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CAPÍTULO I – O CAMINHO DA PESQUISA

1.4 Implicações nos casos selecionados: a pesquisadora-militante

A partir da definição dos casos a serem estudados, veio à tona uma questão importante para o desenvolvimento das etapas seguintes da pesquisa: a minha implicação nos casos escolhidos. A escolha do tema e dos respectivos campos de atuação do Estado — relação entre Poder Executivo e Sistema de Justiça no tratamento de violações de Direitos Humanos, especificamente em casos do PPDDH e do SIDH — decorreu, como já exposto, da minha atividade profissional e militante. A atuação como advogada e gestora de políticas públicas possibilitou-me trabalhar em diversos casos contra o Estado brasileiro, em trâmite no sistema interamericano e na proteção de defensoras e defensoras de direitos humanos ameaçados, respectivamente. Dois desses casos foram justamente Sétimo Garibaldi versus Brasil e a proteção da liderança Maria Joel da Costa.

Surgiu, então, o questionamento: eu não estaria muito implicada nos casos escolhidos por ter contribuído, como advogada, para a condenação do Brasil no SIDH, em relação ao caso Sétimo Garibaldi — tendo, inclusive, elaborado as petições direcionadas contra o Estado brasileiro e participado da audiência na Corte IDH? E mais: na solução amistosa, firmada entre organizações de direitos humanos, Maria Joel da Costa, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Estado brasileiro sobre violações sofridas pela defensora, em decorrência do assassinato de seu marido, José

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Dutra da Costa? Ou ainda, como gestora de um órgão do Poder Executivo federal, responsável por garantir a proteção a Maria Joel da Costa?

O tema da implicação do pesquisador, no âmbito das Ciências Sociais, designa a relação que determinado ator mantém com a instituição alvo da pesquisa, estritamente relacionado à tradição da análise institucional e associado ao método da observação participante (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008; LOURAU, 1993). Como resolver, então, a questão da implicação da pesquisadora, tendo em vista que a pesquisa tem como estratégia um estudo de casos? Para Fontainha (2015),não apenas nas pesquisas etnográficas, mas em qualquer estudo empírico, as interações do pesquisador são uma potencial fonte de dados extremamente ricos, uma vez que ele mesmo é objeto de categorizações e interpretações: “é num processo permanente de objetivação que se constrói a ordem social que se pretende ver afirmada através de atos de pesquisa” (FONTAINHA, 2015; p. 107).

Coimbra e Nascimento (2008) afirmam que colocar em análise o lugar que se ocupa, as práticas de saber-poder enquanto produtoras de verdades — consideradas absolutas, universais e eternas —, seus efeitos, o que elas põem em funcionamento e com o que elas se agenciam é romper com a lógica racionalista ainda presente no pensamento ocidental. É fundamental que se possa empreender uma análise constante e cotidiana dos lugares ocupados e das forças que atravessam e afetam os pesquisadores e pesquisadoras em diferentes momentos, não somente nos trabalhos de intervenção, como também nas suas vidas.

Também, como defende Santos (2014), o cientista social deve ser objetivo, utilizar as metodologias de boa-fé e com competência, mas não pode nem deve ser neutro: ele deve dizer de que lado está, porque é impossível ser neutro. A sociologia crítica, segundo o autor, assume que a imaginação sociológica existe justamente para que o sociólogo possa compartilhar com os cidadãos as aspirações, as inquietudes da cidadania, a fim de contribuir para transformar a sociedade em outro mundo melhor.

Partindo dessa ideia, é importante demarcar a minha relação com os casos, não somente em virtude de uma honestidade intelectual, que me impele a registrar a minha participação e contribuição na realidade estudada, mas também para apontar as inquietações que me perpassam no decorrer da construção e realização da pesquisa. É nesse momento que se distancia da ciência positivista, que se pretende neutra, e se afirmam os objetos forjados no próprio percurso da pesquisa (LACAZ, et al., 2013). Implicado sempre se está, quer se queira ou não, visto não ser a implicação uma questão

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de vontade, de decisão consciente, de ato voluntário. A implicação está no mundo, pois é uma relação que sempre se estabelece com as diferentes instituições nas quais se encontra, que constituem os sujeitos e que os atravessam (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008).

Fazendo uma reflexão regressiva sobre o porquê da relação com os casos selecionados, deparei-me com a própria justificativa que formulei para embasar o projeto da pesquisa: a minha atuação profissional-militante, que me levou a refletir sobre os desafios e dificuldades existentes na relação entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça, para garantir justiça às vítimas de graves violações de Direitos Humanos.

A noção de pesquisa militante traz, então, contribuições para o questionamento sobre as implicações da pesquisadora nos casos selecionados, entendendo-se pesquisa militante como o “espaço amplo de produção de conhecimento orientado para a ação transformadora, que articula ativamente pesquisadores, comunidades organizadas, movimentos sociais e organizações políticas, em espaços formais ou não de ensino, de pesquisa e de extensão” (BRAVO, et al., 2016; p. 8) e militância como

o compromisso ético e político com a mudança social e que, por isso, envolve posicionamentos e atuações pró-ativas em várias áreas da vida, como a profissional e a acadêmica, envolvendo a inserção em espaços coletivos de discussão, articulação e mobilização com objetivo de viabilizar e potencializar lutas políticas que representem a construção de uma sociedade justa e igualitária. (BRAVO, et al., 2016; p. 8)

O pesquisador militante é aquele que participa e partilha do projeto social e político do seu campo de estudo, por isso seu trabalho de pesquisa não deve ser invalidado caso o autor acumule militância no campo pesquisado. Segundo Cunha e Santos (2011), a opção por determinado tema provavelmente ocorre porque a trajetória de vida do pesquisador e de sua militância o levou a se interessar em descrever e analisar de modo crítico a realidade em que está envolvido, sistematizando fatos, comportamentos, ideias e estabelecendo possíveis conexões, tipologias e modelos. A proximidade do pesquisador com o tema e o espaço de pesquisa representa simultaneamente a força e a fraqueza da pesquisa militante, porque, se por um lado garante maior acesso a dados, situações concretas, representações e concepções que lhes permitem caracterizar o campo de modo mais próximo à realidade estudada, por outro

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lado traz presente o risco de perda do foco sociológico e a dificuldade em dialogar com outras perspectivas (CUNHA; SANTOS, 2011).

Entretanto, é preciso estabelecer pontos de reflexão que contribuam para a realização efetiva da pesquisa, a partir da condição de pesquisadora-militante da autora. Cunha e Santos (2011) indicam três formulações importantes — que passei a adotar — a partir de investigação realizada em seu próprio campo de militância e pesquisa, a economia solidária. A primeira formulação das autoras diz respeito à necessidade de se explicitar os múltiplos papéis sociais que simultaneamente o pesquisador assume, pois ele é, ao mesmo tempo, pesquisador, militante e profissional atuante no campo (no Estado ou na sociedade). Ao se identificar o lugar de fala enquanto pesquisador, se reconhece que as trajetórias institucionais e intelectuais e visões de mundo se refletirão sobre a interpretação e percepção da realidade que se pretende observar. Não significa que se deixe de lado a objetividade e a crítica, que devem ser constantemente buscadas:

Tentar evitar nosso próprio viés no registro e análise dos dados não significa ir a campo como tabula rasa, e sim explicitar ao máximo nossos pressupostos de forma que eles possam constar nas interpretações feitas. Mais do que isso, nossa opção é por tentar não ocultar ou não ignorar que há hipóteses normativas subjacentes, mas sim buscar fundar a normatividade no quadro com que trabalhamos. (CUNHA; SANTOS, 2011, p. 50)

A segunda formulação trata da importância de se explicitar claramente os parâmetros aos quais a pesquisa se filia e, ao mesmo tempo, buscar conhecer as abordagens que lhes são alternativas ou opostas, situando-se o pesquisador neste campo de lutas. Estas pesquisas abrem-se ao novo, ao outro, partindo da ideia de que é possível haver formas alternativas de organização e que a realidade é dinâmica, em permanente movimento. O novo, entretanto, não deve ser idealizado; ao invés, trata-se de lembrar de tradições de crítica sociológica, buscando apreender contradições, conflitos, avanços e recursos dos processos em curso.

A terceira formulação aponta que pesquisas militantes apresentam uma contribuição às realidades que estudam, ao sistematizarem o conhecimento sobre o tema de estudo, oferecendo elementos para a compreensão e explicação das questões levantadas. A análise sistemática e crítica não é impeditivo para que as pesquisas possam apontar propostas de intervenção na realidade e que partam do pressuposto de que o conhecimento acumulado será partilhado com os sujeitos pesquisados e que outras formas de construção do conhecimento também são importantes:

46 A pesquisa militante possui um caráter propositivo onde o pesquisador não se furta aos imperativos de contribuição social e política e aposta na possibilidade de alternativas capazes de mudar determinada realidade, mesmo quando adota uma postura questionadora. Porém, permanece o desafio de não permitir que isto desloque a análise de seus objetivos e distorça seus resultados. (CUNHA; SANTOS, 2011, p. 51)

O registro do meu local de fala, como profissional e militante que atua no campo dos Direitos Humanos e especificamente em relação ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e ações junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, demonstra os múltiplos papéis sociais que assumi ao longo de minha trajetória de vida, que acabaram se refletindo na interpretação da realidade que observo e analiso. Pretendo com esta investigação contribuir com o campo da pesquisa empírica do Direito, especificamente dos Direitos Humanos, refletindo sobre os usos de metodologias e estratégias de pesquisa que considerem uma abordagem militante para propor intervenções na realidade e partindo do conhecimento acumulado dos sujeitos (individuais e coletivos) que também atuam nessa realidade, seja por meio de atuação profissional e militante dessas pessoas (os sujeitos entrevistados), seja por meio das construções sobre políticas de Direitos Humanos.