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tRAbAlhO, PAz E DEmOCRACIA: UmA tROIKA PARA O SÉCUlO

1. O TRABALHO: VISÕES, SIGNIFICADOS, REPRESENTAÇÕES

Um primeiro olhar sobre o trabalho prende-se como uma vi- são sócio-histórica da sua evolução. Pegando nas sugestões de João Maria Mendes (2008: 118-119), dir-se-á que pelo menos quatro entendimentos atravessaram historicamente o traba- lho: por um lado, um elemento punitivo (consagrado na figura de Adão e toda a sua progenitura, que são condenados a traba- lhar); por outro lado, a ideia trabalho como reversão salvífica (observada a partir do Antigo Regime/entre o Renascimento e as Revoluções Liberais, o que corresponde à Idade Moderna e, mais tarde, a partir do século XIX, à associação entre socia- lismo e movimento operário, em resultado da qual o trabalho passou a ser visto como o “Messias do mundo moderno”); em terceiro lugar, um elemento da relação com a natureza (pela criação das máquinas o homem seria progressivamente um dia dono da natureza, ainda que historicamente esta relação entre trabalho e tecnologia, como forma de controlar a natureza, deambulou entre o lado “bom” (Dr. Jekyll) e lado “mau” (Mr. Hyde), com ainda recorda J. M. Mendes; por fim, o trabalho

contemporâneo, dos dias de hoje, muito associado às novas formas de polivalência e fragmentação, às novas modalidades de emprego, ao galopante fenómeno do desemprego, etc.

De igual modo, na linha de João Freire (1998), o trabalho1

acolhe diferentes tipos de significados, certamente porque de- senvolve vários tipos de relações: com a natureza, com a pro-

[1] Para João Freire (1998: 27), trata-se de “actividade deliberadamente concebida pelo Homem, consistindo na produção de um bem material, na prestação de um serviço ou no exercício de uma função, com vista à obten- ção de resultados que possuam simultaneamente utilidade social e valor

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CONSTRUIR A PAZ: VISõES INTERDISCIPLINARES E

INTERNACIONAIS SOBRE CONHECImENTOS E PRáTICAS

dução (de bens e mercadorias para consumo), com os serviços (prestação de serviços entre pessoas), com a ideia de tran- sacção (troca de bens materiais), com a noção de criação (o trabalho é invenção e descoberta), com espaços/instituições (organizações), etc.

Diferentes formas de trabalho apontam hoje cada vez mais para rotas de sentido precarizante: recibos verdes (ou melhor, falsos recibos verdes)2, contratos a prazo3, trabalho temporá-

rio, trabalho a tempo parcial, trabalho na economia informal4,

são apenas alguns dos rostos das novas morfologias do traba- lho (Antunes, 2006) no século XXI. Ora, a criação da paz ou a ausência dela não pode dissociar-se dessas diferentes moda- lidades que, em muitos casos, fecham mais a porta à paz do que a abrem. Talvez por isso não tenha causado estranheza, ao longo da última década, a identificação de teses opostas quan- to ao lugar/centralidade do trabalho na sociedade.5

Por um lado, autores mais pessimistas têm vindo a advo- gar a tese do fim do trabalho, permitindo-se, assim, o uso de expressões como “êxodo da sociedade salarial/não-classe de não-trabalhadores” (André Gorz), “o trabalho não garan- te identidade” (Claus Offe), “fim do trabalho”; fim do traba- lho formal a caminho de um “mundo sem trabalhadores”; ou ainda a “máquinas = novo proletariado” (Jeremy Rifkin), “trabalhadores temporários permanentes”; “brasileirização do ocidente” (Ulrich Beck), “só por acaso o trabalho cria laços so- ciais (Dominique Méda).

Por outro lado, autores mais optimistas defendem a tese da centralidade do trabalho, apontando, por exemplo, as virtua- lidades da sociedade informacional (Manuel Castells), reafir- mando que não há alternativa à civilização do trabalho e que é crucial distinguir entre consistência do trabalho (perdida) e importância do trabalho (ganha) (Robert Castel), bem como redescobrir o trabalho de forma democrática, por meio de um novo contrato social (Santos, 1998)6.

Mas independentemente das diferentes formas (configura- ções, morfologias), de trabalho, estou em crer, sobretudo na linha das teses mais optimistas sobre a centralidade do traba- lho, que mesmo não havendo um mercado global de trabalho, estamos no mínimo diante do trabalho enquanto recurso glo- bal. Não no sentido de haver trabalho (ou pelo menos empre- go) para todos, mas de aquele ser uma referência pela qual as pessoas se guiam e orientam (Santos e Costa, 2004: 18; Costa, 2008: 23). Isto é, mesmo sendo admissível que os mercados de

económico, através de dois tipos de mediações necessárias, uma técnica e outra organizacional”.

[2] Para uma análise deste fenómeno que rondará as 900.000 pessoas, cf AAVV (2009).

[3] Entre 1999 e 2007, verificou-se um aumento da probabilidade de no- vos contratos serem celebrados a termo e mantidos nessa situação durante mais tempo. Pela dinâmica de entrada na vida activa, este fenómeno afec- ta particularmente os trabalhadores jovens, mas tem-se estendido a todas as idades. No seu conjunto, os contratos a prazo abrangem mais de 20% dos assalariados, em especial jovens com níveis de escolarização elevados. (Reis, 2009: 11-12).

[4] Estima-se que em Portugal o peso da economia informal represente cerca de ¼ do PIB português. Como assinalam Dornelas et al. (2010: 16), o peso do trabalho não declarado apresenta sobretudo motivações mais eco- nómicas do que sociais e atinge tanto mais as diferentes categorias quanto mais distantes estas se encontram do emprego típico e protegido. Além disso, integra uma parte (16%) não remunerada do trabalho realizado no sector formal da economia formal.

[5] Para uma análise mais desenvolvida de tais teses, Cf. Toni (2003). [6] Nos termos de tal contrato: i) o trabalho deve ser democraticamente partilhado (o reforço de labour standards é crucial a este respeito); ii) o seu polimorfismo deve ser reconhecido (é preciso um patamar mínimo de inclusão para as formas atípicas de trabalho); iii) e o movimento sindical deve ser reinventado (quer actuando em diferentes escalas e não apenas na local/nacional, quer funcionando como alternativa civilizacional)

trabalho não são verdadeiramente globais7, o que é facto é que

o trabalho constitui efectivamente um recurso global que as empresas procuram nas mais diversas partes do mundo, quer importando trabalho altamente qualificado, quer deslocando- se elas próprias à procura de trabalho mais barato. Além dis- so, os trabalhadores são “levados pela necessidade económica, pela guerra ou pela fome a procurar trabalho através do glo- bo” (Castells, 1998: 93). A ânsia em querer ter trabalho ou em poder ter acesso a uma actividade minimamente remunerada tem levado mesmo a que a expressão “vale mais o pior dos empregos do que o desemprego” se tenha tornado recorrente. Esta constatação (que parece mesmo cada vez mais ser esgri- mida em forma de desespero) relega, pois, para segundo pla- no, imagens, significados ou representações onde o trabalho é fonte de bem-estar pessoal e realização colectiva e onde a identificação com o espaço social do trabalho é quase intui- tiva8. Porém, mesmo havendo secundarização, é nesse domí-

nio da identificação com uma actividade laboral que a questão da satisfação no trabalho adquire um destaque especial. Com efeito, os estudiosos do comportamento organizacional têm dedicado um espaço considerável à questão da satisfação do trabalho, pois além de a mesma poder ser indutora de uma “paz colectiva” é também favorecedora de uma “paz indivi- dual”, expressa no modo como cada cidadão se sente reconfor- tado por gostar do que faz.

Na verdade, a satisfação no trabalho pode ser estudada em várias vertentes. Tomando como referência algumas da su- gestões de Paulo Alcobia (2011), creio que pode distinguir-se, desde logo, uma vertente associada aos “actores” portado- res da satisfação no trabalho. Neste sentido distinguir-se-ia a perspectiva do trabalhador, que realça mais (num sentido humanitário) os aspectos relacionados com a respeitabilida- de, o bem-estar e a saúde psicológica associados ao trabalho. Dir-se-ia que esta é uma vertente de “baixo para cima”. E, por outro lado, uma perspectiva organizacional, que realça mais uma visão de conjunto, que vê na satisfação no/com o trabalho uma forma de aumentar a produtividade. Daí que as organi- zações se preocupem em fazer diagnósticos/avaliações sobre o grau de satisfação dos seus colaboradores. Trata-se assim, neste caso, de uma visão mais directiva, de “cima para baixo”. Além desta vertente mais próxima dos actores, creio que se pode destacar uma outra vertente mais directamente associa- da ao “meios” de expressão de atitudes de satisfação no traba- lho: de um lado, a ideia de satisfação no trabalho associada a um estado emocional, a sentimentos ou respostas afectivas; do outro, a ideia de satisfação no trabalho associada a uma atitu- de generalizada em relação ao trabalho (podendo aqui incor- porar, além dos aspectos emotivos do ponto anterior, aspectos cognitivos e comportamentais)9.

Em clima de retracção económica como o que atravessa- mos, os índices de satisfação, lealdade e envolvimento labo- ral tendem a diminuir, tendo isso mesmo sucedido em 2010 por comparação a 2009, como constata o relatório de 2011 do

[7] A não ser para determinados segmentos profissionais em crescimento, assim como para alguns sectores como os das tecnologias da informação e comunicação que se inscrevem já num mercado de trabalho unificado (Munck, 2002: 11; 66-67).

[8] Para uma análise de eixos de identificação social no trabalho, tais como dinâmicas de interacção, manifestações de pertença, processos de atribuição de sentido e projectos e aspirações profissionais, Cf. Veloso (2007: 67-96).

[9] Tanto num caso como no outro, a existência (ou não) de satisfação no trabalho estaria assim dependente de uma diversidade de pontos: pessoas, tipos de relacionamento com as chefias, os colegas de trabalho ou os subor- dinados; condições de trabalho; expectativas de progressão e/ou promoção na carreira; recompensas salariais; desempenho pessoal, etc., etc.

VOL 2. TRABALHO, SAÚDE

E MEDIAÇÃO AMBIENTAL

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Observatório Nacional dos Recursos Humanos (ONRH). Se- gundo este relatório, de 2009 para 2010 o nível de satisfação laboral dos trabalhadores portugueses decresceu 1,2%, a sua lealdade à empresa onde trabalha sofreu uma quebra de 1,3% e o envolvimento dos colaboradores com as organizações caiu 0,8%. Dos 12 índices avaliados pelo ONRH, todos sofreram decréscimos face a 2009.

2. A PAZ: PRODUTO DE CONSENSOS…E

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