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4 OS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO

4.5 De mascates a comerciantes

Se o baú ou as tropas eram as opções para os recém-chegados, quase todos terminavam por se estabelecer como comerciante em algum centro urbano, como aconteceu com outros imigrantes árabes no Sudeste do País que se aglomeraram nas zonas centrais do Rio de Janeiro e São Paulo, sempre próximos aos grandes mercados. Em Recife, para onde convergiu grande parte dos imigrantes palestinos que estavam dispersos como mascates pelo Nordeste, a opção foi a Praça Dom Vital, no entorno do Mercado de São José:

Dele se partia para a segunda etapa da aventura comercial: um compartimento no mercado São José. O Mercado São José representava na época mais ou menos o que hoje representa os Shoppings: oferecia asseio, sortimento, preços módicos, variedade de produtos, instalações modernas e bem iluminadas, comodidade no horário de funcionamento de segunda a sexta das 5 às 17h e aos sábados até às 19h, e aos domingos das 5 às 14h, e segurança, pois se dava ao luxo de ter três guardas civis e cadeia com xadrez (ASFORA, 2002, p. 24).

João Asfora Neto é filho e ao mesmo neto de imigrantes palestinos. O avô começou a vida como mascate em Pernambuco, mas seu pai, que veio depois, já encontrou o pai estabelecido no comércio. Asfora dá o seguinte depoimento sobre a trajetória de seu pai e seu avô desde a saída da Palestina:

Sei que veio alguém antes deles que deu o caminho das pedras a eles, porque papai dizia que quando seu pai saiu de lá, já veio certo para o que ia fazer. Ia chegar na França, ia vender aquele artesanato de Belém, ia comprar perfumes, rendas e sabonetes e com esses perfumes que ele sabia que era muito bem aceito aqui, eles iriam usar aquilo como mercadoria. Alguém já tinha feito isso e tinha ensinado esse caminho. Era o caminho que eles tinham [...]. Parece que quando eles iam fazer as vendas eles saiam pelo interior. Mas não foi daqueles que iam para o Ceará, Maranhão, porque teve um grupo que fez isso. Agora, o irmão do meu avô, passou pelo Ceará. Morou inclusive, teve filhos lá. [...] Papai não. Por que quando o pai dele veio fazer isso eles estavam lá [os filhos estavam na Palestina]. Quando ele se estabeleceu com aquelas lojas da Rua do Rangel, aí foi que ele trouxe. Quando papai veio já existia a loja, com o outro ‘Becharão’[o avô materno Bechara]. Era Bechara e Abdala. Eles já estavam bem de vida.

O Mercado de São José e adjacências seria o ponto de partida e o centro irradiador de uma atividade que seria consagrada pelos palestinos: o comércio (fotografias 57 e 58). Nos primeiros anos da imigração o Bairro de São José reunia praticamente todos os palestinos, sírios e libaneses que viviam em Recife. Várias ruas desse Bairro eram ocupadas por lojas e residências dos imigrantes. Alguns possuíam suas lojas instaladas nos pequenos boxes (ou compartimentos, como se costumava chamar na época) dentro do Mercado.

Fotografia 57: Mercado de São José no final do século XIX. Fotografia 58: Comércio em torno do mercado Fonte: Panoramio. Acesso em 12.07.2016. Disponível em: São José, Praça Dom Vital. Década de 1940. http://www.panoramio.com/photo/112636257 Fonte: Imgrum. Acesso em 12.07.2016.

http://www.imgrum.net/user/pernambuco_arcaico/

Como os boxes eram muito pequenos, à medida que estes comerciantes prosperavam, alugavam outras lojas, de preferência contígua à sua. Muitos também mantinham depósitos de mercadorias em velhos sobrados nas proximidades do Mercado. Outros comerciantes, por opção ou por falta de espaço dentro do Mercado, se estabeleciam em ruas vizinhas como a Rua do Rangel, Rua Duque de Caxias, Rua da Praia, Rua Direita, Rua das Calçadas, Rua de Santa Rira, Rua Padre Muniz, etc. Quase sempre instalavam o seu comércio em um sobrado da região e quase todos vendiam miudezas e produtos de ‘armarinho’. No andar térreo era a loja propriamente dita, e no sótão ou primeiro andar era o depósito e a residência da família. E aí, reproduzia-se no Brasil a mesma estrutura patriarcal das famílias árabes existente na Palestina: ali estava o chefe da família, o patriarca, comandando o negócio e garantindo o sustento do grupo e sua esposa, cuidando da casa e dos filhos. Na mesma casa moravam os filhos e as filhas solteiros e os filhos casados com suas esposas e filhos. A narrativa de João Sales Asfora, filho de um imigrante de Belém, Sales Mussa Asfora, retrata bem o que o Mercado e o resto do bairro representaram para os palestinos:

Ali era o marco inicial de suas vidas comercial. A mascateação havia sido o estágio passageiro e servira como o aprendizado da língua e para fazer as primeiras amizades com os naturais da terra para onde haviam vindo. Era o teste, como se fosse o vestibular do aprendizado comercial: Os que se davam bem, logo compravam o compartimento do vizinho, passando a merecer mais respeito dos representantes comerciais e dos fregueses, na sua maioria mascates, agora brasileiros e os pequenos comerciantes dos subúrbios e cidades vizinhas. Dali, os vitoriosos ou mais arrojados partiam para os armazéns da Rua do Rangel. Os comerciantes do Mercado, através dos seus pracistas, seus vendedores que trabalhavam externamente, abasteciam as mercearias dos subúrbios, as farmácias e as pequenas lojas. Alguns mais fortes

financeiramente mandavam viajantes para o interior de Pernambuco e estados vizinhos (ASFORA, 2002, p. 85-86).

Asfora também procurou mostrar a importância que os comerciantes palestinos representavam para o Mercado de São José e para o comércio da cidade do Recife em geral, sobretudo no segmento de miudezas e tecidos:

Todos os comerciantes da seção ou rua que negociavam no atacado, isso é, vendendo preferencialmente a negociantes, com exceção de um libanês, eram naturais ou descendentes de palestinos, de Belém. Na década de 1940, lá estavam: Josué Chamie, Josué Hazin, Sales Mussa Asfora, Bechara Sales Asfora, Selin Sales Asfora, Abdo Aziz, Joseph Hanna Zarzar, Argemiro Bechara, Carlos Sales Asfora, Jorge Habib Hazin, Antônio e Tesbina Sales Asfora, Abrahão Mussa Asfora, Ramos Hanna Asfora. [...] No Recife, o comércio de miudezas e de tecidos estava em grande parte nas mãos de palestinos. Na década de 1930, no Mercado de São José e até o Armazém Oriente, na Rua Duque de Caxias, estavam estabelecidos 36 palestinos (ibidem, p.117)

Em sua entrevista, Fauze Hissa Hazin, narra o período que seu pai Hissa Hazin mudou do Piauí para o Recife e aqui se estabeleceu como comerciante:

Vieram para Recife, para a Rua do Rangel, com outros árabes que tinha lá, se não me engano, os irmãos Cauás. Ele era mascate [em Parnaíba]. Veio pra cá para ser comerciante. Eu me lembro que depois, a gente entrou de sócio [em uma loja] com os irmãos Cauás no Mercado de São José. [...] Aí voltamos a morar lá. A gente saiu da Rua do Rangel para o Mercado São José, na Praça Dom Vital 204, onde tinha a loja Irmãos Hazin. A gente morava no primeiro andar. A gente cresceu bastante. No Mercado São José, João era muito influente, conhecia todo mundo, a gente estava sempre na frente, então a gente cresceu muito [...]. A gente vendia para todo o interior do Estado e vendia também para outros estados. Aí Nassri teve a ideia de passar para eletrodomésticos [...]. (Fotografias 59 e 60).

Fotografias 59 e 60: Fauze em frente à loja e a família na ‘laje’ do sobrado à Praça Dom Vital. Fonte: Coleção do autor.