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tRAbAlhO, PAz E DEmOCRACIA: UmA tROIKA PARA O SÉCUlO

3. A PAZ Só ExISTE EM/COM DEMOCRACIA OU VARIA NA RAZÃO DIRECTA DELA

A terceira palavra-chave da troika aqui analisada podia vir em primeiro lugar, pois quer o reconhecimento do valor do trabalho enquanto garante de identidade e realização pessoal, quer a construção da paz no/pelo trabalho serão tanto mais possíveis quanto forem realizadas em contextos de democra- cia. É claro que a democracia enquanto rule of people, onde supostamente todos possuem uma igual partilha do poder, na verdade não abarca todos/as, desde logo porque mulheres, minorias, crianças ficam recorrentemente de fora. Seja como for, quando aplicamos a democracia ao mundo do trabalho e falamos de uma democracia laboral não podemos deixar de pensar num “pacote” de direitos de vária ordem transpostos para o espaço da produção: informação, consulta, negociação, participação, representatividade, equidade, etc. E mesmo sa- bendo que o próprio local de trabalho se nos apresenta hoje como cada vez mais fluído (Standing, 2009) a construção de um índice de democracia no local de trabalho reveste-se de particular oportunidade. Segundo o relatório The Everyday

Democracy Index (2008), de Paul Skidmore e Kirsten Bound, baseado nos dados do European Working Conditions Survey (2005), para construir tal índice seria importante atender em três indicadores: (i) a capacidade do trabalhador influenciar as condições de trabalho (ambiente de trabalho); (ii) a auto- nomia do trabalhador; (iii) e a criatividade do trabalhador no local de trabalho.

Importa, pois, elencar algumas condições para a criação de uma cultura de paz no trabalho tanto mais que a paz é sinóni- mo de democracia em acção:

1. Talvez a primeira condição para a efectiva concretização de uma democracia laboral orientada para contextos de re- lações laborais pacificados seja mesmo a que passa por criar condições para superar os obstáculos a uma cultura de paz anteriormente enunciados, isto é, superar os efeitos nocivos associados às hot issues acima elencadas. Só assim os indi- cadores do índice de democracia laboral no local de trabalho – capacidade de influência, autonomia e criatividade – po- derão sobressair de algum modo.

2. Por outro lado, o papel das instituições de representa-

ção colectiva é decisivo na defesa de direitos onde estes não existem ou não são respeitados. E esse papel deve ter lugar

em diferentes escalas, não só nas de âmbito local e nacional, como nas de âmbito transnacional (europeu, regional, mun- dial). No âmbito das organizações sindicais transnacionais, não posso deixar de me reportar, no contexto europeu, ao papel da Confederação Europeia de Sindicatos (CES) e ain- da, no contexto internacional, à actuação da Confederação Sindical Internacional (CSI). Normalmente estas organiza- ções destacam-se também por perseguirem uma lema ou defenderem um slogan. Por exemplo, no hemisfério ameri-

de da reforma; pressão para a privatização dos sistemas de pensões; o en- fraquecimento da legislação que protege o emprego; a redução dos apoios directos ao desemprego; a liberalização do sector público, etc.

cano a organização regional da CSI, a ORIT/CSI apoiou-se historicamente no lema “Pão, paz e liberdade”, ao passo que já num registo internacional e situado para além da esfera sindical a OIT tem vindo a apoiar-se sistematicamente na campanha do “trabalho decente”.

3. Este compromisso com slogans e símbolos é de crucial importância para as organizações sociais e movimentos so- ciais que com eles estejam relacionados. Penso que pode dizer-se que são focos de aprendizagem inter-cultural. Na verdade, os movimentos sociais tendem a apropriar e até a domesticar símbolos e slogans. Por exemplo, a deusa da democracia, reclamada pelas manifestações de estudantes chineses em 1989 na praça de Tiananmen, pareceu mais uma filha da Estátua da Liberdade americana. Por sua vez, a Estátua da Liberdade americana, do séc. XIX, ela própria foi uma forma de reviver a imagem da Revolução Francesa do final do séc. XVIII (Markof, 1996). E ao longo da última década o slogan “Um outro mundo é possível”, veiculado no Fórum Social Mundial (FSM), a pouca gente terá passado despercebido. Aliás, este slogan do FSM foi apropriado à escala transnacional, mas depois reapropriado em diferen- tes contextos nacionais por diferentes movimentos sociais: sindicais, mulheres, ambientalistas, direitos das minorias sexuais, etc.

4. mas ainda sobre as organizações da sociedade, importa-

ria promover uma articulação entre elas, em nome de uma

convivência democrática e saudável. Refiro-me à necessida- de da criação de um clima de aproximação mais efectivo e duradouro entre os diferentes protagonistas, grupos, asso- ciações com interesses no mercado de trabalho: associações sindicais e patronais, cooperativas, organizações do Tercei- ro Sector, movimentos emergentes na sociedade (FERVE, Precários inflexíveis, Maldita Arquitectura, Intermitentes do Espectáculo) 20, instituições particulares de solidarieda- de social, etc.

5. A criação de uma normatividade laboral e, associada a ela, a existência de mecanismos de sanção que punissem quem não a cumprisse seria outro passo importante a ca- minho para uma democracia laboral efectiva. Mesmo em países considerados referências/modelos de democracia e de respeito pelos direitos humanos, a baixa ratificação das convenções da OIT21 dá, no mínimo, que pensar.

6. Seria também curial operar um reforço das leis comuni-

tárias em matéria laboral, tanto mais que directivas comu-

nitárias em matéria laboral – como as existentes nos domí- nios da informação e consulta, das condições de trabalho ou da saúde e segurança dos trabalhadores no trabalho – são porventura ainda escassas.

7. A aposta em formas de voluntarismo adoptadas nas

empresas e locais de trabalho – tais como estratégias de

responsabilidade social empresarial, adopção de códigos de conduta, acordos-quadro globais – é certamente uma via para compensar quer a escassez, quer a ineficácia dos instrumentos normativos. No entanto, tais acções de paci-

[20] Para um olhar sobre as articulações necessárias entre os sindicatos europeus e os trabalhadores “atípicos” (que, na verdade, são cada vez mais típicos), Cf. Gumbrell-McCormick (2011).

[21] No final da primeira década do século XXI, os EUA apenas haviam ratificado duas das 8 fundamentais convenções da OIT (C182 e C105), apresentando a mesma taxa de ratificação do que Myanmar (Birmânia). Do número total de 187 convenções da OIT, os EUA apenas ratificaram 12, estando pois lado a lado com os países com mais baixas taxas de ratifica- ção, Neste país, milhões de trabalhadores não têm direito a sindicalização, negociação colectiva ou greve, ao passo que outros tantos que têm esses direitos no plano formal não os exercem por receio de intimidação, assédio sexual ou despedimento (Oviedo, 2008).

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CONSTRUIR A PAZ: VISõES INTERDISCIPLINARES E

INTERNACIONAIS SOBRE CONHECImENTOS E PRáTICAS

ficação laboral estão longe de ser dominantes no seio das relações laborais.

8. O reforço do investimento na educação/qualificação das pessoas e do factor trabalho. Não obstante os progressos

de Portugal no sector da educação nos últimos 40 anos, o Relatório Estado da Educação 2010, produzido pelo Con- selho Nacional da Educação, registou, entre outros dados, que: as qualificações dos portugueses ainda se encontram muito abaixo da média europeia; 7 em cada 10 trabalhado- res apresentam baixos níveis de qualificações; 17% da po- pulação activa possui qualificações médias e 13,2% qualifi- cações elevadas, mas 1/3 ainda deixa o ensino secundário por concluir; 24% das pessoas empregadas não concluíram o ensino básico; 21% dos alunos portugueses reprovam ou abandonam o sistema de ensino e só 58% concluem o 12º ano em tempo normal sem terem reprovado nenhuma vez. Além destes baixos níveis de qualificação do emprego face à média da UE e do abandono escolar precoce, a aprendi- zagem ao longo da vida é ainda cerca de metade da UE27 (Dornelas, 2009: 129).

9. A indução de mudanças no sistema de relações laborais

em Portugal, tendo como condição prévia a superação da

elevada fragmentação e a forte competição entre os actores que compõem o sistema de representação de interesses. 10. Por fim (e tão ou mais prioritário do que os pontos an- teriores, e em articulação com estes) a criação de um pacto

para o emprego negociado entre todos os parceiros sociais e liberto dos constrangimentos orçamentais. A ideia de um

pacto social alargado para o emprego e a competitividade, negociado entre o governos e os parceiros sociais, tem es- tado nos últimos anos (e estará certamente mais ainda nos próximos tempos) muito dependente de constrangimentos orçamentais. Seria, pois, desejável, em nome de uma cultu- ra de paz genuína, que tal(is) acordo(s) se fizesse(m) tendo por base uma maior equidade social e, consequentemente, menores prejuízos para o factor trabalho.

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CONStRUIR A PAz:

VISÕES INtERDISCIPlINARES

E INtERNACIONAIS SObRE

CONhECImENtOS E PRátICAS

VOlUmE 02.

tRAbAlhO

PARtE 02.

CONStRUIR A PAz NO

tRAbAlhO: (IN)VISIbIlIDADES

DOS EFEItOS DO tRAbAlhO

NA SAúDE E NO bEm-EStAR

mObbING: ASPECtOS JUSlAbORAIS

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