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CAPÍTULO I – O CAMINHO DA PESQUISA

1.5 Delineando o estudo de caso

1.5.2 As entrevistas

As entrevistas são, entre as fontes de informação, as mais importantes para o estudo de caso (YIN, 2005, p.116). Poupart (2008) justifica o uso da entrevista de tipo qualitativo, recorrendo a argumentos de ordem epistemológica, ético-política e metodológica. As entrevistas do tipo qualitativo seriam necessárias, pois uma

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exploração em profundidade da perspectiva dos atores sociais é considerada indispensável para uma exata apreensão e compreensão das condutas sociais.

As condutas sociais não podem ser compreendidas ou explicadas fora da perspectiva dos atores sociais e, por isso, as entrevistas seriam indispensáveis, não somente como método para apreender a experiência dos outros, mas igualmente como instrumento que permite esclarecer suas condutas, na medida em que estas só podem ser interpretadas considerando-se a própria perspectiva dos atores, ou seja, o sentido que eles mesmos conferem às suas ações (POUPART, 2008, p. 217).

Ao argumento de cunho epistemológico, soma-se o de natureza ética e política: como a entrevista permite explorar em profundidade a condição de vida dos atores, ela é vista como um instrumento privilegiado para denunciar os preconceitos sociais, práticas discriminatórias ou de exclusão (POUPART, 2008, p. 220).

Somam-se aos argumentos anteriores as justificativas de ordem metodológica: as entrevistas representam uma ferramenta de informação sobre as entidades sociais e um instrumento privilegiado de exploração do vivido dos atores sociais. Constituem-se meio eficaz para apreender as estruturas e o funcionamento de um grupo ou instituição e, paralelamente à análise documental, o entrevistado pode informar sobre suas próprias práticas, mas também sobre os diversos componentes de sua sociedade (POUPART, 2008, p, 222)16. De forma complementar, a entrevista permite expor de forma mais ampla o ponto de vista dos atores, especialmente a entrevista não-dirigida, por se basear adequadamente na realidade do entrevistado, que é capaz de expressar temas da pesquisa, segundo suas próprias categorias e linguagem (POUPART, 2008, p. 224).

Tendo em vista a importância das entrevistas como fonte de evidências para a estratégia do estudo de caso, o que se buscaria e o que seria possível dizer e fazer com o material obtido para a tese? As entrevistas permitiriam à pesquisadora explorar as perspectivas de diversos sujeitos que são parte e constroem a relação Poder Executivo- Sistema de Justiça no que diz respeito a graves violações de Direitos Humanos, verificar

16 Poupart aponta as diversas concepções do entrevistado como “informante”: i) a concepção positivista na qual o entrevistado-informante seria semelhante a câmeras que permitem reconstituir a realidade pelo cruzamento dos ângulos de vista, daí a necessidade de se tomar precauções técnicas, como a seleção criteriosa do informante; ii) a concepção construtivista, na qual o entrevistado age como intérprete, apresentando diferentes reconstruções parciais e paralelas da realidade, sendo que o pesquisador também realiza a sua própria reconstrução da maneira pela qual o entrevistado reconstrói a realidade; iii) a concepção pós-estruturalista, na qual o entrevistado e o pesquisador são vistos como “novidadeiros” que, dando às informações a aparência de um relato realista, criariam e moldariam a realidade (POUPART, 2008, p. 223).

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como essa relação é estabelecida, por que se estabelece da forma verificada e esclarecer as condutas desses sujeitos.

Normas, planos, programas e processos registrados documentalmente não seriam suficientes para informar sobre a singularidade da relação entre instituições, que se dá também na perspectiva dos sujeitos que as integram. De que forma e quais práticas dos sujeitos no âmbito das instituições contribuem (ou desconstroem e reconstroem a relação) para a relação entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça são questões relevantes que já justificariam a realização de entrevistas.

Uma forte justificativa ético-política para a realização das entrevistas surgiu ao longo da pesquisa: o golpe de Estado em curso no Brasil, cujo processo formal de impeachment da presidenta Dilma Rousseff iniciou-se em dezembro de 2015, culminando com o seu afastamento definitivo, em 30 de agosto de 201617. Realizar entrevistas com atores do Poder Executivo nesse período poderia trazer para a pesquisa aspectos da relação entre Poder Executivo e Sistema de Justiça em cenário não previsto pela autora quando da elaboração do projeto de pesquisa (a questão do Golpe de Estado e as interferências na pesquisa serão exploradas na seção seguinte).

Como a pesquisa tem por objetivo verificar como se dá a relação entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça para resolução de casos de graves violações de Direitos Humanos, na perspectiva do Poder Executivo, os sujeitos entrevistados integram órgãos e estruturas responsáveis por executar as ações relacionadas ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, e também especificamente em relação ao caso Maria Joel da Costa, e por coordenar as ações para o cumprimento de recomendações e decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, com ênfase no caso Sétimo Garibaldi versus Brasil. Também foram entrevistados atores que integram organizações de Direitos Humanos e realizam litigância estratégica em relação aos casos selecionados, para, prioritariamente, se obter informações e percepções sobre o andamento das denúncias junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. No total, foram realizadas 17 entrevistas.

Optei pela realização de uma entrevista com roteiro semiestruturado, para se explorar com certa profundidade as diversas facetas da experiência do entrevistado,

17 As datas indicam o início e fim do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff no Congresso Nacional, apenas como uma observação temporal, sem considerar as etapas antecedentes e as consequências do golpe.

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permitindo que expresse o que é verdadeiramente importante em sua perspectiva e possibilitando um certo grau de saturação dos temas abordados pela pesquisadora (POUPART, 2008, p. 225). O roteiro foi elaborado em torno de questões centrais que se repetiram em todas as entrevistas, para levantamento de dados dos grupos I e II, considerando a vinculação do entrevistado (se ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ou ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Foram elas: i) aspectos do funcionamento do PPDDH; ii) atribuições de órgãos do Poder Executivo frente ao SIDH e aspectos de sua atuação; iii) percepções gerais sobre a relação do Poder Executivo com o Poder Judiciário e iv) percepções gerais sobre a relação do Poder Executivo com o Ministério Público.

A partir das questões centrais, desdobraram-se perguntas específicas sobre os casos em estudo, para levantamento de informações e posicionamentos sobre a atuação do Poder Executivo frente ao Sistema de Justiça e suas respostas diante das provocações dos órgãos do Executivo. Os dados obtidos pelas entrevistas, então, referem-se aos dois grupos de dados mencionados anteriormente e relativos à relação entre Poder Executivo e Sistema de Justiça quanto à promoção e defesa dos Direitos Humanos e, especificamente, referentes aos casos Sétimo Garibaldi versus Brasil e Maria Joel da Costa.

Com a elaboração dos questionários e a seleção dos sujeitos a serem entrevistados, vi-me mais uma vez frente à questão de minha implicação nos casos, políticas e ações em estudo. Minha atuação como advogada e gestora de políticas públicas permitiu que eu estabelecesse relações profissionais e algumas de natureza pessoal com os sujeitos entrevistados. Se a entrevista tem por objetivo apreender a experiência e ponto de vista do entrevistado, como fazer com que atinja os objetivos da pesquisa sem falsear a natureza das narrativas coletadas, considerando a minha realidade? Como questiona Poupart (2008, p. 234), se a entrevista constitui uma forma de interação social ultrapassando o âmbito estrito de trocas verbais, como impedir — se for possível impedir — que esta forma de interação não acabe contaminando os dados produzidos?

É a questão relativa aos vieses capazes de perverter a entrevista que trouxe preocupações à pesquisadora, especificamente quanto à relação entrevistadora- entrevistado e referentes ao contexto da pesquisa em si. As intervenções, atitudes e características do entrevistador são capazes de marcar a fala do entrevistado, e, da mesma forma, a percepção que o entrevistador tem da posição social do entrevistado

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pode igualmente influenciar suas réplicas e a natureza de suas interpretações. O discurso do entrevistado pode ser influenciado não somente pela representação que ele constrói do entrevistador, mas também pelo que ele busca saber (POUPART, 2008, p. 237).

Poupart (2008) apresenta argumentos quanto à impossibilidade de eliminação de vieses, tanto em situações de padronização das condições da pesquisa (entrevistas realizadas em local idêntico, com mesma técnica de registro de dados, padronização das intervenções do entrevistador, por exemplo) como em entrevistas não-diretivas, sem qualquer pré-estruturação do discurso do entrevistado. Em lugar de buscar eliminar os efeitos do contexto, o autor sugere que o pesquisador se empenhe em evidenciar e compreender a maneira como o contexto impregna os discursos e os diversos componentes capazes de atuar em sua construção social (POUPART, 2008, p. 244). A proposta, então, é não tentar suprimir as condições de produção do discurso, mas sim tomá-los em consideração no procedimento da pesquisa e na análise dos dados.

Os discursos produzidos pelas entrevistas devem ser analisados tanto à luz dos enfoques dados pelos entrevistados quanto à luz do enfoque dado pela própria pesquisa. Numa perspectiva autocrítica, procurei mostrar mais transparência quanto às influências que sofri no desenvolvimento da pesquisa, observando que é impossível excluir todo o elemento de subjetividade de minha parte para chegar a um conhecimento objetivo da realidade. Toda subjetividade pode ser compreendida como um obstáculo, mas também como uma contribuição à objetivação dos fenômenos e à pesquisa em si.