• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO IV – REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO SISTEMA DE

4.3 A importância de um marco normativo para ações e programas em Direitos

No capítulo 3, demonstrei que as ações do Poder Executivo sobre violações de Direitos Humanos, reconhecidas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, são frágeis no aspecto normativo e estrutural, o que gera disputa entre os órgãos responsáveis e impossibilita uma atuação mais coordenada em relação ao Sistema de Justiça. O Poder Judiciário e o Ministério Público foram apontados como grandes violadores de direitos, considerando que praticamente a totalidade dos casos que tramitam do SIDH aponta a falta de garantias judiciais e proteção judicial às vítimas.145

Na mesma linha, sobre a atuação do Estado brasileiro na execução do PPDDH, verifiquei a existência de marcos normativos e procedimentais definidores das ações do Poder Executivo para a proteção ao defensor ameaçado. Mas, quanto à relação entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça a partir de violações de Direitos Humanos — no caso, as ameaças a defensores —, os marcos se mostraram insuficientes.

Definições mais específicas sobre a atuação do Poder Executivo frente ao Sistema de Justiça passam pela análise da relação entre Estado e Direitos Humanos e, complementarmente, pela disputa sobre o sentido da democracia, com expressão nas práticas de gestão pública em relação ao experimentalismo democrático que força inovações institucionais e com a relativização das fronteiras entre sociedade e Estado (LEITE DE SOUZA, 2016, p. 146).

Ao abordarem as concepções da democracia no século XX e a reinvenção da democracia participativa no século XXI, pugnando por uma ampliação do cânone democrático, Santos e Avritzer (2002) afirmam que a democracia constitui uma nova gramática social, numa concepção não hemegônica, que implica ruptura com tradições estabelecidas e, portanto, a tentativa de instituição de novas determinações, novas normas, novas leis (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 51).

O experimentalismo que a nova gramática social traz como expressão das disputas entre visões e projetos na gestão pública ocorre quando novas práticas culturais forçam o remodelamento institucional (LEITE DE SOUZA, 2016, p. 146). A proteção a defensores de Direitos Humanos e o cumprimento de decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos empurraram a atuação do Poder Executivo para

145 Pesquisa sobre a atuação de órgãos do Poder Executivo para implementação de decisões e recomendações do SIDH em diversos casos pode ser vista em VILHENA, et al. (2013).

180

um campo de relação com o Sistema de Justiça que não se situa nem na esfera institucional tradicional daquele poder, nem na esfera estritamente judicial.146 Essa inovação pode ser verificada também nas recomendações das conferências de Direitos Humanos e especificamente no PNDH-3, que apontam a necessidade de fortalecimento do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos e de adesão do Estado brasileiro aos tratados internacionais de Direitos Humanos e seus respectivos mecanismos de cumprimento.147

Sá e Silva (2016), dialogando com Lyra Filho, aponta que o Estado brasileiro se coloca numa condição ambivalente em relação ao processo de construção histórica e social de direitos e dos Direitos Humanos:

a diversificação do aparato estatal, o qual passa a contar com estruturas cada vez mais diferentes, operando a partir de repertórios diferentes, é o que dá a esse ente a condição de gerir a contradição entre pretensões pela forma de organização das liberdades, em especial entre o instituído (aquilo que, em um dado momento histórico, é reconhecido como direitos humanos) e o instituinte (aquilo que reclama reconhecimento, indicando limites na ordem vigente). (SÁ E SILVA, 2016, p. 128)

Nesse sentido, a instituição de normas específicas que regulem e demarquem a relação entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça sobre graves violações de Direitos Humanos representa mais que uma formalização de procedimentos e regras que definam as atribuições de cada ente. São a expressão do experimentalismo democrático na gestão pública, forçado pela sociedade civil organizada, num contexto de

146 Analisei a relação entre Poder Executivo e Sistema de Justiça, especificamente sobre a questão das violações de Direitos Humanos de pessoas privadas de liberdade e a utilização do instituto da intervenção federal em GARCIA (2014). No estudo, verifiquei que, a despeito do alto número de casos no SIDH sobre violações de direitos de pessoas privadas de liberdade que fundamentaram pedidos de intervenção federal da União nos Estados, além de não terem sido decididos pelo Supremo Tribunal Federal, não mobilizaram qualquer atuação do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo. Por sua vez, os pedidos de intervenção federal em função de não pagamento de precatórios judiciais pelos Estados mobilizou inclusive a atuação do então presidente do STF em relação aos governadores. O estudo indica que, em relação a violações de Direitos Humanos, as disputas são necessárias para a elaboração de novas pretensões diante do Estado, com a reparação e restauração de direitos.

147 Souza Júnior e Escrivão Filho (2016, p. 100), ao analisarem o cenário dos Direitos Humanos na atualidade brasileira, afirmam a importância do PNDH-3 como uma agenda de Direitos Humanos: “De fato, a participação social como método de governo e deliberação política parece provocar intensas reações de setores hegemônicos sempre que se apresenta com alguma perspectiva de força política e efetividade na transferência — que significa distribuição — de poder político, econômico, social e cultural no Brasil. Dessa forma, o PNDH-3 emerge como uma agenda de direitos humanos construída pela sociedade, e institucionalizada em um Programa de baixa densidade normativa, porém alta intensidade política, que gera grande incômodo nos setores conservadores ao identificar as violações, os sujeitos de direitos e, especialmente, as instituições públicas diretamente responsáveis pela garantia, defesa ou promoção de cada um dos direitos reivindicados pela sociedade organizada, anunciando, assim, uma espécie de sistema institucional que se funda na agenda e participação social para projetar políticas públicas implicadas na efetivação dos direitos humanos no Brasil”.

181

ambivalência em que o Estado brasileiro se coloca frente à construção histórica dos Direitos Humanos. E, particularmente no contexto do golpe de Estado, em 2016, com a fragilização das ações e programas de Direitos Humanos, a instituição desse marco normativo torna-se ainda mais necessário.

4.4 Fragilização das ações e dos programas de Direitos Humanos pelo golpe de