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CAPÍTULO II A NARRATIVA DOS CASOS SÉTIMO GARIBALDI VERSUS

2.1 A violência no campo na década de 1990 e início dos anos 2000

2.1.2 Assassinatos de lideranças de trabalhadores rurais no Estado do Pará

A década de 1990 e o início dos anos 2000 foi um período marcado pelos assassinatos de importantes lideranças e defensores de Direitos Humanos no Estado do Pará. A violência contra trabalhadores rurais, característica da região, passou a atingir mais fortemente sindicalistas e dirigentes de movimentos sociais. Os assassinatos de trabalhadores rurais passaram a ser mais seletivos, visando atingir os principais dirigentes do conjunto dos movimentos sociais rurais. O objetivo era impedir o fortalecimento das organizações dos trabalhadores que lutam pela reforma agrária, pela preservação ambiental e pelos Direitos Humanos. Os homicídios representam um indicativo preciso do novo padrão de violência contra lideranças e defensores de Direitos Humanos no Pará no período (FRIGO, et al., 2005; GAIO, et al., 2006).

A forma como as ameaças ocorriam mantinha um padrão: telefonemas anônimos, informações que “vazavam” e chegavam às pessoas próximas às lideranças. Os assassinatos ocorreram após um período — que costumava durar semanas — de forte tensão, com acontecimentos que são o anúncio de um ou mais assassinatos. Um fato conhecido por todos os trabalhadores era de que as agressões contra as lideranças eram realizadas por um consórcio de pessoas, em geral fazendeiros, que se reuniam e deliberavam as estratégias para desarticulação dos movimentos (FRIGO, et al., 2005).

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Em 17 de abril de 1996, ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás, quando 155 policiais militares cercaram um grupo de aproximadamente 1.500 trabalhadores rurais, que se encontravam acampados na margem da rodovia estadual PA-150. Os policiais cercaram os trabalhadores pelos dois lados da rodovia e dispararam indistintamente, o que resultou no homicídio de 19 trabalhadores, seis assassinados pelos disparos iniciais e 13 executados sumariamente após a desobstrução da estrada, os quais não haviam podido fugir por se encontrarem feridos pelos mencionados disparos. Outros 69 trabalhadores foram gravemente feridos e dezenas de outros sofreram ferimentos leves (CIDH, 2003). A enorme repercussão do massacre27 não foi suficiente para impedir o avanço das mortes de lideranças de trabalhadores rurais.

Em 1997, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou informe sobre a situação de Direitos Humanos no Brasil, após visita ao País, apontando a gravidade da situação vivida por trabalhadores rurais no Estado do Pará, uma situação histórica de desigualdade na distribuição de terras e oportunidades econômicas em áreas rurais. Os conflitos decorrentes dessa desigualdade deram origem a enfrentamentos com excessos na repressão e violações de Direitos Humanos. O informe apontou ainda que o Poder Judiciário do Pará atua facilitando a impunidade e a continuidade do crime organizado no estado, como a suspensão do processo judicial contra um dos envolvidos no homicídio da liderança Expedito Ribeiro de Souza, assassinado na cidade de Rio Maria, em 1991 (CIDH, 1997).

Em 2001, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados visitou o Estado do Pará, com o objetivo de conhecer a situação atual de violência na região e “propor medidas para coibir os crimes contra a vida e outros delitos graves, principalmente os praticados pelo chamado ‘crime organizado’ e os que atingem grupos sociais e suas lideranças” (BRASIL, Câmara dos Deputados, 2001). A comissão apontou a existência da lista de “marcados para morrer”28 que circulava no estado, acompanhada de uma tabela de preços das execuções, diferenciando os valores

27 É notória a fotografia dos caixões que levavam os corpos dos trabalhadores assassinados sobre a carreta de um caminhão na estrada e cobertos por bandeiras do MST, tirada por Sebastião Salgado e publicada no livro Terra (SALGADO, 1997). Organizações de Direitos Humanos e movimentos sociais denunciaram o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 5 de setembro de 1996, pela demora injustificada no andamento dos procesos judiciais que apuravam os responsáveis pelos homicidios. A CIDH acolheu a denúncia em relatório de admissibilidade publicado em 20 de fevereiro de 2003 (CIDH, 2003).

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de acordo com a posição social do ameaçado. Na ocasião, a comissão teve acesso a uma lista com 24 nomes29.

Como resultado da visita, o relatório da comissão indicou como recomendações a realização de força-tarefa entre as polícias Civil e Federal e Ministério Público para “combater a impunidade, desmantelar a rede criminosa no Sudeste e Sul, inclusive reprimindo as milícias particulares baseadas em fazendas da região” (BRASIL, Câmara dos Deputados, 2001); a investigação pela Polícia Federal “das empresas de segurança que atuam irregularmente na região sul do Pará, contribuindo para acirrar a violência”30, “o andamento mais célere dos processos contra acusados de assassinatos, ameaças de morte e agressões a trabalhadores rurais”31 pelo Tribunal de Justiça do Pará, o cumprimento, “em prazo razoável, os diversos mandados de prisão referentes a crimes cometidos contra trabalhadores rurais”32, a revisão dos “critérios para a emissão, por juízes, de medidas liminares determinando desocupações forçadas”33.

A ausência de resposta efetiva e célere do Ministério Público e Poder Judiciário sobre os homicídios de trabalhadores rurais e lideranças da luta pela terra no Pará, apontada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, também foi observada pelo então relator especial sobre a Independência dos Magistrados e Advogados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, Leandro Despouy, em relatório apresentado após sua visita ao Brasil, em 2004:

No Estado do Pará a situação é ainda mais grave, com um altíssimo índice de violência e notória impunidade. Nos 1.207 casos de trabalhadores rurais assassinados entre 1985 e março de 2001, somente 85 pessoas envolvidas tiveram sentença definitiva, o que deixa uma média de 95% sem resposta judicial. No sul e no sudeste do Pará, no mesmo período, foram assassinados 340 trabalhadores rurais. Do total desses crimes, somente dois foram julgados de maneira definitiva, ou seja, uma média de 99,4% do total dos assassinatos sem nenhum tipo de resposta judicial, seja de condenação, seja de absolvição, no âmbito penal. A impunidade desses crimes é incontestável. (ONU, 2004)

Em decorrência do número de assassinatos de lideranças e defensores de Direitos Humanos no Brasil, em especial das lideranças da luta pela terra e reforma agrária, e por reivindicação da sociedade civil organizada (GAIO, et al., 2005), o então secretário especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, instituiu, em maio de 2003,

29 O nome de Maria Joel da Costa já constava nessa lista (BRASIL, 2001). 30 Ibid.

31 Ibid. 32 Ibid. 33 Ibid.

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grupo de trabalho composto de representantes da sociedade civil organizada e órgãos do Poder Executivo, para definir as diretrizes para a construção de uma política pública permanente para a proteção dos defensores de Direitos Humanos (BRASIL, Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2003). Como resultado, foram apresentadas, em julho de 2004, em reunião ordinária do então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana34, as diretrizes do Programa Nacional de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos e instituída a coordenação nacional do programa, vinculada ao conselho, com principal tarefa de elaborar o marco metodológico do programa e implementar os programas nos estados do Pará, Espírito Santo e Pernambuco (BRASIL, Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007).

O programa foi lançado no Estado do Pará em fevereiro de 2005, e, na ocasião, diversas lideranças denunciaram ameaças de morte e perseguições. Dorothy Stang expôs publicamente as ameaças sofridas por ela e outros trabalhadores rurais, feitas pelos fazendeiros da região. Cerca de uma semana após o evento, em 12 de fevereiro de 2005, Dorothy foi assassinada (GAIO, et al., 2005; JUSTIÇA GLOBAL, TERRA DE DIREITOS, 2010).35

Entre 1990 a 200536, foram assassinadas as seguintes lideranças no Estado do Pará37:

34 O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana foi transformado em Conselho Nacional de Direitos Humanos pela Lei nº 12.986, de 2014.

35 Em decorrência do homicídio de Dorothy Stang, o procurador-geral da República, pela primeira vez desde sua criação, prevista pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, ajuizou, em março de 2005, Incidente de Deslocamento de Competência ao Superior Tribunal de Justiça, requerendo que as investigações e processamento dos responsáveis fossem deslocados para a esfera federal do Poder Judiciário. O STJ indeferiu o pedido sob o argumento de que, no caso em questão, não estavam presentes os requisitos previstos, na emenda constitucional, que autorizam o deslocamento (BRASIL, 2005). 36 Nos anos 2000, intensificou-se o processo de criminalização de movimentos de luta pela terra e suas lideranças no Brasil, paralelamente ao homicídio de lideranças. A Medida Provisória nº 2109-52, de 2001, editada pelo governo FHC, formalizou em termos normativos esse proceso, ao prever, em seu art. 4º, parágrafo sexto, que “o imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações”. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, conhecida como CMPI da Terra, criada como espaço político- parlamentar de ofensiva contra os movimentos pela reforma agrária, publicou relatório propondo recomendações expressas de criminalização do MST e projetos de lei que tipificam o “esbulho possessória com fins políticos” como crime hediondo e, como ato terrorista, a invasão de “propriedade alheia com o fim de pressionar o governo” (BRASIL, 2005). Sobre o tema, Anderson Antônio da Silva (2005) relaciona as ocupações de terras entre 2000 e 2005 — fenômeno que chama de espacialização da luta pela terra — com a criminalização dos movimentos sociais, e Fernanda Vieira (2006) estuda a criminalização do MST como faceta do Estado penal.

37 Em anos anteriores, outras lideranças dos movimentos pela reforma agrária e luta pela terra no Estado do Pará foram assassinadas, como o advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Gabriel Sales Pimenta, em 1982, em Marabá, e a religiosa da Congregação Filha do Amor Divino, Adelaide Molinari,

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Quadro 8: Lideranças assassinadas no Pará entre 1990 e 2005.

Nome Ano Movimento Cidade

Expedito Ribeiro de Souza 1991 MST Rio Maria

Arnaldo Delcídio 1993 STR Eldorado dos

Carajás Onalício Araújo Barros

(Fusquinha)

1998 MST Paraupebas

Valetin Serra (Doutor) 1998 MST Paraupebas

Euclides Francisco de Paulo 1999 STR Paraupebas

José Dutra da Costa (Dezinho) 2000 STR Rondon do

Pará Ademir Alfeu Federicci (Dema) 2001 Movimento pelo

Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu

Altamira

José Pinheiro Lima (Dedé)38 2001 STR Marabá

Gilson de Souza Lima 2001 MST Marabá

Bartolomeu Morais da Silva (Brasília)

2002 STR Altamira

em 1983, em Eldorado dos Carajás. Na segunda década dos anos 2000, lideranças continuaram sendo mortas no estado, como o casal de extrativistas e ambientalistas, José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, em Nova Ipixuna, no ano de 2011. Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, foi incluída no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, em 2013, em função das ameaçadas recebidas por sua atuação em busca de justiça pelas mortes de seus familiares. Mas o período compreendido entre 1990 e 2005 foi particularmente marcado pelo homicídio de importantes lideranças da luta pela terra na região.

38 Foram assassinados também sua esposa, Cleonice Campos Lima, e filho, Samuel Campos Lima, de 15 anos.

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Ivo Laurindo do Carmo 2002 MST Irituia

Ribamar Francisco dos Santos 2004 STR Rondon do Pará

Pedro Laurindo da Silva 2005 STR Marabá

Dorothy Stang 2005 Missionária da Igreja

Católica

Anapu

Daniel Soares Costa Filho 2005 STR Paraupebas

Fonte: Quadro elaborado pela autora com base na publicação Conflito no Campo, da CPT, dos anos de 1990 a 2006.