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CAPÍTULO II A NARRATIVA DOS CASOS SÉTIMO GARIBALDI VERSUS

2.1 A violência no campo na década de 1990 e início dos anos 2000

2.1.1 Milícias privadas e violência no campo no Estado do Paraná

O homicídio do trabalhador rural Sétimo Garibaldi ocorreu em contexto de perseguição aos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por meio de criminalização do movimento, ameaça e assassinato de lideranças e de trabalhadores e uso de violência nos despejos forçados. Entre o período de 1998 a 2002 — o segundo mandato do então governador Jaime Lerner —, o Estado do Paraná foi transformado em um “campo de experiência” quanto ao tratamento reservado pelo governo às ocupações rurais, com a violência atingindo índices elevados (NUNES, BORGES, 2006). A política adotada pelo governo do estado foi de dura repressão aos movimentos sociais campesinos, através da polícia e da tolerância do poder público em relação à atuação de milícias privadas (CIRINO DOS SANTOS, 2009).

A partir da territorialização e institucionalização do MST na década de 1990, a face violenta do latifúndio passou a ser representada pela União Democrática Ruralista (UDR), organização de fazendeiros que representa suas demandas: em duas regiões do País, a UDR teve mais força no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e, na região noroeste do Estado do Paraná, duas regiões com grandes focos de violência no campo na década de 1990 (FERNANDES, 2000).

A Comissão Pastoral da Terra registrou, entre 1998 e 2002, 31 tentativas de homicídio, 49 ameaças de morte, sete casos de tortura e 325 pessoas vítimas de lesões corporais em consequência de conflitos por terra, com participação de pistoleiros e agentes da polícia militar do estado, em cerca de 140 operações de despejo, muitas realizadas sem ordem judicial (NUNES, BORGES, 2006). José Arbex Júnior, em matéria publicada na revista Caros Amigos, na edição de junho de 1999, intitulada Terror no Paraná, descreve a realidade vivida pelos trabalhadores rurais sem terra no estado, naquele período:

Está acontecendo uma operação de guerra no Paraná, movida pelo aparelho do Estado contra os sem-terra. Localidades cercadas pela Polícia Militar, helicópteros, carros, cães treinados, homens encapuzados, armados de escopetas, fuzis, bombas de gás, 41 sem- terra presos no momento em que fechávamos esta edição (26 de maio de 1999). No governo atual de Jaime Lerner, já foram presos mais de duzentos deles, seis foram torturados, quinze foram mortos, houve trinta atentados e 41 ameaças de morte. A violência policial atinge até crianças e se traduz em outros gestos tão mesquinhos como covardes.

63 Tomam das pessoas bonés e camisetas com inscrições pró-reforma agrária, queimam pertences, alimentos e barracas e destroem as lavouras das famílias desarmadas. (ARBEX JÚNIOR, 1999)25

Historicamente, as associações dos ruralistas, como a União Democrática Ruralista (UDR), patrocinam grupos de pistoleiros disfarçados como empresas de segurança. As milícias privadas são grupos paramilitares, explicitamente ilegais. Os latifundiários adotavam sistematicamente ações ilegais por meio das quais visam impedir a realização da reforma agrária. As ações dos trabalhadores eram brutalmente combatidas, o que impossibilitava, assim, a mobilização legítima dos movimentos sociais para exigir do Poder Público a garantia dos seus direitos fundamentais, como o acesso à terra, à moradia e ao trabalho (CIRINO DOS SANTOS, 2009).

O grau de violência contra trabalhadores rurais no Estado do Paraná na década de 1990 e início dos anos 2000, promovida por milícias privadas e latifundiários, com omissão e/ou ação de agentes do Estado foi denunciado ao SIDH por organizações e movimentos sociais, com casos que demonstram também a omissão do Estado brasileiro em prevenir situações de violação de direitos de trabalhadores rurais e em responsabilizar judicialmente os autores das violações. Além do homicídio de Sétimo Garibaldi, dois casos foram emblemáticos: o caso Sebastião Camargo e o caso Elias de Meura.

O camponês Sebastião Camargo Filho, de 65 anos de idade, foi assassinado em 7 de fevereiro de 1998, por um grupo de aproximadamente 30 pessoas armadas, contratadas e lideradas por membros da UDR, que iniciaram uma violenta operação extrajudicial de desocupação, na Fazenda Boa Sorte, no município de Marilena, região noroeste do Paraná, que já havia sido declarada de interesse social. Os pistoleiros obrigaram mais de 70 famílias a permanecerem no chão, com o rosto voltado para baixo. Sebastião sofria de uma lesão na coluna que o impedia de permanecer agachado com a cabeça voltada para baixo. Um dos encapuzados ordenou-lhe que abaixasse a cabeça, mas Sebastião não pôde cumprir a ordem. Como reação, o encapuzado apontou a arma para a cabeça do trabalhador e disparou contra ele a menos de um metro de distância. O disparo produziu uma lesão cranioencefálica que tirou a vida de Sebastião Camargo Filho (CIDH, 2009; TERRA DE DIREITOS, 2009).

25 ARBEX JÚNIOR. Terror no Paraná. Caros Amigos. São Paulo, jun. 1999. Disponível em: <http://premiovladimirherzog.org.br/busca-resultado-autor.asp?id=70&letra=J>. Acesso em: 11 jan 2017. A matéria foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, no ano de 1999, na categoria Revista.

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Depois de disparar contra Sebastião, o líder dos encapuzados ordenou aos camponeses que entrassem em um caminhão, no qual foram trasladados, contra sua vontade, até o município de Querência do Norte. Várias testemunhas dos camponeses reconheceram o pistoleiro que tirou a vida de Sebastião como sendo Marcos Menezes Prochet, que ocupava, na época, o cargo de presidente regional da UDR. Dois dias antes do ocorrido, os trabalhadores acampados levaram ao assessor especial para Assuntos Agrários do governo do Estado do Paraná a preocupação com um despejo violento planejado pela UDR. As denúncias foram ignoradas e nenhuma medida foi tomada (CIDH, 2009; TERRA DE DIREITOS, 2009).

Com a demora injustificada no andamento das investigações, em 30 de junho de 2000, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Comissão Pastoral da Terra, a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renaap), a Justiça Global e o International Human Rights Law Group apresentaram denúncia à CIDH contra o Estado brasileiro por ter violado os direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Após o trâmite regular do caso, a CIDH emitiu relatório de admissibilidade e mérito, em 19 de março de 2009, concluindo pela responsabilidade do Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, às garantias judiciais e à proteção judicial, consagrados, respectivamente, nos artigos 4, 8 e 25 da Convenção Americana, em conexão com a obrigação imposta ao Estado pelo artigo 1.1 do tratado, relativa a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção, em detrimento de Sebastião Camargo Filho (CIDH, 2009).

A CIDH recomendou ao Estado a realização de investigação dos fatos, com o objetivo de estabelecer e punir a responsabilidade material e intelectual pelo assassinato de Sebastião Camargo Filho; a reparação dos familiares de Sebastião Camargo Filho, no aspecto tanto moral quanto material; a adoção de política de erradicação da violência rural, que abranja medidas de prevenção e proteção de comunidades em risco e o fortalecimento das medidas de proteção destinadas a líderes de movimentos que trabalham pela distribuição equitativa da propriedade rural; a adoção de medidas efetivas destinadas ao desmantelamento dos grupos ilegais armados que atuam nos conflitos relacionados com a distribuição da terra e a adoção de política pública de

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combate à impunidade das violações de direitos humanos das pessoas envolvidas em conflitos agrários, que lutam por uma distribuição equitativa da terra (CIDH, 2009).26

Também na região noroeste do Paraná, no dia 31 de julho de 2004, 400 integrantes do MST deslocaram-se até a fazenda Santa Filomena, no município de Planaltina, para montar acampamento e visibilizar o descumprimento da função social do imóvel, acelerando o processo de sua desapropriação. Entretanto, ao chegarem, foram recebidos com disparos de armas de fogo provenientes da sede da fazenda, ferindo sete trabalhadores rurais. Fugindo da ofensiva, os trabalhadores adentraram a fazenda, correndo em direção à sede. Ao se encontrarem a cerca de 100 metros da casa, os disparos aumentaram, o que obrigou todos a se jogarem no chão para se protegerem. Nesse momento, o trabalhador Elias Gonçalves de Meura foi atingido por um tiro na altura do pescoço, que atingiu sua coluna cervical, ocasionando sua morte. Após presenciar o assassinato do seu companheiro, os camponeses decidiram manter a ocupação da fazenda. Elias tinha 20 anos de idade (TERRA DE DIREITOS, 2013).

Foi instaurado inquérito policial para investigar os responsáveis pelo homicídio. As investigações apontaram o envolvimento do proprietário da fazenda, Francisco Carvalho Gomes Filho, e a contratação de milícia privada que teria realizado a ação. Entretanto, o inquérito foi arquivado pelo Ministério Público após seis anos, sob alegação de inexistirem indícios suficientes sobre autoria e de que, ainda que existissem indícios, os autores da ação teriam praticado o homicídio em legítima defesa da propriedade (TERRA DE DIREITOS, 2013). O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito do Relatório da Violência no Campo no Estado do Paraná: a ação das milícias privadas, em 2009 (TERRA DE DIREITOS, REDE POPULAR DE ESTUDANTES DE DIREITO DO PARANÁ, 2009). A ocupação da fazenda pelos trabalhadores deu início a uma longa batalha judicial pela

26 O fazendeiro apontado como autor do homicídio de Sebastião Camargo, Marcos Prochet, foi denunciado pelo Ministério Público e submetido a júri popular em 11 de novembro de 2013 e condenado a 15 anos de prisão. Ele recorreu da decisão, e a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, em 18 de dezembro de 2014, anulou o julgamento, submetendo-o a novo júri, que ocorreu em 31 de outubro de 2016, mais de 18 anos após o assassinato. Entretanto, o fazendeiro recorreu também dessa decisão, apelação ainda em julgamento (SCHRAMM, CAPITANI, 2016). Quanto ao caso no SIDH, a Comissão monitorou o cumprimento das recomendações pelo Estado brasileiro por três anos. Entretanto, constatou que o Brasil não cumpriu as recomendações em sua totalidade, em especial a investigação e punição dos responsáveis pelo homicídio e a reparação aos familiares. Decidiu reiterá-las e deu publicidade ao relatório de mérito na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), sem remeter o caso à Corte IDH, dando-o por encerrado (CIDH, 2009).

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desapropriação da área, com a criação do pré-assentamento Elias de Meura e com a atuação de organizações de Direitos Humanos que realizam assessoria jurídica popular (PIVATO, 2010; TERRA DE DIREITOS, 2012).

Em 2005, a Polícia Federal realizou a operação Março Branco, que prendeu policiais civis e miliares e não policiais, que integravam uma milícia privada responsável por atos de violência contra trabalhadores rurais, em despejos extrajudiciais e a mando de fazendeiros. O então tenente coronel Waldir Copetti Neves, da Polícia Militar do Paraná, liderança da milícia, foi condenado, em 2009, por exercício arbitrário das próprias razões, constrangimento ilegal, formação de quadrilha e tráfico internacional de arma de fogo (TERRA DE DIREITOS, 2013). Copetti Neves foi autor de interceptação ilegal de linhas telefônicas utilizadas por lideranças do MST e divulgadas à imprensa, crime que permaneceu impune e que gerou a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, no caso Escher e outros vs. Brasil (CORTE IDH, 2009).