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4 OS CAMINHOS DA IMIGRAÇÃO

4.10 A socialização dos filhos

Transformado em permanente o caráter transitório inicial da imigração, começaram os palestinos a sentir a necessidade de socializar os filhos em um ambiente que

valorizasse os costumes e a cultura de sua terra natal. Como vimos acima, essa foi uma das razões pela qual a maioria dos imigrantes palestinos que estava dispersa pelo interior do Nordeste terminou mudando para o Recife, onde a convivência com outros filhos de imigrantes, ou com imigrantes jovens recém-chegados, seria mais fácil.

Nas primeiras décadas do século XX, a Praça Dom Vital, o Mercado de São José e adjacências tornou-se o palco e o principal instrumento de socialização a disposição dos imigrantes e dos filhos de imigrantes. Praticamente todos os belemitas que viviam em Recife moravam e trabalhavam na região, transformando o bairro de São José em uma pequena ‘aldeia’ da Palestina. E era nas ruas e calçadas das proximidades do Mercado que as crianças brincavam durante o dia e os jovens e os adultos se reuniam para conversar à noite (fotografia 67). E nos finais de semana à noite a opção de parte dos imigrantes mais jovens era o cinema. Segundo Asfora (2002, p.90):

O divertimento natural da garotada era correr pelas ruas do Rangel e da Praia, jogar bola no Pátio do Livramento ou brincar no prédio em construção do Grande Hotel, que era do Estado, mas que teve suas obras paralisadas por anos. À noite, tinha o Cinema Glória, que ficava em frente ao Mercado, o São José na Rua das Calçadas, ou o Ideal, no fim da Rua Direita, no Pátio do Terço. Para quem morava perto do trabalho, como os palestinos, todos ficavam a algumas centenas de metros de suas casas.

A aglomeração em uma mesma região da cidade estimulava as reuniões frequentes entre parentes e amigos para conversar, jogar, cantar e discutir, além de facilitar outros encontros sociais entre os filhos dos imigrantes, como aniversários e saraus, reproduzindo em Recife uma prática usual entre os belenenses. Além disso, o costume servia

Fotografia 67: Praça Dom Vital, próximo ao Mercado de São José Fonte: Imgrum- Pernambuco Arcaico

para aproximar os imigrantes recém-chegados dos que já estavam estabelecidos há mais tempo:

As ruas do Rangel, Praia, Penha, Livramento, Santa Rita e Padre Muniz eram onde residia a quase totalidade dos palestinos [sobretudo na década de 1920]. Oriundos quase todos da mesma aldeia de Belém, após o trabalho, se acomodavam na casa de um deles para comer sementes de jerimum torradas, uma boa buchada de carneiro ou carneiro assado, que aliás, era um prato que fazia parte de suas vidas desde a infância, jogar gamão, contando as peripécias do dia e quase sempre dando boas gargalhadas (ASFORA, 2002, p. 90) (fotografia 68).

Fotografia 68: Jogo de gamão. Fonte: Coleção do autor.

Os relatos de visitas e encontros sociais são frequentes entre os meus entrevistados. Nas palavras de Fauze Hazin:

Na época dos meus... deixa ver, dos meus catorze anos, ainda, papai gostava de fazer visitas. –Vamos ver tio Abrahão. Tio Abrahão não era meu tio. Os pais dele não eram irmãos de papai, mas, ele nos obrigava a fazer visitas, você entendeu, então, na comunidade, no tempo de papai, ele fazia questão de visitar os outros árabes, manter sempre aquele contato. Ele nos obrigava na época, –vamos fazer uma visita, até que eu me ‘desliguei’. –O que é que eu vou fazer lá, papai? Mas papai fazia questão com mamãe de manter aquela tradição com os árabes, não é, a comunidade palestina. Aí mamãe visitava a mãe de Norma, a tia de Norma Frej.

Olga Hazin Asfora é prima de Fauze. Em minha entrevista ela relata que seu pai e o pai de Fauze se encontravam diariamente após o trabalho para conversar.

Papai é primo legítimo de seu avô [Hissa Hazin, meu avô] Um dos mais amigos eram eles, e quando eles moravam em Olinda, [...] todas as noites eles se encontravam. Quando a gente chegou [ao Recife], eles alugaram uma casa naquele prédio de Elihimas, na Rua do Rangel. Aquele prédio era muito bonito, era uma beleza, pra você ter uma ideia, tinha gás encanado naquela época. A turma de árabes que morava ali, eles se juntavam aí cantavam à noite, faziam serenata, jogavam gamão. Cantavam músicas árabes, papai era um grande cantor árabe.

Nos finais de semana, a Casa de Banho era uma das principais opções de lazer e de socialização entre os imigrantes mais jovens. Nas palavras de Asfora, “era a praia natural

de quem morava no Bairro de São José”.85

Mas não apenas destes. A Casa de Banho era um ponto de encontro frequentado por grande parte da sociedade recifense e onde os filhos de imigrantes palestinos podiam estreitar suas relações com os membros da sociedade local (fotografia 69).

Fotografia 69: Casa de Banho, até a década de 1920, Recife. Fonte: Wikipédia. Acesso em 12.07.2016

https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_de_Banhos

E depois que o Mercado de São José passou a fechar aos domingos, na década de 1940, muitas famílias começaram a frequentar com mais assiduidade as praias do Carmo e dos Milagres, ambas em Olinda:

Alugava-se um carro e logo cedo se partia para a aventura [...]. Olinda era um encanto. Água limpa, mar forte e aberto, sem aquele mundo de pedras de Boa Viagem [...]. Na verdade, um passeio desses era um acontecimento. Para o Pina [Praia do Pina] não se ia86. Boa Viagem era muito longe e hostil [...]. Contavam os mais ‘antigos’ que para Boa Viagem se ia de trem. Saltava-se na Estação de Boa Viagem, alugava-se um trole, colocava-se as cestas de alimentos e os sacos com as roupas de banho, toda a família subia, e um moço, com uma vara comprida, o trolista, ia impulsionando o veículo sobre os trilhos. O passeio era mais bonito porque era dentro de uma verdadeira mata de cajus e mangabas, até a praia (ASFORA, 2002, p. 89 e 90).

Um elemento de socialização frequentemente citado em outras pesquisas são os clubes sociais. Em Recife há poucos relatos de clubes fundados pelos imigrantes árabes, talvez por causa do tamanho relativamente pequeno da comunidade. Mesmo assim há referências ao Esporte Clube Oriente fundado pelos membros da família Asfora no final da

85 A Casa de Banhos era inicialmente uma hospedaria para fins medicinais construída em 1880 em cima dos

arrecifes no Porto do Recife. Alguns anos depois foi transformada em uma pousada-balneário. Além de hospedagem e dos banhos de mar em piscinas naturais, havia um restaurante. Até o final da década de 1920, quando a Casa de Banhos foi destruída por um incêndio, era um dos principais pontos de encontro da sociedade pernambucana. Mesmo algumas décadas depois do incêndio, o local continuou sendo utilizado para banhos de mar pela população recifense.

86 A Praia do Pina deixou de ser frequentada por muitos recifenses depois que foram colocados os canos do

década de 1930 ou início da década de 1940. Além de um ponto de encontro social, o clube chegou a formar um time de futebol masculino e dois times de volibol, masculino e feminino (fotografias 70 e 71). Segundo o relato que foi fornecido por Fauze Hazin:

Teve uma época, que na casa do pai de Alexandre Asfora, você sabe que a casa era o quarteirão, todo, e ali, antigamente, a gente fazia jogos, de volibol, mas era mais da família Asfora. Nesse álbum tem fotos de lá, inclusive de futebol, que se formava, volibol, futebol... Se marcava piqueniques, mas, eu diria que era mais da família, não é, os casados com os Asfora que era Zuca, e mais os Asfora mesmo, a família de Fernando Asfora, Geni Asfora, mais da família, porque a família Asfora é muito grande, não é?

Fotografias 70 e 71: Times de futebol e volibol da comunidade palestina de Recife. Décadas de 1930/1940 Fonte: Coleção do autor.

Segundo Fauze Hazin, ainda houve o Clube Líbano Brasileiro, um clube social fundado provavelmente na década de 1940 pela comunidade libanesa do Recife e que durante os primeiros anos de atividade funcionou no bairro de Casa Amarela, subúrbio do Recife. Anos mais tarde, no final da década de 1950, seria inaugurada a nova sede social do Clube, no Bairro do Pina (fotografia 73), que passaria a ser o novo ponto de encontro da comunidade árabe do Recife, e não apenas a síria e libanesa. Segundo o Libanês José Luís Janot:

Meu tio foi um dos fundadores do Clube Líbano, [...] eu tenho dois títulos, o meu e outro que papai me deu, [...]. Houve uma época que o Clube Líbano era um ponto de encontro fantástico. Da comunidade árabe como um todo, não só dos libaneses como também dos palestinos. Eu disse a você que tem palestino que foi fundador do Clube Líbano? São sete fundadores, um deles da família Asfora [palestina].

Além das ruas e das calçadas, das casas e dos clubes sociais, um elemento fundamental da socialização dos palestinos era a igreja. Como já foi dito, os palestinos que imigraram para o Recife eram todos cristãos, a maioria ortodoxa. Como não construíram uma igreja ortodoxa em Recife, quase todos se converteram prontamente ao catolicismo. Alguns ainda levaram seus filhos para serem batizados nas igrejas ortodoxas construídas pelos sírios e libaneses no Rio de Janeiro ou em São Paulo ou esperavam pela passagem esporádica de um padre da igreja ortodoxa pelo Recife, mas cotidianamente, frequentavam alguma igreja

católica da cidade. E neste caso, a Igreja da Penha na Praça Dom Vital, ao lado do Mercado de São José, cercada de moradias e estabelecimentos comerciais de palestinos, era a ‘igreja da colônia’ árabe de Recife (Fotografia 72).

Além do comparecimento semanal aos domingos, as festas religiosas da Igreja da Penha ou da vizinha Igreja do Carmo eram acontecimentos importantes para a vida social dos palestinos, apenas superado em importância e em participação pelas festas de carnaval. Além disso, a Igreja da Penha reunia os imigrantes para outros ritos religiosos importantes para a socialização dos palestinos, como batizados, primeira comunhão, casamentos e missas fúnebres ou para outras datas que fazem parte do calendário religioso católico como a páscoa, natal e ano novo.

Fotografia 72: Igreja da Panha, década de 1930/40 Fotografia 73: Clube Líbano Brasileiro Fonte: Fernando Machado Blog. Acesso em 12.07.2016 Fonte: Skyscrapercity.com

http://www.fernandomachado.blog.br/novo/ http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?

Assim, ao mesmo tempo em que era um importante meio de socialização para os membros da comunidade palestina, fortalecendo antigos laços de solidariedade e produzindo novas amizades e relacionamentos sociais, os ritos e festas cristãs também eram ocasiões na qual os imigrantes tinham contato direto com a sociedade acolhedora. Era o momento de a sociedade anfitriã perceber que, embora os imigrantes parecessem pouco familiares em termos de linguagem e cultura, os palestinos não eram tão diferentes nem tão segregacionistas como se supunha, pois, apesar de morarem e trabalharem todos na mesma região, os palestinos rezavam e se divertiam com os brasileiros. Esse também era um momento de interação entre os dois grupos, onde as novas identidades do imigrante eram negociadas e fixadas e um momento onde os costumes da sociedade nativa eram apreendidos pelos adventícios. Seus próprios costumes, por sua vez, não eram melhores nem piores do que os dos ‘nativos’ e nem de difícil assimilação pela sociedade local.

5 UMA IDENTIDADE EM MUTAÇÃO

Aspirações de longo prazo substituíram metas

temporárias e a maleta do mascate itinerante, símbolo de seus laços com a terra natal, cedeu lugar à loja de varejo, o símbolo de confiança com a nova terra

Alixa Naff

O objetivo inicial dessa dissertação, como eu disse, era fazer uma reflexão acerca da identidade étnica e da etnicidade dos palestinos e seus descendentes que residem em Recife, bem como, da persistência de um grupo étnico palestino na interação com a sociedade que os acolheu. Para isso, entrevistei diversos membros da ‘comunidade’ para tentar identificar elementos que confirmassem a pertinência dos indivíduos a um grupo étnico valendo-me, principalmente, dos trabalhos que foram escritos nos últimos anos por diversos autores consagrados. Mas, como eu suspeitava, o resultado de minhas entrevistas não confirmam a existência de um grupo étnico palestino em Recife, mesmo havendo hoje uma população numericamente relevante e de muitos entrevistados afirmarem se sentir ou se identificar como palestinos.