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CAPÍTULO III ANALISANDO OS DADOS

3.3 Em busca de respostas: retomando as entrevistas e analisando documentos

3.3.3 Cumprimento das recomendações e decisões do Sistema Interamericano de

Os documentos referentes ao cumprimento das recomendações e decisões do SIDH são basicamente de três tipos: as normas internas de órgãos do Poder Executivo com atribuições sobre a matéria, um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que trata do cumprimento das decisões internacionais em matéria de Direitos Humano e as manifestações do Poder Executivo sobre o projeto. Considerando a baixa produção normativa e documental sobre o assunto, as entrevistas foram de grande importância para a realização da análise.

A realização de ações pelo Poder Executivo sobre violações de Direitos Humanos especificamente reconhecidas pelo SIDH em relação ao Brasil centra-se basicamente em três órgãos da estrutura do governo federal: o Ministério das Relações Exteriores; a Advocacia-Geral da União, por meio do Departamento Internacional; e, à

81 Não há uma definição clara quanto ao papel e às atribuições do advogado que integra a equipe técnica do PPDDH. Fabiana, Lara, Carlos, Nara e Maria (Entrevistas VIII, IV, XII, XIII, V, respectivamente) afirmaram que o advogado da equipe presta assessoria jurídica ao defensor protegido, mas não advoga para o defensor, cabendo às defensorias públicas, às organizações e aos movimentos sociais realizarem a tarefa. Mesmo diante de um litígio estratégico que influencie nas medidas protetivas realizadas pelo programa, o advogado não se habilita no processo. Mas não há uma compreensão uniforme sobre o assunto.

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época das entrevistas82, a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. O quadro normativo dos órgãos perante o SIDH é o seguinte:

Quadro 24: Previsão normativa sobre cumprimento das recomendações do SIDH pelo Poder Executivo

Órgão Previsão normativa

Ministério das Relações Exteriores Portaria nº 212, de 2008 (Regimento Interno) Competências da Divisão de Direitos Humanos: representar o Ministério junto à Comissão e à Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como acompanhar, supervisionar e coordenar a preparação das respostas do governo brasileiro aos procedimentos de análise de denúncias de violações de direitos humanos instauradas perante aqueles órgãos e a preparação de visitas de trabalho de seus membros ao país.

Advocacia-Geral da União Decreto nº 7.392, de 2010

Competências do Departamento Internacional: i) planejar, coordenar e supervisionar as atividades relativas à representação e defesa judicial da União nas matérias de direito internacional; ii) assistir judicialmente a União em demandas relacionadas a direito internacional e nas execuções de pedidos de cooperação judiciária internacional; iii) representar judicial e extrajudicialmente a União, observada a competência específica de outros órgãos, em processos judiciais perante os órgãos judiciários brasileiros, decorrentes de tratados, acordos ou ajustes internacionais ou em execução dos pedidos de cooperação judiciária internacional.

Secretaria Especial de Direitos Humanos Decreto nº 8.162, de 2013

133 Competências da Secretaria de Direitos Humanos: encaminhar ao Presidente da República propostas de atos necessários para o cumprimento de decisões de organismos internacionais motivadas por violação dos direitos humanos e realizar eventual pagamento de valores decorrentes; elaborar posicionamentos em questões jurídicas relacionadas aos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e ao cumprimento das suas decisões, incluindo notas, informações e pareceres sobre o tema. Fonte: Elaborado pela autora.

Em decorrência dessa ausência de definição normativa única, as atribuições dos órgãos são decorrentes de seus próprios regimentos internos. Como explicou José (diplomata, 2016):

O Departamento Internacional da Advocacia-Geral da União é responsável pela elaboração das manifestações do Estado brasileiro na fase de admissibilidade na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na fase de mérito, atua a Secretaria de Direitos Humanos. Na etapa de cumprimento de recomendações, cumprimento de medidas cautelares, atua a Secretaria de Direitos Humanos. Antes da outorga das medidas cautelares, quando a Comissão pede informações ao Estado, e a Comissão, ela não é obrigada a pedir informações ao Estado, ela pode outorgar direto as medidas cautelares, quem fornece as informações e prepara a manifestação do Estado é a Secretaria de Direitos Humanos também. Na Corte Interamericana, a atuação, ela é um pouco diferente, a gente nomeia para os casos contenciosos agentes assistentes para atuarem nesses casos, o agente do Brasil, aquele que é o principal representante do Estado brasileiro ante a Corte é sempre o titular da embaixada do Brasil em São José. [...] Então tem uma função mais formal e de representação. Esses outros agentes assistentes, quem são? Em regra, quem que é indicado a agente assistente para casos contenciosos: pessoas da Assessoria Internacional, assistentes da Assessoria Internacional da Secretaria de Direitos Humanos, assistentes da... advogados da União, do Departamento Internacional da Advocacia-Geral da União, e diplomatas da divisão de Direitos Humanos. (informação verbal)83

Os entrevistados mencionaram uma disputa política entre os órgãos, especificamente entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Advocacia-Geral da União, quanto à definição dos posicionamentos em nome do Estado brasileiro perante o SIDH. Lúcia (gestora pública, 2016) afirmou:

83 Entrevista concedida por José. Entrevista XV. [jun. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (48 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

134 Tem uma disputa entre SDH e AGU no âmbito do Sistema Interamericano de alguma forma, que é uma disputa besta, mas que é uma disputa que existe de competência, de conflito de competência, [...] a nossa Conjur vem atuando e tem duas advogadas da União que atuam, uma desde 2010, 2011, e outra desde 2006, no âmbito do Sistema Interamericano, conhecem, têm uma visão de Direitos Humanos que é um pouco diferente da visão da AGU, do departamento internacional, que nos inviabiliza fazer algumas soluções amistosas, nos inviabiliza avançar em respostas mais jurídicas no âmbito do Sistema Interamericano porque nós somos impedidos de atuar com a nossa assessoria jurídica. (informação verbal)84

Ana (advogada da União, 2016) apontou a precariedade da atuação do Estado brasileiro perante o SIDH e as consequências da disputa entre os órgãos:

Então assim, esse trabalho, ele é ruim, ele é difícil, porque uma hora, por exemplo, a gente está com um caso na corte, [...] e como a gente não sabe quem coordena o que, aí fica uma coisa, um não pode atuar assim porque aí já está pensando que vai ultrapassar o poder do outro, aí fica sempre uma situação muito difícil porque a gente não tem isso claro [...] Então, na prática, isso é bem precário, para te falar a verdade. É muito precária essa atuação do Estado brasileiro, é precária do ponto de vista normativo [...] Eu acho assim, é uma coisa tão pequena de disputa de poder que sinceramente, assim, a gente até tentou reverter, a gente tentou, mas assim, porque que é perda, que eu concordo com você, porque a ótica do DPI não é a mesma ótica que a gente atua, a gente atua como ótica de Direitos Humanos, eu acho que elas se complementam, ele atua numa ótica de defesa do estado. Então assim, ele [a AGU] tem uma visão de defesa do estado por si só, que é importante ter, então eu não acho que ele tem que ser excluído, eu acho que os dois podem participar em conjunto, porque a minha ótica é de Direitos Humanos, mas, infelizmente, né, nem sempre as pessoas têm essa visão, de que as pessoas podem trabalhar juntas, né? Então é isso [...] (informação verbal)85

A disputa atinge a relação do Poder Executivo com o Sistema de Justiça. Tanto Lúcia (gestora pública, 2016) como Ana (advogada da União, 2016) e José (diplomata, 2016) apontaram uma falta de coordenação entre o Ministério das Relações Exteriores, a Advocacia-Geral da União e a Secretaria Especial de Direitos Humanos para atuarem conjuntamente em relação ao Poder Judiciário e Ministério Público e garantir a execução das decisões do SIDH. Essa disputa causa outros prejuízos, apontados por Ana (advogada da União, 2016):

84 Entrevista concedida por Lúcia. Entrevista III. [abr. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (32 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

85 Entrevista concedida por Ana. Entrevista II. [abr. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (37 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

135 Então eu acho que realmente tem um vácuo, por exemplo, atuar como assistente, isso já foi cogitado, em algumas ações penais a AGU atuar, ter um trabalho, talvez, ter uma interlocução mais forte com a PGR em relação aos incidentes de deslocamento de competência, assim, coisas que a gente poderia fazer, né, e, assim, uma ação civil pública, coisas que a gente tem competência legal pra fazer, óbvio que eu fugi um pouco da área criminal, mas, assim, algumas formas de impulsionar, sei lá o que a gente poderia pensar, mas a gente esbarra sempre no DPI, entendeu? Porque, porque essa disputa de poder impediu que a gente desenvolvesse esses mecanismos judiciais, né, eu não estou dizendo que eles resolveriam ou seriam suficientes, que eu acredito que não seriam, mas, como tudo o que envolve mecanismos judicial ou Sistema de Justiça, né, a gente tem que deixar para o DPI e eles não vão fazer, porque eles não têm esse engajamento, não cabe a eles ter, aí fica esse vazio. Fica o vazio. (informação verbal)86

A relação entre o Poder Executivo e os órgãos do Sistema de Justiça para cumprimento das decisões do SIDH é desequilibrada. Conforme expus no capítulo primeiro87, praticamente a totalidade de casos relativos ao Estado brasileiro que tramitam na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos trata de violações às garantias judiciais e à proteção judicial, ou seja, da não garantia do acesso à justiça e do devido processo legal. Entretanto, as respostas ao SIDH e o cumprimento das decisões cabem somente ao Poder Executivo. Lúcia (gestora pública, 2016) pontuou:

Mais do Sistema de Justiça do que do Poder Executivo, mas o Sistema de Justiça não responde, quem responde é o Executivo. Está aí um dos grandes problemas, porque você responde enquanto Estado brasileiro, essa resposta quem faz, quem elabora, quem articula, quem complementa é só o Executivo, então ele tem que tentar convencer o Judiciário a fazer alguma coisa, sendo que o Judiciário, se ele atuasse como devia, ele não pode, ele deveria fazer o controle de convenção na realidade. Tem uma sentença da Corte, vou usar o controle de convencionalidade aqui, não precisava a gente ter que ir lá pedir, mas enfim, tem que ir lá pedir, tem que fazer, mas quem responde pra corte não é o Judiciário brasileiro, é o Estado brasileiro, então quem tá fazendo a resposta é o Executivo, acaba respondendo em nome do Judiciário [...] (informação verbal)88

Mas, por sua vez, o Sistema de Justiça é apontado como um grande violador de Direitos Humanos, justamente pela ausência de devida prestação jurisdicional. Ana (advogada da União, 2016) observou:

86 Ibid.

87 Para mais detalhes, ver quadros 2, 3, 4 e 5.

8888 Entrevista concedida por Lúcia. Entrevista III. [abr. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (32 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

136 Então, essa tua pergunta, a gente reflete muito sobre ela aqui. Porque a maioria dos casos. a gente tem 8 e 25, a gente não tem prestação jurisdicional, seja porque não abriu o inquérito, seja porque o inquérito não andou, seja porque não teve a denúncia, porque o caso prescreveu, então a maioria dos casos chega lá, na minha visão, numa total negligência, omissão do Sistema de Justiça. Eu acho que o maior violador dos Direitos Humanos no Brasil é o Sistema de Justiça, na minha visão, porque, se ele não tivesse, se ele tivesse conferido a prestação jurisdicional, o caso não teria chegado lá, então para mim, ele é o maior violador, não é o Poder Executivo, porque ele não responde, o Sistema de Justiça não responde. (informação verbal)89

Alessandra (integrante de ONG, 2016) expôs que as recomendações sobre a realização de investigação das violações e a garantia de acesso à justiça das vítimas, em geral, não são cumpridas pelos Estados-parte da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Mas esses casos, assim, e exatamente esse ponto, que é o ponto das investigações, o ponto do acesso à justiça, que é o ponto que mais tem descumprimento, então, os pontos que a Corte mais declara cumpridos, que os estados geralmente cumprem melhor são os casos, a parte da indenização pecuniária, a parte da indenização simbólica, né, de formas de mitigação simbólica, esse negócio de nome de rua, estados, o pessoal está sendo bem criativo na hora de solicitar que, né, trazem um pouco, marca um pouco na história, né, a memória do que aconteceu, mas a parte de processo, a parte de justiça é bem pelo dinheiro, eles dão outras coisas simbólicas, eles fazem, mas investigação mesmo é a parte que mais tem descumprimento, por isso que, de todas as decisões da Corte, acho que só duas ou três já não estão, já foram declaradas completamente cumpridas. (informação verbal)90

José (diplomata, 2016) corroborou a posição, afirmando:

Minha percepção no geral é de que a recomendação ou a decisão obrigatória da Corte, recomendação no caso da Comissão, que são mais fáceis de cumprimento são as de reparação material porque, como existe a regulamentação na matéria, hoje a gente não paga indenização por decisão internacional de órgãos de monitoramento de Direitos Humanos por meio de precatórios, a gente paga por meio administrativo, então com base numa legislação intermediária, ou um decreto da Presidência, ou uma lei estadual, como a gente já pagou em alguns casos por meio de leis estaduais, ou por meio de lei federal, eu acho que são essas as formas, decreto presidencial, lei federal, lei estadual. Na Comissão, muitas vezes, quem paga essas indenizações

89 Entrevista concedida por Ana. Entrevista II. [abr. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (37 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

90 Entrevista concedida por Alessandra. Entrevista XI. [maio. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (29 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

137 são os Estados e nunca é por precatória, o que eu acho que é uma coisa positiva. [...] O que é difícil são as medidas de não repetição, que demandam políticas públicas de nível nacional e investigação e persecução penal, que eu acho que é a mais, é o ponto mais difícil de cumprimento. (informação verbal)91

O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público não desenvolveram regramentos para orientar o Poder Judiciário e o Ministério Público a cumprirem as recomendações e decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Tampouco existem leis que regulem o cumprimento das decisões pelo Sistema de Justiça. Em 2004, o então deputado federal José Eduardo Cardoso apresentou o projeto de lei nº 4.667 (conhecido como lei-ponte), que dispunha sobre os efeitos jurídicos das decisões dos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos. O projeto, com apenas quatro artigos, prevê que as decisões produzirão efeitos jurídicos imediatos no âmbito do ordenamento interno brasileiro, as decisões de caráter indenizatório constituem-se em títulos executivos judiciais e sujeitos à execução direta contra a Fazenda Pública Federal e é cabível ação regressiva da União contra pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pelos ilícitos que ensejaram a decisão de caráter indenizatório.

O projeto foi substituído pela proposta do deputado Orlando Fantazzini, que, além da previsão do projeto original, acresceu a criação de órgão para acompanhar a implementação das decisões e recomendações, composto por representação interministerial e da sociedade civil, com atribuições de acompanhar a negociação entre os entes federados envolvidos e as vítimas; promover entendimentos com os governos estaduais e municipais, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, para o cumprimento das obrigações; fiscalizar o trâmite das ações judiciais relacionadas nas decisões; e fazer gestões junto aos órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia para que agilizem as investigações e apurações dos casos em exame pelos organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos (BRASIL, Câmara dos Deputados, 2006).

O substituto, aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, representou um avanço em relação à proposta original, pois estabelecia mecanismo para garantir o cumprimento das decisões pelo Executivo, pelo Sistema de Justiça e pelo Legislativo. Entretanto, foi rejeitado pela Comissão de Constituição e

91 Entrevista concedida por José. Entrevista XV. [jun. 2016]. Entrevistadora: Luciana Silva Garcia. Brasília, 2016. (48 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B.

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Justiça, retornando à redação original. Encaminhado ao Senado Federal, transformou-se no projeto de lei da Câmara nº 170, de 2010, que foi arquivado em 23 de dezembro de 2014, não tendo sido desarquivado posteriormente.92

Em síntese, as ações do Poder Executivo sobre violações de Direitos Humanos reconhecidas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos são frágeis no aspecto normativo e estrutural, o que gera disputa entre os órgãos responsáveis e impossibilita uma atuação mais coordenada em relação ao Sistema de Justiça. Por sua vez, o Poder Judiciário e o Ministério Público foram apontados como grandes violadores de direitos, considerando que praticamente a totalidade dos casos que tramitam do SIDH aponta a falta de garantias judiciais e proteção judicial pelas vítimas.

3.3.4 Reformas no Sistema de Justiça para tratamento de graves violações de