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3.4 Fatores coadjuvantes

3.4.1 Intolerância religiosa e perseguição étnica

Uma das principais causas que teria motivado a emigração de povos árabes para a América teria sido a intolerância religiosa por parte dos otomanos de fé islâmica em

relação aos árabes de fé cristã. Verdadeira ou não, o fato é que esta questão provocou e ainda provoca intensos debates no meio acadêmico, inclusive no Brasil, onde alguns pesquisadores como Taufik Duoun e Wadih Safady “retrataram a imigração através de uma narrativa de intolerância religiosa” (ROCHA PINTO, 2010, p.25). Importante ressaltar que o Império Otomano era tolerante com as outras religiões, especialmente judaísmo, cristianismo e zoroastrismo, por serem estas religiões ‘reveladas’, a exemplo da própria religião islâmica63. Mesmo assim, para aqueles autores, essa ‘tolerância’ religiosa parece não ter sido capaz de impedir a emigração em massa de povos árabes de fé cristã dos territórios ocupados do Oriente Médio.

O ponto de partida que deu suporte a essa corrente de pensamento foi o massacre de cristãos em Damasco 186064. Este episódio seria apontado por estes e muitos outros autores como o fator desencadeador da emigração em massa de árabes para o Brasil. Contudo, como vimos anteriormente, essa hipótese parece carecer de fundamento, pois, como afirma Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, não há como estabelecer uma causalidade direta entre o fato e o início da emigração para o Brasil, já que o primeiro árabe emigrou para o Brasil em 1871, mais de dez anos após o episódio em Damasco (ROCHA PINTO, 2010, p.31). Além disso, todos os autores concordam que os primeiros imigrantes árabes que chegaram ao Brasil vieram de Belém, na Palestina, muito distante daquela cidade da Síria. Finalmente, como aponta Knowlton, até o ano de 1891, apenas 156 árabes de todas as nacionalidades haviam ingressado no País (KNOWLTON, apud HAMID, 2012). Eram os pioneiros e a imigração em massa para o Brasil ainda não havia começado trinta anos após o massacre de Damasco.

Contudo, se o Massacre de Cristãos em Damasco não foi a causa da imigração árabe no Brasil, é provável que ela tenha exercido grande influência para imigração nos Estados Unidos. Segundo Roberto Khatlab os imigrantes libaneses começaram a chegar aos Estados Unidos a partir de 1854 e que depois do Massacre dos Cristãos em 1860 ela aumentou de intensidade (KHATLAB, 2015). Porém, mesmo nos Estados Unidos o assunto não é consensual. Pesquisando a imigração árabe também de predominância cristã que aconteceu na mesma época naquele País, Alixa Naff concluiu que “[...] os mais interessados em propagar tal tese foram os maronitas, ardentes defensores do Líbano sob o regime de protetorado francês”, e que ela própria, em nenhuma das entrevistas com informantes cristãos,

63 As religiões para as quais Deus se revelou pessoalmente aos seus profetas, como Jesus, Moisés e Maomé e

através deles, suas palavras inspiraram a escrita de livros sagrados, como a Bíblia, o Torá e o Alcorão.

64 O episódio originou-se a partir da tensão sectária crescente no Império Otomano que induziria o confronto

obtivera tal informação (NAFF, Apud TRUZZI, 2008, p.30). Por outro lado, Philip Khuri Hitti, um cristão maronita libanês radicado nos Estados Unidos desde 1908, atribuiu a predominância cristã dos imigrantes à mentalidade progressista e menos apego à terra por parte deles. Segundo o autor, “estes [os muçulmanos] acreditavam que teriam mais dificuldades em seguir seus preceitos religiosos em uma terra distante, onde seriam minoria” (HITTI, apud TRUZZI, 2008, p.30).

Mesmo afirmando que a religião não seria a principal causa da emigração árabe para o Brasil, Truzzi concorda que a questão é no mínimo controversa, “de modo que se deve dar uma importância no máximo secundária a perseguições religiosas como fator impulsionador da imigração”. (TRUZZI, 2008, pg. 30). E para Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (2010, p.19; p.26):

Muitos dos ‘mitos da imigração’ que tematizaram a pobreza, a opressão e a intolerância religiosa do Império Otomano, entraram para o quadro interpretativo de pesquisadores da imigração árabe no Brasil. [...] O caráter mítico desses temas não deriva de sua ‘verdade’ ou ‘falsidade’, mas sim do fato deles terem a função de produzir um sentimento de coesão e origem comum ao grupo social e culturalmente heterogêneo como era aquele dos imigrantes árabes. [...] “As tensões e os conflitos sectários tiveram um papel importante nos processos sociais que desencadearam o fluxo migratório. Porém, essa não é uma relação direta de causa e efeito, mas sim de configuração, juntamente com outros fatores, dos múltiplos componentes sociais e culturais que levaram ao movimento migratório em massa para fora do Oriente Médio”.

Nesse caso, como assinala Rocha Pinto, o mais importante é perceber de que maneira “as tensões sectárias se articularam com outros fatores” econômicos, demográficos e políticos para viabilizar o processo migratório que propiciou a vinda dos árabes para o Brasil.

Em relação aos imigrantes palestinos que vieram para o Recife, minhas entrevistas confirmaram que praticamente todos eram cristãos, mesmo os que chegaram na terceira fase da imigração. Porém, muitos deles vinham de cidades onde predominava a religião islâmica, a mesma praticada pelos turcos. Diante dessa constatação poderíamos presumir que eles emigraram em decorrência de ‘perseguição’ religiosa em sua terra natal, como alegavam os escritores supracitados Duoun e Safady, entre outros. Esse fato ajudaria a explicar, ao menos em parte, por que só árabes cristãos vieram para o Recife, mas, não explicaria por que tantos muçulmanos (sírios e libaneses e palestinos inclusive), que não deviam ser discriminados pelo governo imperial, imigraram para o Rio de Janeiro e São Paulo na mesma ocasião.

Em minha pesquisa de campo com os palestinos natos procurei resposta para essa questão e a todos eles indaguei sobre a relevância da intolerância religiosa no processo imigratório e por que só cristãos haviam imigrado para o Recife. O palestino de Jerusalém

Hanna Safieh, por exemplo, recorda que a relação entre cristãos e muçulmanos na Palestina era bastante harmoniosa. Comenta da vida em Jerusalém antes da Segunda Guerra Mundial e fala de seu tempo como refugiado em Jerusalém durante a guerra com Israel (em 1948), quando sua família ficou abrigada em uma escola de freiras junto com outras famílias, algumas delas muçulmanas.

Olha, a sociedade em Jerusalém era uma sociedade que eu sou muito saudoso, por que era uma sociedade assim, eu diria, nobre, uma sociedade saudável, sadia. Por exemplo, a época das festas muçulmanas: nós éramos convidados nas casas dos muçulmanos para confraternizar com eles. Por exemplo, na festa da [...] para fazer a alimentação do dia que é permitida, eles convidavam os amigos deles cristãos para participar e a gente convidava eles nas nossas festas, no natal, na páscoa, era um convívio fantástico. [...] Resultado, não existe essa história. Dentro do convento que estou falando pra você tinha muçulmanos [abrigados pelas freiras cristãs]. Você vai recusar uma família, de dar proteção a ela? Isso é impossível. Eu pessoalmente nunca senti uma discriminação entre muçulmanos e cristãos.

O Sr. Romano Farsoun de Haifa, que nasceu no ano 1928 e chegou ao Brasil em 1953 e em Recife em 1958, deu o seguinte depoimento:

Não havia discriminação religiosa na palestina. O que havia era perseguição étnica. Os turcos odiavam os árabes e estes odiavam os turcos. Os imigrantes cristãos vieram para o Brasil porque este era um país cristão e eles sabiam que seriam bem recebidos aqui. Os árabes muçulmanos também eram discriminados pelos turcos e muitos também emigraram, mas diferentemente dos cristãos, preferiram emigrar para países de religião islâmica, principalmente para o Egito e outros países da África do Norte. [...] Papai odiava os turcos, porque os turcos maltratavam os árabes ‘pra burro’. Maltratavam os palestinos. Pelo fato de serem árabes. Não importava se eram cristãos, muçulmanos... Eu sou grego católico romano. Eu não sou muito religioso porque eu não entendo bem disso aí. [...] Papai dizia que os turcos mandavam os palestinos comer o esterco dos cavalos. Repara que maldade eram os turcos. [...] Independia de religião. Papai tinha muita raiva dos turcos por causa disso. Ele convivia na época ruim da Turquia.

Ao afirmar que na Palestina não havia intolerância religiosa entre os cristãos e muçulmanos, mas perseguição étnica contra os árabes por parte dos turcos, Hanna Safieh e Romano Farsoun contradizem aqueles autores que asseguram ser o sectarismo religioso uma das causas da imigração, e ao mesmo tempo, fortalecem a proposição de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e de Alixa Naff, que preferem não estabelecer uma relação causal entre intolerância religiosa e emigração. Por outro lado, o relato do Sr. Romano Farsoun também confirma a opinião de Hitti que procura explicar a predominância cristã entre os imigrantes árabes nos Estados Unidos não pela intransigência religiosa em seu País de origem, mas, sobretudo, pela identidade religiosa com o país de destino. A proposição de Hitti e o testemunho do Sr. Farsoun, portanto, são fundamentais para percebermos a importância do papel desempenhado pela religião em relação à escolha do destino dos imigrantes palestinos, pois como ele me relatou, os muçulmanos emigraram para países de religião islâmica situados

em outras regiões do Oriente Médio ou do Norte da África e os cristãos escolheram a América, Europa e Oceania, com os quais compartilhariam suas identidades religiosas.

Contudo, os depoimentos de Farsoun e Safieh não explicam por que tantos pioneiros sírios, libaneses e palestinos muçulmanos imigraram para São Paulo e Rio de Janeiro e por que apenas os cristãos escolheram o Recife. A resposta a esta questão estria na origem exclusivamente belemita dos primeiros imigrantes palestinos que chegaram a esta cidade, cuja população naquela época, como já dissemos, era predominantemente cristã e estes pertenciam aos extratos mais elevados e às famílias mais influentes da sociedade local. Além disso, praticamente todos os cristãos haviam estudado em escolas cristãs, eram alfabetizados, falavam outras línguas além do árabe (francês ou inglês, em geral) e tinham uma visão mais ocidentalizada do mundo por causa da educação europeia das congregações cristãs. Eram eles, portanto, que possuíam as condições econômicas necessárias para a emigração para a ‘América’65

, ao menos nos primeiros anos da imigração. Depois de se estabelecerem na região e ganhar algum dinheiro com seu trabalho de mascate convidaram e financiaram a vinda de outros imigrantes. Já os pouquíssimos muçulmanos que viviam em Belém no início do século XX ficaram praticamente excluídos do processo migratório para o continente, restando-lhes a alternativa de emigrar para os países vizinhos. Quanto aos palestinos muçulmanos que se estabeleceram no Sudeste nas duas primeiras fases da imigração, é quase certo de procediam de outras cidades de fora do ‘triângulo cristão’ de Belém, Beit Jala e Beit Sahur.

Fotografia 36: Cidade de Belém no período Fotografia 37: Beit Sahur, próximo à Belém. do mandato britânico, início do século XX. Período do mandato britânico, início do século XX. Fonte: KHALIDI, 1986, p.137. Fonte: KHALIDI, 1986, p.114

A controvérsia provocada pela questão étnica e religiosa na Palestina seria mais intensa em relação aos períodos que se seguiriam à dominação turco-otomana, tanto no

65 Além de mais instruídos que os muçulmanos, os cristãos também gozavam de uma condição econômica

período do protetorado britânico quanto no período seguinte, após a criação do Estado de Israel, onde cristãos e muçulmanos passariam a conviver e a se confrontar cada vez mais com os judeus. Contudo, todos os relatos obtidos em minhas entrevistas afirmam que os conflitos étnicos e religiosos não eram decorrentes de contatos com os judeus que já habitavam a região, mas, principalmente, com os sionistas que chegavam em quantidades crescentes da Europa. Romano Farsoun, que citamos acima, dá o seguinte depoimento:

Por parte de meu pai, da minha família, não [havia discriminação]. Nós tínhamos muitos muçulmanos amigos nossos, inclusive judeus, amigos nossos. Não tinha nada disso. Quando começou o sionismo, aí começou a [...] no mundo todo. Os judeus que viviam lá viviam pacificamente com os árabes. [...] Meu professor de ‘violino’ era judeu.[...] Eu nunca tive de ir na área judaica para ter aula de violino. Ele ia à nossa área palestina, árabe, na minha casa. [...] E eu ia à casa dele, jantava com ele... Não tinha nada dessa história. Eu era o único violinista árabe palestino cristão no meio de trinta músicos judeus. Eu tocava, aprendia violino lá e tinha outros colegas aprendendo violoncelo. Tinha uma orquestra filarmônica lá e eu fazia parte da orquestra. Em Haifa, em 1945, 46, 47[...]. Quer dizer, não tinha essa divisão, não tinha essas coisas. [...] Meu professor de violino foi preso diversas vezes porque escreveu muitos livros contra o que aqueles judeus estavam fazendo. Era contra o que aqueles judeus estavam preparando lá [os sionistas] para tomar a terra dos árabes, era contra, e foi preso diversas vezes.

Jayme Asfora, neto de um dos primeiros palestinos que desembarcaram no Nordeste compartilha de uma opinião semelhante a de Farsoun

Não havia [...] nem ódio racial nem intolerância religiosa na Palestina até 1948, os judeus conviviam muito bem com os palestinos e com os árabes de um modo geral. Os palestinos que eram judeus, os de nacionalidade palestina que eram judeus, e eram de religião judaica, e tinham muitos, ou os palestinos que eram muçulmanos, ou como os de nossas famílias que eram cristãos, todos conviviam muito bem, sem problemas. Eram povos pacíficos, ordeiros, com uma cultura maravilhosa, enfim, com uma economia boa, aí você tem um mandato inglês, não é, que já começa a tomar, a tomar de maneira arbitrária a terra alheia e tal, o imperialismo a se manifestar e depois você tem finalmente esse atentado mesmo assim a uma Nação, a um País, que foi a criação do Estado de Israel.

A maioria dos relatos de minha pesquisa de campo, portanto, afirma que nas fases iniciais da imigração não havia intolerância religiosa contra os cristãos, nem por parte dos palestinos judeus, nem por parte dos palestinos muçulmanos. O que havia era uma intolerância étnica recíproca entre árabes e otomanos. A intolerância étnica e religiosa em relação aos judeus, por sua vez, só se tornaria um empecilho após a chegada dos sionistas europeus, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1930. Por essa razão, não se deve atribuir a ela a causa direta da imigração palestina para o Brasil, embora, a nível individual ou familiar ela tenha exercido grande influência na decisão de emigrar. A nível coletivo, a guerra entre árabes e israelitas que viria a seguir produziria milhares de refugiados palestinos e seria o fator causal da grande diáspora palestina que aconteceria no final da

década de 1940 e nas duas décadas seguintes, como vimos nos itens anteriores. Esta sim, a principal causa da imigração palestina no terceiro período (fotografias 38 e 39).

Fotografia 38: Judeus de Jerusalém, século XIX, Fotografia 39: Judeus rezando no Muro das Antes do início do sionismo. Lamentações, início do século XX.

Fonte: Israel e Palestina: Mitos e Fatos. Acesso: 12.07.2016 Fonte: Conexão Israel. Acesso em:12.07.2016

http://israelxxpalestina.blogspot.com.br/2012/12/.html http://www.conexaoisrael.org/