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A PAz E A SAúDE: CONtRIbUtOS PSICO-EDUCACIONAIS

2. A IMPORTâNCIA DA PERCEPÇÃO DA PAZ INTERIOR

FALTA DE PAz

Dizia Tamaro (2002) que a nossa sociedade está doente, con- siderando o outro como um risco, como um perigo. Eu pos- suo. Sou proprietário do meu tempo, da minha casa, dos meus afectos, dos meus êxitos e não tenho vontade de os partilhar. A vida já não visa a relação com os outros, mas com as coisas. A gratuitidade que está na base da vida, já não existe ou é olha- da com desconfiança. O desejo torna o homem cada vez mais escravo, já que em vez de se servir das coisas, passa o tempo atrás e dependente delas. É que mal se satisfaz um desejo apa- rece logo outro. É como uma sede que nunca se poderá saciar. Tamaro percebe este movimento do mundo, da sociedade hu- mana, pensa o ser e acrescenta o que na maioria da rotina da vida, não valorizamos, ou provavelmente não colocamos num patamar de essencial. Quando o único objectivo pessoal na sua realização é apenas estar com os outros por cálculo de interes- se, ninguém poderá ser feliz.

Nesta ordem, podemos apontar ainda três justificações para a falta de paz. Antes de mais, a rivalidade e a inveja impedem a paz. É a interpretação elaborada por um notável pensador francês contemporâneo, René Girard, para a falta de paz. A sua teoria afirma que a dinâmica básica da vida humana se encontra na estrutura do desejo que atravessa a nossa interio- ridade e possui um carácter insaciável. Esta teoria fundamen- ta assim, uma constante dinâmica do que realmente somos, mesmo com os nossos limites. De facto, cada um constrói a sua própria paz de acordo com a sua interioridade. Duas ou mais pessoas desejam a mesma coisa. Entram em rivalidade. Cada uma procura eliminar as demais concorrentes para, somen- te ela, possuir o objecto desejado. Mas a posse não é pacífica, porque outros vão imitá-la e disputar novamente o objecto. Desencadeia-se uma corrente de violências sem travão. Como parar este processo destrutivo? Alguém tem de ceder, perceber que se a violência continua, caminha-se para a destruição. Há que reconciliar-se consigo e com os outros. Há que parar de fazer o mal e construir o bem (Barbosa, 2009). Em segundo lugar, apontamos o desencontro entre a consciência e a mor- te. Esta interpretação da falta de paz no coração humano, nas relações interpessoais e sociais, provém da moderna tradição psicanalítica (Freud, 1973). Segundo esta compreensão, exis- tem no ser humanas duas forças antagónicas, o eros que quer a vida e o thanatos que traz a morte. Por mais que procure viver, o eros sucumbe perante o thanatos. Daí a dificuldade em se acolher a morte. Este desencontro entre a vida e a morte gera o medo, medo de que a morte possa insinuar-se de mil manei- ras e provocar uma destruição. O medo gera a violência que reforça a morte. Instaura-se um estado permanente de guerra e desaparecem as bases para a paz. A morte é sempre sinóni- mo de perda… um inimigo a destruir. Humanamente falando, todos negam esse inimigo de diversas formas. O medo é uma orientação de base para esse inimigo. Aqui reside a origem da agressividade: o medo de que o outro possa ameaçar, tirar ou diminuir as nossas oportunidades de vida. Ele pode ser por- tador da morte que rejeitamos. Por isso, é o inimigo e terá de ser combatido (Eibl-Eibesfeldt, 1987; Fromm, 2004). Antes de mais, há que eliminar a categoria inimigo, afastando o medo, produtor da violência. O medo afasta-se quando se introduz

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CONSTRUIR A PAZ: VISõES INTERDISCIPLINARES E

INTERNACIONAIS SOBRE CONHECImENTOS E PRáTICAS

a confiança, o amor incondicional e o cuidado. Quando os se- res humanos começam a cuidar-se reciprocamente, a cuidar o bem comum, a saúde, a educação, a habitação, a comunicação livre, o meio ambiente, então desaparecem as causas do medo. Depende de mim fazer dos outros inimigos ou próximos. Posso assumir um projecto de vida no qual para mim não há inimi- gos e pelo cuidado, pelo perdão e pela aceitação, todos podem ser aproximados e feitos meu próximo. Porque é que a maioria dos seres humanos não consegue manter esta compreensão a nível pessoal, social e internacional? Porque têm de criar con- tinuamente um inimigo? Por que é tão forte a falta de cuidado, o medo da morte e a persistência da agressividade que mina os caminhos da paz? Porquê? A terceira interpretação procura a sua fonte no encontro com o mistério. Esta resposta procede da experiência religiosa da humanidade.

Os povos mais antigos e as pessoas religiosas de todas as culturas afirmaram e continuam a afirmar a presença de um Mistério que impregna o Universo. Vêem a sua actuação no Universo e sobretudo no coração humano. Uns chamam a esse mistério Javé, Ísis, Alá, Deus, Tão, Shiva, etc… A experiência religiosa deu origem a muitas religiões. Elas são espaços ins- titucionais, onde se cultiva a experiência através de ritos, ce- lebrações, codificações éticas, ideais de justiça, fraternidade e felicidade.

O BEm-ESTAR

O bem-estar e o estar bem não são a mesma coisa. O bem-estar pode referir-se a parâmetros subjectivos e objectivos, vincu- lados com uma situação favorável nos diferentes planos que compõem o nosso viver. Podemos falar do bem-estar econó- mico, físico, familiar e assim sucessivamente. O estar bem é um estado subjectivo, uma sensação de plenitude. É sentir-se bem (felicidade, paz interior). Podemos ainda dizer que o es- tar bem tem a ver com o equilíbrio entre ambições e possibi- lidades, dentro de um marco ético. Se ambicionamos mais do que o que podemos seremos uns eternos frustrados. Se a nossa ambição é menor do que o que podemos, não desenvolvemos as nossas potencialidades e muito menos as transformamos em actos (Schneer, 2008).

No entanto, nós somos um organismo inteligente e gregário que se relaciona com os outros em contexto social. Embo- ra haja regras de jogo para cada cultura e para cada país, há certos princípios que são universais. Formamos parte de um sistema e nós mesmos somos um sistema de funções bioló- gicas, intelectuais e emocionais. Assim efectuamos intercâm- bios com o mundo da natureza e com o social, dos quais os seres humanos fazem parte. Estes intercâmbios regem-se por alguns princípios: maximização dos benefícios e minimização dos prejuízos; facilitação das experiências satisfatórias e recu- sa das não satisfatórias; prémios e castigos para a eficiência ou para a falta de eficácia; procura de gratificação no plano emocional; necessidade de eixos valorativos que dêem senti- do e significado aos intercâmbios. Portanto, o ser humano é um eu com necessidades objectivas e subjectivas. A teoria das necessidades de Maslow é aceite e explícita em si mesma, mas queremos avançar para outros planos e destacar as necessi- dades subjectivas do eu: Sobre a identidade, as respostas às perguntas clássicas (Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?) são fundamentais para a organização eficiente e eficaz dos intercâmbios com o mundo exterior. Em segundo lugar, o indivíduo tem necessidade de integrar (como organismo sis- témico) os diversos planos do seu viver. Um eu integrado per- mite a melhor articulação dos ditos planos (físico, psicológico, emocional e espiritual entre outros) e possibilita uma acção

com êxito sobre a realidade externa. Por isso, é fundamental não confundir a realidade com os desejos; a estes chamam os ingleses wishful thinking (o pensamento como expressão do desejo). Já o processo da individualidade está próximo da identidade, mas está mais referido à constituição da persona- lidade. Significa que o indivíduo biológico vai-se configurando com o indivíduo pessoa. Um processo adequado de individua- lidade permite a assumpção de funções de condução e de li- derança que são básicas para todo o projecto de crescimento pessoal e profissional. O fenómeno da autovaloração está vin- culado com os atributos básicos da personalidade e a função social do ser humano. Nascemos para contribuir de algum modo a nossa realização e para agregar valor à comunidade à qual pertencemos. O fenómeno da criatividade passa por um ordenamento diferente das análises e dos processos de viver. A criatividade consiste em ordenar os elementos conhecidos de uma maneira desconhecida. A criatividade é a antítese da rotina e da burocracia. Situada no vértice máximo da escala de Maslow, a autorealização aponta a um êxito transcendente em que a sensação de plenitude e de satisfação dão sentido à vida. Esta auto-realização pode dar-se em diferentes planos do viver. Assim, todos os processos de intercâmbio do eu supõem a delimitação da interioridade e do mundo exterior.

Schneer (2008) sugere dez planos do bem-estar. O material e económico corresponde aos intercâmbios que afectam a mate- rialidade. O espiritual e axiológico corresponde à expressão da transcendência, a concepção da nossa vinculação com o cos- mos, assim como aos valores de ética pessoal e moral social que sustentam o nosso proceder. O teleológico/visional cor- responde à nossa razão de ser no mundo, a expressão do nosso propósito mais íntimo, a projecção do que queremos ser, de- sejamos alcançar e os modos como podemos consegui-lo. Já o psíquico exprime como se configura o nosso eu e o aparato psí- quico no processo de adaptação, transformação e integração com o mundo exterior. O plano familiar inclui a nossa cons- telação familiar e a história pessoal que desenvolvemos na in- teracção com ela. O afectivo corresponde à configuração dos planos afectivos enquanto à nossa relação connosco mesmos e com os que nos rodeiam. Isto supõe os sentimentos, vivências e sensações que formam parte dos intercâmbios afectivos e amorosos na nossa constelação familiar, laboral, amistosa, so- cial e comunitária. O criativo, artístico e hedonista correspon- de à particular maneira que temos em resolver problemáticas, colocar inovações, abordar fenómenos estéticos e artísticos, desfrutar do tempo livre e do ócio e configurar respostas ori- ginais, diferentes e satisfatórias, vinculadas com as nossas inserções de todo o tipo nos contextos em que actuamos. O profissional inclui o desenvolvimento profissional e laboral, num sentido amplo. Corresponde à actividade de investiga- ção científica, aplicação tecnológica, actuação nos âmbitos de negócios e de mercados. A comunicação social corresponde à nossa inserção na comunidade e as diferentes áreas da nossa participação social. O plano físico refere-se ao corpo que habi- tamos, ao nosso estado físico, à configuração biofísica e à sua interacção com a saúde e as possíveis doenças, assim como ao estilo de vida e à qualidade de vida no seu impacto sobre a nos- sa constituição física; à forma como nos alimentamos, faze- mos desporto ou outra actividade física; às acções preventivas e terapêuticas que empreendemos e os impactos da genética e história familiar sobre nós.

VOL 2. TRABALHO, SAÚDE

E MEDIAÇÃO AMBIENTAL

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3. A PAZ SOCIAL, COMO TRANqUILIDADE DA

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