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4 OS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO

4.3 As redes de solidariedade que viabilizaram a migração

As redes de solidariedade que se estabeleceram por detrás do processo migratório para garantir a viabilidade do empreendimento não foi uma particularidade da imigração árabe e como pôde ser observado em outras comunidades étnicas, foram determinantes para o sucesso da empreitada. No caso da imigração árabe, porém, em virtude da inserção exclusivamente urbana e, sobretudo, do caráter informal da imigração, ela pode

ter sido ainda mais importante do que para outros grupos imigrantes que se estabeleceram em regiões de colonização rural no Sul do Brasil, por exemplo.

As redes uniam as duas pontas do processo migratório, desde a origem até o destino, em uma relação de complementariedade entre as duas comunidades, a dos imigrantes já estabelecidos no Brasil e a dos que continuavam em suas aldeias. Além da ajuda financeira, o emigrante contava também com um apoio ‘logístico’ de toda a parentela, que podia ajudar na manutenção da família e na educação dos filhos enquanto ele estava ausente. Assim, o imigrante árabe não vinha desamparado. Sabia que poderia contar com a ajuda de familiares e conterrâneos e com a eficiente rede de solidariedade que se formou. Ele já saía do seu País sabendo onde iria morar e onde e com quem iria trabalhar. Então, ao desembarcar no Brasil, normalmente era recebido pelo parente que o havia chamado e quase sempre se hospedava com ele nos primeiros meses, num período importante de adaptação e aprendizado da língua e dos costumes locais. É importante salientar que mesmo os pioneiros não estavam sozinhos. Por detrás de seu esforço individual havia toda uma articulação da parentela com o objetivo de prover as condições necessárias para que a emigração fosse bem sucedida. Truzzi, que analisa a imigração síria e libanesa no Estado de São Paulo, relata:

[...] existia uma rede de conterrâneos funcionando efetivamente: provendo emprego, treinando e socializando o recém-chegado... Além disso, por sobre as relações de conterraneidade, estavam as relações familiares. Entre os sírios e libaneses, a economia familiar sobreviveu e floresceu porque normalmente nas fases iniciais – como aliás é típico em outras etnias, o negócio dependia fortemente do trabalho de toda a família (TRUZZI, 2008, p. 68).

Nas etapas seguintes da integração, essas relações de complementariedade observáveis no interior da comunidade podia se manifestar de diversas formas diferentes, como na concessão de avais e fianças ou empréstimos em dinheiro, por exemplo. “Redes de emprego, indicações, subcontratações, e negócios preferenciais entre conterrâneos e parentes constituíram verdadeiros feudos étnico-ocupacionais”. Quando um imigrante mais antigo e já bem sucedido se transformava em ‘grossista’, fornecia mercadorias consignadas aos varejistas e tropeiros. O varejista, por sua vez, abastecia os mascates. Os tropeiros que retornavam de suas incursões carregados de peles de animais e outros produtos trazidos do sertão forneciam- nos a outros comerciantes conterrâneos que os vendiam em outras praças ou destinava-os a exportação. Segundo Franklin,

Essas redes sociais permitiam aos imigrantes dinamizarem e realimentarem continuamente suas atividades, tornando possível a expansão dos negócios entre os emigrados pelo trânsito de produtos e associações entre patrícios [...]. Por meio das teias comerciais, [...] passaram a ocupar parcela considerável dos estabelecimentos varejistas especializados, [...] favorecendo sua visibilidade local [...] e maior poder de negociação e barganha (FRANKLIN, 2009, p.7).

A década de 1930 foi um período conturbado para a maioria dos comerciantes árabes estabelecidos no Brasil por causa da grande crise mundial de 1929. O meu avô Hissa Mussa Hazin foi uma das vítimas da crise e não conseguiu evitar a falência de seu estabelecimento comercial. Anos depois, porém, a recuperação dos negócios da família se tornou possível graças à solidariedade de outros imigrantes:

Na década de 1940 a família [de Hissa Hazin] voltou a se recuperar gradativamente graças à ajuda de vários conterrâneos palestinos e mesmo de alguns amigos brasileiros, a exemplo da família Pedrosa da Fonseca [o brasileiro João Pedrosa da Fonseca era casado com a palestina Gemila Dueire] (ASFORA, 2002, p. 138).

Ao falar das trajetórias de suas famílias, a maioria dos meus entrevistados refere-se à existência das redes de solidariedade que facilitaram a inserção de outros imigrantes, sobretudo nos primeiros anos da imigração, quando as dificuldades enfrentadas pelos recém-chegados eram sempre maiores. Segundo o relato de Leda Asfora, neta de palestinos que viveram em Recife:

Meu outro avô veio em mil oitocentos e ‘danou-se’, por aí [...]. Vovô foi o primeiro cara a vir [da Palestina]. Daí se deu bem e foi trazendo os irmãos, os primos, os amigos. Bechara Asfora. Segundo papai ele foi o primeiro. Cada vez que vinha um primo dele um irmão e tal, ele montava um negócio igual ao dele, não é, que era miudezas, vendia miudezas. Ele entrava com 50%, o cara com trabalho e ele com dinheiro. Quando ele tirava tudo que botou ele saía da sociedade [...]. Ele era super solidário e ele fez isso com todo mundo que veio pra cá. Quando vovô Hissa faliu, ele botou Nassri [tio Nassri] para trabalhar pra ele também pra ajudar a família.

E tudo indica que essas redes “se mostraram operantes não somente para os primeiros passos nos negócios, mas também para a sua consolidação e para a entrada maciça da segunda geração no mercado de profissões liberais” (TRUZZI, 2008, p. 280). Nesse caso, vale ressaltar o esforço dos membros de cada família para a educação de alguns. Anos atrás, meu tio João Hissa Hazin me relatou:

Quando a empresa de papai faliu, a vida da gente mudou completamente. Tivemos que deixar o casarão onde morávamos em Casa Forte para morar num sótão em um sobrado na Praça Dom Vital, próximo ao Pátio do Mercado [de São José], onde funcionava o que havia sobrado do estabelecimento comercial da gente. Naquela ocasião paramos de estudar para ajudar nossos pais nos negócios e no ‘sustento’ da família. Com exceção de Mussa, todos pararam de estudar para trabalhar. Éramos todos muito jovens quando paramos de estudar. Nassri [o irmão mais velho] devia ter uns quinze anos. Mussa foi ‘escolhido’ para continuar estudando porque mamãe queria de todo jeito ter um filho médico e Mussa, além de ser o mais estudioso, era o que tinha menos jeito com os negócios.

Oswaldo Truzzi alerta, no entanto, que no caso dos sírios e libaneses que imigraram para São Paulo não havia uma rede, mas, “diversas redes que se articulavam,

sobretudo, segundo origens regionais, vínculos de parentesco e afinidades religiosas”, para poder atender à grande diversidade de imigrantes que aqui chegavam (TRUZZI, 2008). Entre os palestinos que vieram para o Recife, porém, oriundos quase todos de uma mesma cidade, Belém, membros de uma mesma parentela e partilhando a mesma fé cristã, praticamente não há relatos de conflitos identitários ou religiosos relevantes no interior da ‘colônia’. Graças a isso, praticamente todos os imigrantes palestinos, de uma forma ou de outra, se beneficiaram da grande rede social que eles próprios erigiram. O sucesso de uns dependeu, em última análise, do trabalho de todos, “da teia de oportunidades propiciada pela cooperação familiar nos negócios, pelas relações de parentesco e conterraneidade oferecidas pela colônia e mobilizadas em favor de sucessos individuais” (TRUZZI, 2008).

Vale salientar que as redes de solidariedade construídas pelos palestinos ajudaram também no estabelecimento das outras comunidades árabes que chegaram à cidade, não havendo também relatos de problemas mais sérios entre eles. Talvez porque, a grande maioria dos sírios e libaneses que imigrou para o Recife também fosse cristã e eles não precisaram enfrentar o sectarismo religioso relatado nas grandes comunidades do Sudeste ou de algumas cidades do Nordeste. Em sua entrevista Safieh deu o seguinte relato:

Eu me lembro da resposta de um da família Hazin, não me lembro quem foi. Foi ele que me contou a história. Chegou um embaixador itinerante Libanês em Recife, [...] em 74, algo assim. E juntou a comunidade libanesa. E os libaneses convidaram os palestinos. Esse cara estava chegando para falar mal dos palestinos porque a guerra civil estava começando no Líbano e ele queria instigar os libaneses contra os palestinos. E os libaneses, não me lembro quem era o presidente [da associação] dos libaneses naquela época, ficaram constrangidos, tinham convidado seus amigos palestinos. Aí ele se levantou [o presidente da associação] e disse ao embaixador bem claramente: senhor, o que o senhor está vindo fazer aqui, o senhor não vai acertar não. Aqui não existe essa história de libaneses e palestinos. Pra sua informação, nós libaneses que chegamos aqui, encontramos uma estrutura de palestinos aqui que nos receberam de braços abertos e que nos ajudaram e nós não somos um bando de ingratos. O senhor não tem o direito de tratar os nossos familiares dessa maneira. Aí ele saiu furioso da reunião.

Apesar de seu papel fundamental no processo de inserção do imigrante palestino em Recife, as redes de solidariedade não duraram indefinidamente e começou a ‘perder força’ em meados da década de 1930 quando reduziu o fluxo de novos imigrantes e quando houve a dispersão das famílias pelos diferentes bairros da cidade. Mesmo assim, ela persistiu até algumas décadas atrás e era acionada esporadicamente em casos pontuais. Na década de 1960, por exemplo, um médico, filho de imigrantes, ajudou a um conterrâneo, amigo da família, entregando o seu próprio carro para que ele pudesse ter um táxi. Naquela época não existia financiamentos de longo prazo, mesmo assim, o combinado foi de que o automóvel seria pago com uma pequena parte do que fosse arrecadado.