal, não emigraram de volta para a Palestina como gostariam. Regressaram à sua aldeia apenas para casar, rever parentes e amigos e depois, retornaram ao Brasil, onde constituíram família. Muitos, porém, não tiveram condições de retornar à Palestina para casar e ainda estavam dispersos pelo interior do Nordeste. Outros já estavam casados e tinham filhos em idade escolar ou eram adolescentes que estavam próximos da época de contrair núpcias. Todos esses imigrantes procuravam outro lugar para viver, casar, educar e socializar os filhos, se possível entre outros que fossem oriundos de sua aldeia natal. Para a maioria deles, o Recife afigurava ser a melhor opção.

Nessa ocasião, no início da década de 1920, o Recife não era apenas a terceira cidade mais populosa do Brasil e a cidade mais importante e bem estruturada do Nordeste. Aqui já moravam dezenas de famílias belemitas e era para lá que se dirigiam quase todos os novos imigrantes que chegavam da Palestina, atraídos pela ampla rede de solidariedade que havia sido construída entre Belém e Recife ou pelos convites dos que aqui já residiam. No depoimento fornecido por Chible Zarzar, neto de palestinos estabelecidos em Pernambuco:

Meu avô Nicolau Mussa Zarzar chegou ao Recife aos 20 anos de idade, em 1912, na companhia do Sr. Bechara Ibraim Asfora. Inicialmente o seu desejo era ir para São Paulo, porém, ao ver já instalados, na Rua do Rangel, um grande número de patrícios, e como ele, quase todos de Belém, onde nascera, resolveu por aqui se radicar e assumir, como todos os outros fizeram, o trabalho de mascatear, que tinha, a seu ver, algumas vantagens, as principais sendo conhecer melhor as pessoas que daí por diante iria conviver e aprender mais facilmente falar a nova língua (ASFORA, 2002, p. 151).

E segundo o próprio João Sales Asfora:

O Recife, por ser a cidade, na época, mais desenvolvida, com comércio dinâmico e diversificado, oferecia, além do conforto de estar perto dos parentes e amigos, maior número de pessoas com quem conversar, ajudando o aprendizado do português... Desse modo, o Recife foi sendo considerado o lugar ideal para iniciarem a vida[...]. (ibidem, 2002, p.24).

A ampla rede de solidariedade e a possibilidade de socialização entre os conterrâneos que atraíam cada vez mais imigrantes palestinos para o Recife, passou a constituir também um poderoso fator de atração daquela cidade para os imigrantes pioneiros que ainda estavam pulverizados pelo interior do Nordeste. Somando-se a isso havia também novos fatores de expulsão que passaram a atuar no sertão nordestino e que resultou em uma nova migração dos pioneiros em direção à cidade do Recife: primeiramente, as três grandes

secas que atingiram a região naquela época: a de 1915, a de 1919/1921 e 1932 (fotos 65 e 66). Segundo o pesquisador Pedro Henrique Barreto (2009, s/p):

Na seca seguinte, em 1915, o governo do Ceará criou uma espécie de campos de concentração nas margens das grandes cidades para impedir a migração. A fome e a falta de higiene provocaram um quadro trágico. "Eram locais para onde grande parte dos retirantes foi recolhida a fim de receber comida e assistência médica. Não podiam sair sem autorização dos inspetores do campo. Ali ficavam retidos milhares de retirantes a morrer de fome e doenças", relata a professora Kênia Rios, doutora em História pela Pontifícia Universidade (PUC) de São Paulo.

Foto 65: Secas no Nordeste: 1915 e 1919. Foto 66: Secas no Nordeste. Igatu, CE Fonte: Patu em Foco. Acesso 12.07.2016, em: Fonte: TV Jaguar. Acesso em 12.07.2016. Disponível em: http://patu-emfoco.blogspot.com.br/2015 http://www.tvjaguar.com.br/site/noticia.php

O segundo fator de expulsão teve origem externa e foi uma consequência direta da expansão do capitalismo a nível internacional: o cultivo e o início da produção em moldes capitalistas do látex de seringueira em alguns países do Oriente, como Java, Indonésia e Ceilão decretou o fim repentino e prematuro do ciclo da borracha de maniçoba no Nordeste, uma das principais fontes de riqueza da região. Ambos os fenômenos estão relatados no romance ‘Noite Grande’ de Permínio Asfora:

A estiagem castigava. Os cearenses enchiam as estradas procurando o Piauí. Outros iam para o Maranhão. Estava no fim de março e o inverno não chegava. [...] Não é possível trazer gêneros alimentícios sem ser atacado nas estradas povoadas de famintos. [...] Na Serra Grande ainda vi uma ou outra folha verde, mas no sertão é só garrancho. Pau desfolhado e terra seca, a gente só falta queimar os pés. O mundo pegando fogo, as casinhas sem ninguém. Umas, os donos tiveram o cuidado de fechar, as outras escancaradas. De cortar o coração tanta miséria, o povo morrendo de fome, não há governo que dê jeito, só milagre.

[...]

Há mais de mês recebeu aviso de seu correspondente em Fortaleza informando que a borracha sofreria nova queda e se desfizesse logo do que houvesse estocado. [...] Cada dia oscila mais, baixas cada vez maiores. [...] Jerônimo, o comprador, pagava preço muito baixo, asseverando que o produto cairia ainda mais. [...] A praça não tem interesse nenhum. Os mercados europeus e americanos estão desanimados. [...] Não fazia um mês que estivera em Amarante quando chegou o telegrama de uma firma cearense informando que a cotação descera para três zeros. Sua vista escureceu, era uma desgraça. Os depósitos em Murici entupidos até às telhas daquelas bolas enormes. A loja sem sortimento, o cofre emborcado, os livros cheios de débitos. [...] Guardar pra que se não há fábrica no Brasil? Pra que guardar se isto aqui é uma

colônia pra vender matéria-prima? A matéria-prima não tem preço porque os compradores estão produzindo também. Agora, borracha é lixo, devemos jogar no monturo. [...] Relia o novo telegrama sem querer acreditar. Dava-lhe dor de cabeça imaginar que milhares de arrobas compradas a cinco mil-réis o quilo não valiam coisa alguma. Dinheiro empregado nas serras, na mão de maniçobeiros. Para onde foram os sonhos de riqueza? (ASFORA, 1976, p.189)

Nesse caso, uma vez mais “a emigração surge em época de crise como estratégia para manter o padrão de vida alcançado e não como resultado inexorável da miséria”. (ROCHA PINTO, 2010, p.34). A diferença é que agora a crise não era no Oriente Médio, mas no sertão nordestino e a emigração para uma grande e ‘prospera’ cidade parecia ser a melhor opção para os pioneiros.

Em seu livro ‘Palestinos, a saga de seus descendentes’, além da genealogia das principais famílias palestinas que imigraram para o Nordeste, o autor, João Sales Asfora, fez uma coletânea de depoimentos escrita pelos descendentes dos imigrantes. Ele próprio, que era irmão de Permínio Asfora, descreve a trajetória (real) de seu próprio pai, Sales Mussa Asfora, um imigrante nascido em Belém no ano de 188884.

Depois de um período de adaptação, começou a trabalhar, levando 20 a 30 animais carregados com tecidos, utensílios domésticos, querosene, artigos de limpeza, para serem negociados por peles de cabra, carneiro e gado, a fim de serem exportados. Viagens longas, prolongavam-se por 5 a 6 meses, indo até o interior do Maranhão ao Norte, e ao Sul, até Minas Gerais [...]. Atendendo a convites feitos por amigos resolveu se estabelecer em Pimenteiras, Piauí. Em Parnaíba, já havia encontrado parentes e patrícios, os irmãos Sales e João Cauás e Hissa Mussa Hazin [...]. Em Pimenteiras, Sales montou barracão para fornecer a população e aos seus trabalhadores, gêneros alimentícios e utensílios para a colheita de látex [...]. Sales, com a família, segue para Fortaleza, estabelecendo-se com uma casa de modas. Resolve buscar a mãe e os irmãos Abrahão, Jorge e Noêmia, que ainda estavam em Belém, Palestina e que devido às dificuldades financeiras provocadas pela Primeira Guerra Mundial, não havia sido possível providenciar antes. Assim, em 1920, o restante da família chega ao porto de Camocim, Ceará [...]. Os imigrantes árabes vinham tanto para o Ceará (Senador Pompeu, Camocim, Crateús, Quixadá) como para Pernambuco. A partir de 1920, começaram a chegar a Pernambuco várias famílias de Palestinos (os Aldaher, el-Deir Marzuca, Chamie, Darbura, Alouchie, Duere, Wakim). A vinda dessas família, motivou a transferência da mãe e dos irmãos de Sales, não tardando que ele próprio viesse. Chegou ao Recife no ano de 1921, estabelecendo-se à rua Direita. (ASFORA, 2002, p. 116-117)

A narrativa de João Sales Asfora mostra uma trajetória que foi reconstruída por outros palestinos naquela mesma ocasião, quando muitos se deslocaram do interior do Nordeste e se estabeleceram em definitivo na cidade do Recife: meu avô Hissa Hazin era contemporâneo Sales e chegou a Parnaíba em 1906. Depois de catorze anos voltou à Palestina para casar e retornou à Parnaíba. Pouco tempo depois, essas famílias que haviam se

84 Sales Mussa Asfora, pai de João Sales Asfora e Permínio Asfora, era o imigrante palestino cuja história

estabelecido no Piauí (a de Sales Asfora, a dos irmãos Cauás e a de meu avô Hissa), seguiram o mesmo percurso de tantos outros imigrantes palestinos e se mudaram definitivamente para o Recife no início da década de 1920:

Hissa prosperou mascateando[em Parnaíba], fez um bom pé-de-meia e junto com Hilue, resolveram se mudar para o Recife. Aqui, em Recife, estabeleceram-se no Bairro de São José, nas imediações do Mercado, junto com seus antigos companheiros de viagem, os irmãos Cauás e abriram uma firma chamada Cauás e Hazin (MATTOSO, 2008, p.37).

A opção da maioria das famílias palestinas de viver em Recife, como vimos acima, esteve ligada a dois importantes fatores: nas duas primeiras décadas da imigração, o Recife era a cidade mais populosa do Nordeste, o principal porto exportador e o maior mercado consumidor da região. Assim, nos primeiros anos da imigração, a cidade já havia atraído grande parte dos imigrantes palestinos que vieram para o Brasil em busca de enriquecimento rápido. Nas décadas seguintes a atração exercida por esta ‘colônia’ numerosa, bem integrada à sociedade local e bem sucedida economicamente garantiu um fluxo contínuo de novos imigrantes vindos da Palestina e de tantos outros que estavam espalhados por algumas capitais da região e cidades do interior do Piauí, Ceará e Paraíba.