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4 OS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO

4.9 Aglomeração e dispersão

A chegada ao Recife de novos imigrantes da Palestina na década de 1920 e dos pioneiros que estavam dispersos pelo interior do Nordeste resultou numa grande concentração de imigrantes levantinos em torno do Mercado de São José, ou do Pátio do Mercado, como era chamada a Praça dom Vital. Além dos palestinos que já haviam se estabelecidos anteriormente no local, lá também estavam os outros árabes, sírios e libaneses.

A opção inicial pela aglomeração com os conterrâneos e segregação espacial em relação aos ‘locais’ não era uma tentativa deliberada de se afastar dos ‘nativos’, ou de “amontoar-se em colônias nas quais podem viver a seu próprio modo, manter seu orgulho e privar-se das dificuldades do ajustamento aos ideais americanos” como acusou Edward Ross tentando desqualificar os árabes que imigraram para os Estados Unidos (TRUZZI, 2008, p.250). Em Recife, é mais provável que tenham procurado se aglomerar em uma determinada região da cidade para se beneficiarem dos contatos com outros familiares e das amizades com outros conterrâneos, das vantagens econômicas propiciadas pela concentração comercial em torno do Mercado São José e dos benefícios decorrentes da rede de solidariedade étnica tão importante na fase inicial da imigração.

Ao mudar de Parnaíba para o Recife em 1923, meu avô Hissa escolheu estabelecer-se inicialmente em um sobrado da Rua do Rangel, bem perto do Mercado de São José. A firma funcionava no térreo e a família morava no primeiro andar. Esse era o padrão de estabelecimento comercial conjugado à residência que era adotado pela maioria das famílias palestinas nos primórdios da imigração. Em sua entrevista, Fauze Hazin, filho de Hissa, dá o seguinte relato:

Eu nasci no [próximo ao] Mercado São José, na Rua do Rangel. Eu não sei se foi na Rua do Rangel ou na Praça Dom Vital. [...] Eu acho que eu nasci na Rua do Rangel. A gente morava lá. Aí se mudou quando a gente botou a loja, Quando saímos da Rua do Rangel e fomos pra... Eu só sei que quando a gente saiu da Rua do Rangel a gente foi pra loja da Praça Dom Vital morar lá. O vizinho nosso era Antônio Zarzar. Tinha uma loja também.

Nos anos seguintes (no final da década de 1920 e início da década de 1930), à medida que algumas famílias prosperaram e se diferenciaram umas das outras, a amizade e a solidariedade dos conterrâneos tornaram-se menos importantes do que o convívio com as novas amizades da sociedade local. Foi quando algumas famílias mais bem sucedidas começaram a mudar suas residências para alguns bairros mais afastados do centro da cidade:

Bechara Asfora comprou um casarão e mudou-se com toda sua família[...] para a Rua Carlos Porto Carreiro[...] derrubou o muro e construiu várias casas[...] e à medida que os filhos cresciam e iam casando, iam ocupando as casas que ele presenteava [...]. O senhor Bechara gostava de ter os filhos perto dele. Tudo girava em torno do casarão que levava o nome de sua esposa, Hellena. A mansão chamava-se Vila Hellena e todas as casas da ‘Vila Asfora’ comunicavam-se com o solar (MATTOSO, 2008, p. 101).

Em 1934, Ellis Jr descreve essa mudança de comportamento que observara entre os sírios e libaneses em São Paulo:

Enriquecidos, ainda que muito ligados à ‘patriciada’ por uma solidariedade muito mais marcada do que em qualquer outra estirpe imigrada, logo que sentiram o peso de seus cabedais aumentar, transferiram-se dos velhos pardieiros do bairro da Rua 25 de Março para os palacetes da Avenida Paulista, considerada a via pública mais aristocrática de São Paulo. Aí adquiriram antigas moradas... e pomposamente as reformavam com uma complexidade de enfeites que transformavam as sóbrias residências... em ‘bolos de casamento’, com suas colunas em abundância, seus arcos, seus arabescos, seus terraços, seus mirantes em forma de minaretes, etc. (ELLIS JR., apud TRUZZI, 2008, p.104).

O palestino Hanna Safieh concorda que a ascensão social conseguida pelos árabes no Brasil pode ter contribuído com o afastamento de algumas famílias do convívio com os conterrâneos que viviam em torno dos antigos bairros centrais das cidades, mesmo assim, ele vê a questão da dispersão pelos bairros mais ‘nobres’ por uma perspectiva diferente, sugerindo um aspecto cultural típico dos árabes:

O povo árabe, de um modo geral, é muito orgulhoso. Um quer ser melhor do que o outro. As mulheres aparecem nas festas com muitas pulseiras de ouro. Ela compra e

tem dez. A outra compra mais pra ter doze. Rivalidade de orgulho, orgulho besta, papai chamava isso de orgulho besta. Papai não tinha orgulho nada disso. Então eles não se unem porque em família mesmo tem isso, eu não vou citar o nome da família, mas um tio contra um sobrinho, contra o cunhado, em família mesmo, uns contra o outro, por causa de dinheiro, aí que é o problema.

Essa busca pela diferenciação espacial em relação aos outros membros da comunidade empreendida tanto pelos sírios e libaneses em São Paulo como pelos palestinos em Recife, teve algumas motivações semelhantes, mas também algumas diferenças marcantes. Em São Paulo os árabes se ‘reorganizaram’ em outros bairros e regiões da cidade motivados principalmente por divergências étnicas e socioculturais e pelas diferenças econômicas desenvolvidas ao longo do processo migratório. Para demonstrar essa mudança de comportamento, já observável nas primeiras décadas do século XX, Knowlton escreveu:

A colônia sírio-libanesa em geral está de tal forma dividida por diferenças religiosas e econômicas, rivalidades de família e região, e ciúmes pessoais, que não foi possível organizar uma sociedade que representasse a colônia toda (KNOWLTON, apud TRUZZI, 2008, p. 112).

E nas palavras de Truzzi,

Uma complexa hierarquia de status e poder foi aos poucos se desenvolvendo no interior da colônia, não apenas como resultado de filiações religiosas, origens geográficas, e acontecimentos políticos na terra de origem, mas, sobretudo de desempenhos econômicos diferenciados entre as famílias na nova sociedade (TRUZZI, 2008, p.103).

Em Recife, como já expliquei anteriormente, praticamente todos os imigrantes pioneiros eram oriundos de uma mesma cidade, pertenciam à mesma parentela e todos eram cristãos. Embora a maioria dos imigrantes proviesse dos estratos sociais mais elevados, quase todos possuíam um nível de instrução equivalente ao primário ou secundário. Então, na falta de diferenças religiosas, políticas, geográficas, sociais e culturais que os afastasse, a reorganização espacial foi motivada provavelmente pela diferenciação econômica alcançada no Brasil, pela busca de status social e principalmente, pelo desejo de aproximação e integração com a sociedade acolhedora. E, da mesma forma que os casamentos exogâmicos, essa reorganização espacial dos palestinos também representa um “indicador privilegiado” de assimilação.