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Outro aspecto que distinguia os palestinos dos outros imigrantes que escolheram o Brasil como destino, sírios e libaneses inclusive, é que apesar da pouca escolaridade mencionada anteriormente30, praticamente todos os imigrantes eram alfabetizados em árabe e quase todos falavam pelo menos uma língua estrangeira além da língua nativa. Talvez, por essa razão, a maioria alfabetizou-se em português tão logo desembarcou no Brasil. Essa outra particularidade do palestino que imigrou para o Recife também está diretamente associada ao fato de que quase todos eram oriundos de Belém e como já vimos, quase todos eram cristãos. Na condição de árabes e cristãos, os belemitas não tinham acesso à educação formal que era ‘oferecida’ pelo Governo islâmico da Turquia. Restava-lhes a alternativa representada pelas congregações religiosas europeias ou americanas31. E por ser a principal cidade predominantemente cristã da Palestina, Belém concentrava a maior parte das instituições cristãs voltadas para a educação no País. Havia na cidade a Congregação Ortodoxa Grega, a Congregação Latina (ligada a Roma), a Congregação Armênia, a Congregação Católica Grega, a Congregação Ortodoxa Siríaca, a Congregação Católica Siríaca, a Congregação Copta, a Congregação Abissínia Etíope, e algumas congregações protestantes, divididas em várias seitas, tais como luteranos, batistas e anglicanos (ELALI, 1995).

Vale salientar que a educação oferecida pelo estado turco, ao menos para os cidadãos de origem árabe, era muito precária e excludente e voltada exclusivamente para os muçulmanos. Além disso, era nitidamente inferior à educação ‘ocidentalizada’ que era oferecida pelas escolas cristãs europeias. Hanna Safieh relata o caso de seu próprio pai, que estudou em uma escola cristã em Belém:

O regime otomano foi um regime extremamente obscurantista. Nós cristãos fomos beneficiados, beneficiados entre aspas, nós conseguimos nos salvar um pouco melhor que os muçulmanos na educação por causa das instituições religiosas. Por

30 Não havia nenhum curso superior até o final da primeira fase da imigração. A primeira instituição de ensino

superior na palestina, a Universidade Hebraica de Jerusalém, foi fundada em 1925 pelos sionistas. Depois, foi fundada em 1973 a Universidade de Belém, mantida pelo Vaticano, que passou a oferecer cursos de nível superior aos palestinos cristãos. Antes disso, eles precisavam viajar para países vizinhos ou para a Europa para obter graduação.

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Em todo o Oriente Médio e na Palestina em especial, atuavam instituições religiosas, filantrópicas ou da área de saúde das mais diversas origens, mas, principalmente, francesas, inglesas, alemães, russas, italianas e Americanas.

exemplo, meu pai estudou... [...]. Meu avô viajava, era engenheiro e naquela época passava meses fora porque tinha que construir estradas [...]. Resultado, ele estava naquela época em Belém. Foi morar em Belém. Meu pai estudava nos Irmãos La Salle, em Belém. Na sala só tinha cristãos.32

Hanna Safieh fala de seus estudos em Jerusalém, uma cidade predominantemente islâmica, na mesma congregação onde seu pai havia estudado em Belém, ele chama a atenção para o fato de que, mesmo sendo uma escola cristã, a maioria dos alunos era muçulmana. Segundo Safieh,

Em Jerusalém, o colégio onde eu estudei, os irmãos La Salle, tinha também essa filosofia. Então é óbvio que numa escola, mesmo uma escola católica, num país onde a maioria é muçulmana, é lógico que a maioria dentro do colégio vai ser também muçulmana. Resultado, vai ser uma proporção diferente, mas era maioria. [...] E nós fomos criados juntos. E o colégio dava aulas, tinha aulas de religião católica e você tinha as aulas de religião muçulmana [...]. Todos eles eram assim. Em Jerusalém as escolas cristãs eram mistas [...]. E olha, as aulas de religião, tanto católicas quanto muçulmanas, eram aulas abertas. Por exemplo, eu assisti muitas aulas de religião muçulmana. E tinha um respeito muito fantástico entre os dois. [...] Era uma estrutura [educacional] fantástica. Sempre nós convivemos árabes cristãos e muçulmanos, e nós convivemos com cristãos árabes, cristãos gregos e armênios. E você tinha os gregos católicos e tinha os gregos ortodoxos, a maior parte era ortodoxa.

Minha avó Hilue Sarah Hazin, embora cristã ortodoxa, foi educada em uma escola católica francesa de Belém. Graças a isso ela era alfabetizada em árabe e em francês. “Dona Hilue, que falava bem o francês intercedeu perante o comandante para facilitar a viagem, mas recebeu do mesmo, resposta negativa” (ASFORA, 2002, p.134). O mesmo fato é relatado em entrevista por duas netas suas, Eliane e Jane Asfora: “Vovó teve uma formação de inglês, francês, ela sabia falar Francês. Vovó Helena também falava [francês]. Ela foi estudar interna num colégio de freiras francês” (fotografias 6 e 7).

Fotografia 6: Escola para moças em Fotografia 7: Alunos e professores de Nablus. Jerusalém, primeira metade do século XX. Primeira metade do século XX.

Fonte: KHALIDI, 1986, p.163 Fonte: KHALIDI, 1986, p.167

32 O Instituto dos Irmãos de La Salle é uma congregação fundada por São João Batista de La Salle e aprovado

Como elas, a maioria dos palestinos e palestinas que veio para o Recife também foi educada em instituições cristãs europeias, uma educação muito mais ‘ocidentalizada’ do que a educação islâmica da população muçulmana e que, certamente, não se limitavam a pregar o evangelho. Para além da evangelização, havia toda uma ideologia ocidental e capitalista, a começar pela língua e cultura europeias ensinadas nestas escolas. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto assinala que o papel das escolas missionárias extrapolava os objetivos tradicionais da educação ao inculcar uma visão de mundo modelada segundo os ideais culturais americanos [e europeus, no caso da Palestina] que marcaria o imaginário da ‘classe média intelectualizada’:

Esse imaginário empreendedor transmitido pelas escolas missionárias incentivava a busca de contextos favoráveis para a sua conversão em uma trajetória de ascensão social, o que, em muitos casos, significava migrar, dentro e fora do Império Otomano (KNOWLTON, Apud ROCHA PINTO, 2010, p.36).

Essa explicação de Pinto ajuda-nos a entender, ao menos em parte, por que a maioria dos palestinos cristãos da primeira e da segunda fase emigrou para países de cultura ‘ocidentalizada’, como o Brasil, e por que os muçulmanos em geral, preferiram emigrar para os países vizinhos, do Oriente Médio ou do Norte da África. Além da identidade de fé, já havia entre os cristãos um conhecimento de história e geografia que extrapolava os limites do Oriente Médio e do Império Otomano e uma compreensão melhor da cultura ‘ocidental’ e uma propensão a viver segundo os seus preceitos.