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Fragilização das ações e dos programas de Direitos Humanos pelo golpe de

CAPÍTULO IV – REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO SISTEMA DE

4.4 Fragilização das ações e dos programas de Direitos Humanos pelo golpe de

No decorrer da pesquisa (tanto a exploratória, para desenvolvimento do projeto de qualificação, como a pesquisa de campo em si), entre abril de 2015 e setembro de 2016, o Brasil sofreu um golpe de Estado, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff.148 Como pontuei no primeiro capítulo, alterações nas estruturas dos órgãos do Poder Executivo responsáveis por executar ações e programas de Direitos Humanos aceleraram-se significativamente no período, e indícios das consequências desse cenário para a política pública de Direitos Humanos surgiram ao longo da pesquisa, verificados, em especial, pelos dados coletados das entrevistas.

A execução do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos e o cumprimento das decisões do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos são ações de competência do Poder Executivo Federal realizadas pelo órgão responsável por executar políticas relacionadas à promoção e defesa dos Direitos Humanos. Dentro do marco temporal da pesquisa, cabia à Secretaria de Direitos Humanos (SDH), órgão essencial da Presidência da República, de acordo com o Decreto nº 8.162, de 2013, realizar essas ações.149

Também eram atribuições da SDH assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes voltadas à promoção dos direitos da cidadania, da criança, do adolescente, do idoso e das minorias e à defesa dos direitos das pessoas com deficiência e promoção da sua integração à vida comunitária; coordenar a política

148 Como bem coloca Jinkings (2016, p. 11): “o Brasil vive um golpe de Estado. A frase não admite tergiversações ou volteios em seu entendimento. A pílula não pode ser dourada”.

149 A Lei nº 12.314, de 2010, elenca os órgãos que compõem a Presidência da República, sendo constituída, essencialmente, pela Casa Civil, pela Secretaria-Geral, pela Secretaria de Relações Institucionais, pela Secretaria de Comunicação Social, pelo Gabinete Pessoal, pelo Gabinete de Segurança Institucional, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, pela Secretaria de Direitos Humanos, pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e pela Secretaria de Portos. O Decreto nº 8.162, de 2013, refere-se à estrutura regimental da Secretaria de Direitos Humanos. A despeito de integrar a presidência, a secretaria tinha status de ministério, previsto pelo próprio decreto.

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nacional de Direitos Humanos, em conformidade com as diretrizes do Programa Nacional de Diretos Humanos (PNDH); articular iniciativas e apoiar projetos voltados para a proteção e promoção dos Direitos Humanos em âmbito nacional, promovidos por órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e por organizações da sociedade; encaminhar ao Presidente da República propostas de atos necessários para o cumprimento de decisões de organismos internacionais motivadas por violação dos Direitos Humanos e realizar eventual pagamento de valores decorrentes (atribuições previstas no artigo primeiro do anexo do decreto).

Em outubro de 2015, a Medida Provisória nº 696, de 2015 (posteriormente convertida na Lei nº 13.266, de 2016), extinguiu a Secretaria de Direitos Humanos, assim como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Políticas para Mulheres, que também faziam parte da Presidência da República. A medida criou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que passou a integrar as atribuições antes previstas especificamente para cada secretaria.150 Essa mudança ocorreu no bojo de uma reforma ministerial mais ampla, que extinguiu oito ministérios ao todo. Uma “reforma para salvar o governo”, como expôs Almeida (2016, p. 85), em função da sucessão de crises políticas sofridas pelo governo, e que serviria para “abrigar mais peemidebistas na Esplanada dos Ministérios e, de outro, garantir maior ‘eficiência’ na gestão” (ALMEIDA, 2016, p. 87).

Durante o debate sobre a reforma ministerial, o governo federal cogitou chamar o “novo” órgão de Ministério da Cidadania151, mas definiu, ao fim, por manter as nomenclaturas de cada secretaria, integrando-as. A extinção das secretarias temáticas com a criação de um único órgão já dava pistas das consequências da crise política e posteriormente do golpe de Estado para as políticas de Direitos Humanos. Como afirmou Da Silva (2015)

150 Em repúdio à unificação das secretarias, a Décima-Segunda Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2016, aprovou a seguinte recomendação: “retomar a independência da organização ministerial para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Secretaria de Direitos Humanos, ampliando os seus orçamentos e atividades”.

151 Sobre o tema, ver da redação Dilma se reúne com ministros e tese do ministério da cidadania ganha força. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 setembro 2015. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-se-reune-com-ministros-e-tese-do-ministerio-da- cidadania-ganha-forca,1768286. Acesso em: 15 dez. 2017. E ver Dilma se reúne com Temer para definir espaço do PMDB no governo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 25 de setembro de 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1685880-dilma-se-reune-com-temer-para-definir-espaco- do-pmdb-no-governo.shtml. Acesso em: 15 dez. 2015.

183 Eis que, na dança política de acomodação da base aliada, sujeitos políticos depauperados no campo da conquista de direitos, de um modo geral, perderam suas cadeiras. Como na brincadeira infantil, quem vai ao ar perde o lugar, quem vai ao vento, perde o assento. A questão aflitiva é que mulheres, negros, grupos étnicos não- hegemônicos, adolescentes marginalizados, pessoas em situação de vulnerabilidade nunca tiveram lugar garantido no panteão dos ministérios que importam. É como se estivessem mesmo assentadas no ar, no vento. [...] Por meio de mal disfarçada estratégia de marketing, o Governo manteve a simbologia política dos nomes das extintas secretarias no novo ministério; disfarçou o esvaziamento de poder das três pastas, que, sem sombra de dúvidas, individualmente eram mais fortes. De quebra, a fusão camuflou a esqualidez orçamentária que as três secretarias enfrentavam e que permaneceu no Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Foram três coelhos numa cadeirada só. (DA SILVA, 2015)

Menos de um ano após, em 12 de maio de 2016, com o afastamento provisório da presidenta Dilma Rousseff por aprovação do Senado no âmbito do processo de impeachment, uma nova reforma atingiu o recém-criado ministério, dessa vez, reduzindo-o a pastas no âmbito do Ministério da Justiça. A Medida Provisória nº 726, de 2016 (posteriormente convertida na Lei nº 13.341, de 2016), transferiu as competênciasdo Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos para o Ministério da Justiça, que passou a ser denominado de Ministério da Justiça e Cidadania. Após treze anos de criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos pelo primeiro governo Lula, as competências relativas às políticas de Direitos Humanos voltaram ao grande guarda-chuva da Justiça.152

A mudança foi bastante significativa: com a criação da Secretaria Especial de Diretos Humanos, em 2003, o tema Direitos Humanos passou a ter maior destaque no governo federal a partir da constituição de um órgão para assessoramento direto da Presidência da República na formulação e articulação de políticas e diretrizes voltadas

152 O primeiro órgão com atribuições sobre programas de Direitos Humanos foi criado em 7 de abril de

1997, pelo Decreto nº 2193, denominado Secretaria Nacional de Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da Justiça, que substituiu a então Secretaria dos Direitos da Cidadania. Em 1º de janeiro de 1999, por meio do Decreto nº 2.923, a secretaria passou a ser secretaria de estado, com assento em reuniões ministeriais, mas ainda parte integrante do Ministério da Justiça. É a partir do dia 1º de janeiro de 2003, por meio da Medida Provisória nº 103 — convertida na Lei nº 10.683, de 25 de maio de 2003 — , que a ela passa a integrar a estrutura da Presidência da República como: a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH/PR), com autonomia e status de ministério. Junto com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, foram criadas outras duas secretarias de nível ministerial: a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Com a tarefa de articular diferentes áreas do governo para que as políticas públicas tivessem como pilar a valorização da dignidade humana, essas secretarias especiais passaram a colaborar de forma mais efetiva na elaboração de políticas de educação, saúde, desenvolvimento agrário, desenvolvimento social, entre outras, assegurando a transversalidade das ações de promoção e defesa de direitos (BRASIL, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010).

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ao combate às violações e à promoção da dignidade humana e dos direitos de cidadania (BRASIL, Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2010). Em 2016, programas e ações de Direitos Humanos foram considerados “menores” (assim como relativos à promoção da igualdade racial e aos direitos das mulheres) e, por isso, incorporados por uma estrutura ampla, o Ministério da Justiça (que passou a se chamar Ministério da Justiça e Cidadania, retornando à concepção difusa da década de 1990 de que todos são direitos de cidadania).

Como afirma Quinalha (2016, p. 132), as justificativas utilizadas pelos deputados federais para dar seguimento ao processo de impeachment da presidenta Dilma, baseadas em convicções pessoais, geralmente pouco republicanas e sem quaisquer fundamentos legais (“pela minha família e meu Estado”, “por Deus”, “pelos evangélicos”, “pelos militares de 1964”), cobraram a fatura ao governo interino de Michel Temer: fim do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos; Secretaria de Direitos Humanos dissolvida na enorme estrutura do Ministério da Justiça, que tem outras prioridades e diversas outras atribuições; escolha de ministros exclusivamente homens e brancos para todos os postos do primeiro escalão do governo153; nomeação para a Secretaria de Mulheres, subordinada ao Ministério da Justiça, de deputada que presidiu a Frente Parlamentar Evangélica e abertamente contrária ao direito ao aborto; discurso oficial de posse enquanto presidente interino prometendo fazer um “ato religioso” com o Brasil.

Nessa mesma linha, Ribeiro (2016) analisa a perspectiva feminista negra sobre o impeachment e afirma

As questões que assolam o país nos últimos tempos revelam um quadro nebuloso e de retrocessos. O impedimento da presidenta e a ilegalidade que o cerca demonstram uma falência ética e moral de nossas instituições. Porém, para além dessas arbitrariedades, os resultados práticos disso afetarão de modo concreto a vida da população, principalmente da dos grupos historicamente discriminados. Essas ações já sinalizam para um regresso no que tange os direitos das mulheres e da população negra e indígena. (RIBEIRO, 2016, p. 128)

153 A fotografia do ato de posse do governo interino, com o presidente interino Michel Temer, cercado somente por homens brancos é bastante representativa desse quadro. Disponível em: http://ponte.cartacapital.com.br/um-governo-sem-mulheres-sem-direitos-e-sem-igualdade-racial/. Acesso em: 13 mar. 2017.

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As entrevistas realizadas entre abril e julho de 2016 apontam o prejuízo que a instabilidade política do golpe trouxe para a execução das ações e dos programas de Direitos Humanos: Márcio (gestor público, 2016) expôs as sucessivas alterações normativas na estrutura do Ministério do Desenvolvimento Agrário que colocaram a Ouvidoria Agrária Nacional em um limbo normativo, gerando incertezas sobre a manutenção do órgão; Francisco (gestor público, 2016) lembrou que, nos meses de março a outubro de 2015, a então Secretaria de Direitos Humanos contou com dois ministros (Ideli Salvati e Pepe Vargas) e, posteriormente, foi integrada às outras secretarias, com a criação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e, em consequência, com a obrigação de cortar cargos, funções e integrar programas e ações; Ema (integrante de ET/PPDDH, 2016), analisando as consequências do golpe na realidade das comunidades quilombolas, expôs que, entre os ruralistas, há um clima de vitória e uma certeza da impunidade em relação aos crimes cometidos contra as lideranças protegidas.154

Conforme expus no primeiro capítulo, a pesquisa não tem por objetivo fazer história do tempo presente, mas, por ter caráter qualitativo, pode apontar, no âmbito das fronteiras estabelecidas e considerando os dados levantados, as rupturas encontradas. Nesse sentido, a ruptura imediatamente verificada foi o desmantelamento de estruturas institucionais e programas que garantem a proteção a direitos conquistados. A estruturação de um órgão específico voltado para realizar ações e programas de Direitos Humanos tem relação direta com a construção e o fortalecimento de uma política pública de Direitos Humanos, formulada a partir dos programas nacionais de Direitos Humanos e com participação social. Cabe ao órgão específico induzir essas políticas públicas de enfrentamento à violência e promoção de direitos, além de monitorar sua execução, promovendo ainda a capilaridade das ações com os outros poderes e governos estaduais e municipais.155

Desmantelar a Secretaria de Direitos Humanos (assim como a de Políticas para Promoção da Igualdade Racial e Política de Mulheres), incorporando-a a uma estrutura

154 Ema (Entrevista XVI)), ao narrar uma audiência relativa à ação de reintegração de posse de território quilombola, expôs: “É, parece que, assim, a vitória está ganha para nós e, inclusive, Luciana, não sei nem se você pode usar isso porque eu não sei o nome do juiz, mas, numa audiência que o pessoal teve lá, sobre uma reintegração de posse, ocorrida agora no mês de maio e junho, o juiz chegou a dizer para os quilombolas, ‘vocês precisam aceitar o que está proposto para vocês, o momento é outro, não é mais o PT que está no poder’, sabe assim, quando o pessoal me falou, eu disse: nossa, é uma forma de intimidação ao defensor de Direitos Humanos”.

155 Nesse sentido, uma análise da importância da institucionalização de políticas públicas voltadas ao enfrentamento à violência contra a mulher pode ser encontrada em Martins, Cerqueira, Matos (2015).

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maior do Ministério da Justiça, “dilui” a capacidade de formulação da política de Direitos Humanos, pois conecta os processos decisórios a uma cadeia mais ampla de sujeitos políticos: se, antes, cabia ao ministro-chefe de Direitos Humanos definir sobre as políticas e assessorar o presidente da República; com a extinção da secretaria, o seu responsável no âmbito da Justiça deverá remeter-se ao respectivo ministro, que define, ao final, os rumos da política pública.156 Pode parecer uma construção simplista, à primeira vista, mas foi crucial a autonomia da Secretaria de Direitos Humanos enquanto ministério em debates no âmbito do Poder Legislativo, como sua posição em relação à redução da maioridade penal, a proibição de castigos físicos em crianças e a aprovação da proposta de emenda constitucional sobre expropriação de terras com trabalhadores em condições de escravidão (conhecida como a PEC do Trabalho Escravo).157

Observei, entretanto, que essa fragilização de ações e políticas de Direitos Humanos não ocorreu a partir do golpe de Estado de 2016. Mesmo antes, no primeiro mandado da presidenta Dilma (2011-2014), já havia um enfraquecimento de certos programas de Direitos Humanos, como o próprio PPDDH e cumprimento de decisões e recomendações do SIDH.158 As manifestações do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, mencionadas no capítulo terceiro, já apontavam preocupações com a redução dos recursos destinados ao programa e as dificuldades em estabelecimento de parcerias com os estados. Francisco (gestor público, 2016), em sua entrevista, expôs a impossibilidade de aumento dos recursos para o PDDH, o que representava uma ameaça para a continuidade da proteção aos defensores; entre os anos de 2014 e 2015, os programas do Ceará, do Rio Grande do Sul e da Bahia suspenderam as suas atividades.

156 Alguns entrevistados apontaram esta preocupação, com a extinção da Secretaria de Direitos Humanos e incorporação por outro ministério: se já havia uma dificuldade, em função da temática, de acessar a presidenta para definição das agendas mais importantes, as dificuldades aumentariam, inclusive para acessar o ministro de Estado. Apontaram essa preocupação: Márcio (gestor público, 2016), Francisco (gestor público, 2016) e Lúcia (gestora pública, 2016).

157 Sobre o assunto, ver Ministro da Secretaria de Direitos Humanos é contra redução da maioridade penal. Rádio Câmara, Brasília, 22 abril 2015. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/486361-MINISTRO-DA- SECRETARIA-DE-DIREITOS-HUMANOS-E-CONTRA-REDUCAO-DA-MAIORIDADE-

PENAL.html>. Acesso em: 7 dez. 2015. Castigos corporais em crianças violam Direitos Humanos, diz Rainha. Câmara Notícias, Brasília, 19 maio 2011. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/197291-CASTIGOS-

CORPORAIS-EM-CRIANCAS-VIOLAM-DIREITOS-HUMANOS,-DIZ-RAINHA.html>. Acesso em: 7 dez. 2016. Maria do Rosário cobra a aprovação da PEC do trabalho escravo. Agência Brasil, Brasília, 11 dez. 2013. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/12/maria-do-rosario-cobra-a- aprovacao-da-pec-do-trabalho-escravo>. Acesso em: 7 dez. 2016.

158 É bem verdade que, no Governo Lula, o Brasil viveu um período de ouro em relação a políticas de Direitos Humanos, em comparação aos governos anteriores, a partir da redemocratização.

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Da mesma forma, durante o Governo Dilma, houve grande tensionamento em relação ao cumprimento de certas decisões do SIDH. Desde as primeiras recomendações em 1997 (relativas ao caso Newton Coutinho Mendes e outros)159 e a primeira sentença contra o Estado brasileiro pela Corte IDH em 2006 (sobre o caso Ximenes Lopes), o Brasil, segundo Ventura e Cedra (2013), teve uma atuação inicialmente indiferente e algumas vezes formal no atendimento às recomendações e decisões do SIDH, posição confirmada pelas entrevistas indicadas no terceiro capítulo.

Mas, com a recomendação da CIDH ao Estado brasileiro para suspender imediatamente o processo de licenciamento do projeto da usina de Belo Monte, impedindo a realização de qualquer obra material de execução até que fossem observadas condições mínimas elencadas pela Comissão Interamericana, o Brasil mudou sua postura.160 O Ministério das Relações Exteriores divulgou, em resposta às medidas, nota com tom hostil, incomum às posições do ministério, manifestando-se, em síntese:

[...] O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que desempenham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recorda que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdição interna. [...] O Governo

159 Trata-se do Informe nº 59/99. Caso 11.405. Newton Coutinho Mendes e outros. Relatório de mérito disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/98span/Fondo/Brasil%2011.405.htm. Acesso em: 15 de jun. 2015.

160 Tratam-se das medidas cautelares MC 382/10 - Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil, com o seguinte teor: “Em 1 de abril de 2011, a CIDH outorgou medidas cautelares a favor dos membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, no Pará, Brasil: Arara da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do ’Kilómetro 17’; Xikrin de Trincheira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca; e as comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu. A solicitação de medida cautelar alega que a vida e a integridade pessoal dos beneficiários estariam em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo Monte. A CIDH solicitou ao Governo Brasileiro que suspenda imediatamente o processo de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impeça a realização de qualquer obra material de execução até que sejam observadas as seguintes condições mínimas: (1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de boa-fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares; (2) garantir, previamente, a realização dos citados processos de consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos; (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingú e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária”. Disponível em https://www.cidh.oas.org/medidas/2011.port.htm. Acesso em: 12 jan. 2016.

188 brasileiro considera as solicitações da CIDH precipitadas e injustificáveis. (BRASIL, 2011)161

E a ofensiva contra a decisão da Comissão Interamericana seguiu: o Brasil