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A PAz E A SAúDE: CONtRIbUtOS PSICO-EDUCACIONAIS

3. A PAZ SOCIAL, COMO TRANqUILIDADE DA ORDEM, COMO JUSTIÇA E CONCóRDIA

A PAz

A paz não se pode definir por simples conceitos, mas situa-se no mundo dos valores, captando-se mais com o coração do que com a cabeça. A palavra paz convive com outras palavras, tais como o amor, a justiça, a fidelidade, a liberdade e a felicidade. O termo grego eirene foi quase sinónimo de homonoia (har- monia). Ambos se referiam à condição de completa tranquili- dade e serenidade. Eirene é um termo que designa a unidade interior e social (Lederache, 2000). O conceito latino de pax

significa a relação legal e recíproca e está relacionado com a ideia de manter e respeitar o que é legal, o que marca e define as relações e interacções humanas. Significa manter a ordem estabelecida. O conceito hebraico shalom explicita-se em ter- mos de qualidade, de relação e de interacção humana. Signifi- ca ser completo, tornar-se completo, conduzir à harmonia e ao cumprimento. Onde existe shalom, o todo e as partes constitu- tivas atingiram o grau máximo do ser (Barbosa, 2003).

Porém, há uma definição de paz que remonta a Santo Agos- tinho (354-430):

paz é a tranquilidade da ordem. Paz é a quietude que deriva da conservação e da protecção da ordem pensada pelo Cria- dor. A paz é o bem-estar na ordem justa, na harmonia com tudo e com todos. É estar bem com Deus, com os demais e consigo mesmo. Quando esta ordem é violada, instala-se imediatamente a discórdia, a falta de paz e a desunião entre o corpo social. Então o que dificulta a paz é o orgulho do ser humano, a sua auto-suficiência, a sua independência em relação aos demais e a Deus.

Santo Agostinho compreendia essa plenitude pela sua expe- riência mística com essa mesma paz. Quando tudo tem uma ordem, todas as realidades da vida, da natureza, encaixam nessa ordem que provoca uma harmonia cósmica e que derru- ba barreiras incalculáveis. Acontece um natural equilíbrio que produz a felicidade sem exuberâncias. A paz é um dos princi- pais valores da existência humana e afecta as várias dimensões da vida: interpessoal, intergrupal, nacional e internacional. Exige igualdade e reciprocidade de relações. A paz diz respeito a três conceitos fundamentais: a democracia ou cidadania, o desenvolvimento e os direitos humanos. É um processo dinâ- mico que se deve conquistar. É necessário aprender a ética da paz, que não se obtém com o temor ou com a miséria, mas com a criação de condições de liberdade e de igualdade (Barbosa, 2008).

A paz é justiça e concórdia. A paz é obra da justiça. Justiça é dar a cada um o que lhe pertence. Justiça é ter uma relação adequada à natureza de cada coisa. Justiça é uma relação e uma atitude correctas, exigidas por cada situação. Justiça é tratar o ser humano como deve ser, com dignidade, com acei- tação, simpatia, respeito pela sua alteridade. Justiça é tratar as crianças como convém às crianças: cuidando para que tenham um lar, zelando pela sua inocência e organizando a saúde e a educação infantil. Justiça é realizar a política como deve ser, com cuidado para com a coisa pública. Justiça é tratar um ani- mal como lhe compete, respeitando a sua existência. Se paz é equilíbrio, vivemos momentos de desequilíbrio, de verdadei- ra guerra declarada à terra, contra os ecossistemas, contra os povos, contra as classes dos trabalhadores. A paz é concórdia. Os seres humanos não vivem apenas da justiça, mas também

da gratuitidade e da alegria de estarem juntos como humanos, amigos, irmãos e irmãs. Dessa dimensão nasce a concórdia. A con-cór-dia exprime a sinfonia de corações (cor) que pulsam ao mesmo ritmo (con). Quando um coração escuta o coração do outro, quando lhe capta as aspirações manifestas, quando os corações convergem, nasce a sintonia recíproca e produz-se a concórdia. Concórdia é um outro nome para a paz. Concór- dia não anula as diferenças, mas fá-las convergir. Um coração atento e vigilante escuta e vê o outro com respeito pela sua diferença, mais ainda passa a amar a sua diferença como um dom para si próprio e para os outros. A concórdia está ligada à cordialidade. Cordialidade tem a ver com o coração e com a sua lógica tão exaltada por Pascal. O coração tem as suas razões que a razão desconhece. A lógica do coração coloca a pessoa antes dos interesses, o bem-estar espiritual, antes do bem estar material, a paz acima da vontade de ter razão. Pas- cal enaltece o amor que está num patamar acima da própria justiça que só o é, porque o amor a reconhece. O coração re- conhece o amor porque o ama. As razões quando existem são apenas coincidências e que podem, ao acaso, coincidir com a justiça. A paz é cordialidade quando as pessoas e as sociedades conseguem transformar as relações existentes de descrimina- ção e de domínio em relações de inclusão e de participação equitativa. A relação senhor/escravo, presente em quase todas as relações sociais, transforma-se numa rede de relações entre os cidadãos livres que se cuidam reciprocamente e se tratam com cordialidade. A paz não significa só ausência de guerra, mas bem-estar total, harmonia com o transcendente, com os outros, consigo mesmo. A paz é o completo bem-estar que nos dá a consciência e o equilíbrio da mente e do espírito e nos leva a olhar o mundo com a mesma consciência e o mesmo equilí- brio (Barbosa, 2009).

A EDUCAÇÃO PARA A PAz

A educação para a paz fundamenta-se na tentativa de conscien- cialização da pessoa e da sociedade, considerada a harmonia do ser humano para consigo mesmo, com os seus semelhan- tes e com a natureza. Implica, porém, duas obrigações morais: não tratar os outros injustamente e não os abandonar quan- do estão em dificuldade. A primeira obrigação recebe o nome de ética da justiça. A segunda obrigação tem o nome de ética

da benevolência e recomenda que confortemos os que se en-

contram em sofrimento material e psicológico. É que a paz é o resultado das condições geradoras de paz, que criam uma mentalidade, uma cultura de paz. Educar para a paz e edificar as bases para uma cultura de paz significa preparar as novas gerações para um novo consenso fundamental sobre convic- ções humanas e integradoras que incluirá uma pluralidade heterogénea de projectos de vida. Se as crianças continuarem a brincar com metralhadoras de plástico nas ruas, com carros blindados de imitação, se virem na televisão cenas de violência em filmes ou telejornais, se a família viver envolta em violên- cia entre os pais ou entre os pais e os filhos, nenhuma técnica artificial resiste a este dantesco cenário natural. Todas as téc- nicas de sensibilização para a paz terão êxito pedagógico se forem a continuidade de uma educação para a paz na família e noutras instituições educativas (Barbosa, 2008).

O primeiro nível na educação para a paz exige conhecer os problemas, a realidade que nos circunda, as dificuldades que impedem a implantação de uma nova cultura de paz (Bouzas

et al., 2002). Para se concretizar uma paz interior, familiar, comunitária, mundial, é necessária uma educação ética que mude nos indivíduos as atitudes, as motivações, a consciência, o coração, e se esforcem por alcançar uma maturidade moral,

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CONSTRUIR A PAZ: VISõES INTERDISCIPLINARES E

INTERNACIONAIS SOBRE CONHECImENTOS E PRáTICAS

autodomínio, assim como formar famílias unidas e harmo- niosas. A educação para a paz não se pode restringir exclu- sivamente ao mundo escolar, mas abarca a realidade total da pessoa, a sociedade e o mundo em constante desenvolvimento (Cano, 2000).

CONCLUSÃO

A educação para a paz está unida à educação para outros valo- res e sobretudo ao respeito e à aplicação dos direitos humanos, onde se encontram os direitos e as liberdades fundamentais que dão sentido às nossas sociedades democráticas. É neces- sário ajudarmo-nos mutuamente para sermos cidadãos do mundo, com respostas próprias para vivermos num contexto democrático, de participação, de representação genuína e de antecipação. A educação para a paz, os direitos humanos, a tolerância, a justiça tiveram um grande desenvolvimento do ponto de vista teórico e prático nos últimos vinte anos através de meios formais e informais. Os princípios básicos de uma educação moral para a convivência, para a tolerância e para a paz orientam-se de forma a fomentar o diálogo, pois todos po- demos oferecer algo aos outros através de uma aprendizagem cooperativa, que estimula a colaboração em grupo; quanto mais o grupo avançar, mais avançará o indivíduo. A educação moral para a convivência e para a paz promove, também, o desenvolvimento da auto-estima e do autoconceito, desenvol- vendo nas pessoas a afirmação e a crença nas próprias possibi- lidades e atitudes democráticas. É importante oferecer canais de participação, pois só se aprende a participar, envolvendo-se e participando (Monclús et al., 2008).

Há que dizer também que os valores, nomeadamente, a paz, devem ser tratados numa perspectiva pessoal (interioriza- ção dos valores) e social (na medida em que os valores são as pautas do comportamento e de actuação que temos para nos relacionarmos). A antropóloga Jeanne Briggs referia que os esquimós nunca se deixam levar pela fúria. Não, porque não a sentem, mas porque, desde crianças são educados para evitar estes sentimentos que podem entorpecer a convivência na sociedade, onde todos precisam de todos (Barbosa, 2011). Os seres humanos unem-se para serem felizes. Este projecto de felicidade individual tem que se integrar num projecto de felicidade social. Todos nós aspiramos viver numa sociedade que aumenta as nossas possibilidades de ser feliz (Marina et

al., 2007). Esta é uma sociedade justa que protege os direitos dos seus membros, partilha os valores fundamentais e fomen- ta a participação. No entanto, por vezes, o individualismo e o egoísmo marcam a nossa posição pessoal e social. Sabemos, porém, que a vida e a acção da pessoa na sociedade não estão à margem do compromisso com o outro (Touraine, 1998).

Assim, é necessário promover o vínculo entre os diferen- tes povos, promover a discussão, o diálogo e o intercâmbio. Aprender a conviver exige cultivar atitudes de abertura, um interesse positivo pelas diferenças e um respeito pela diversi- dade, ensinando a reconhecer a injustiça, adoptando medidas para superá-la, resolvendo as diferenças de maneira constru- tiva e passando de situações de conflito à reconciliação e à re- construção social (Jares, 1996, 2006, 2008). A convivência, a capacidade de viver juntos, de dialogar, de acolher o outro e de partilhar são qualidades cada vez mais valorizadas na socieda- de actual, funcional e profissional.

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