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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

2.2 A INFÂNCIA: UMA COMPREENSÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA

Observamos que, na história da filosofia, a criança não tinha um lugar. Embora traga aqui uma discussão do pensamento platônico sobre criança, é importante lembrar que Platão não escreveu uma obra específica para as crianças ou para a sua educação. Infância, criança não eram temas de discussão desse filósofo. Em vários de seus diálogos, vimos discussões sobre justiça, amor, conhecimento, dever etc. As poucas referências em relação à infância ou à educação estavam relacionadas com o projeto da cidade idealizada – a polis.

Na obra A República, Platão (428/27–347 a.C.), em diálogo com Sócrates, Glauco, Polemarco, Adimanto etc., não discute especificamente a respeito de criança / infância. Fala sobre a construção de uma cidade. Nessa obra é manifestada uma preocupação com a constituição da Polis, como se construiria essa cidade idealizada por Sócrates. O que se discute é o conceito de justiça. O que era justiça, qual a sua essência? O que era ser injusto ou

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Esta natureza infantil não é compreendida pela visão naturalista ou romântica de criança, em que a pré-escola é um jardim, as crianças são as flores ou sementes, e a professora é a jardineira (KRAMER, 1998).

justo? Nessa discussão, eles começam a ponderar como seria uma cidade com governantes justos. Para pensar em uma cidade justa, uma polis com guardião justo, era preciso pensar a educação das crianças. Não era uma preocupação com a criança em si, com as características próprias de infância, mas uma preocupação política, isto é, com o cidadão que governaria a cidade. Quando procuramos a criança nesses estudos, a encontramos como uma preparação para atuar na polis, na cidade. Como se daria a formação dos guardiões dessa cidade? Esse era o questionamento de Sócrates a Glauco. O que seria necessário para educar essas crianças de modo que elas se tornassem bons guardiões da Polis? Como estaria sendo “moldada” a natureza da criança para esse projeto político?

Esses questionamentos possibilitariam traçar um currículo para a educação das crianças, pois, segundo Platão (2005), Sócrates afirmava que, se quisesse ser “um perfeito guardião da cidade”, teria que ser “por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte” (p. 55).

Notamos, assim, que pensar o cuidado e a educação para com a criança era pensar no guardião para a polis. A visão platônica de infância e de educação tinha uma intencionalidade política. Se nos nossos dias vemos ainda a criança como aquele futuro cidadão, aquele que precisa de formação para se tornar o cidadão de amanhã, para melhorar a sociedade, entre os filósofos daquela época, pensava-se na educação da criança também como uma preparação para atuar na sociedade. Assim argumentava Sócrates: “Mas de que maneira é que se hão de criar e educar estes homens? E, porventura, avançaremos, se examinarmos a questão, na descoberta do motivo de todas as nossas indagações14 – a maneira como a justiça e a injustiça se originam na cidade? [...] Que educação há de ser?” (PLATÃO, 2005, p. 55).

Sócrates propõe que a educação para as crianças seja uma educação semelhante à educação grega, em que a música é para a alma o que a ginástica é para o corpo. A partir da música seriam incluídas as literaturas, porém não era qualquer mito que se deveria contar às crianças. Segundo Sócrates, a criança não poderia ouvir qualquer espécie de fábula, pois as marcas que a criança recebe nesse período, na mais tenra idade, são imodificáveis e incorrigíveis. Assim, não se deve contar

14 Essas indagações eram sobre a justiça. Como se daria essa cidade justa que eles almejavam (observações nossas).

que os deuses lutam com os deuses, que conspiram e combatem – pois nada disso é verdade -, se queremos que os futuros guardiões da nossa cidade considerem uma grande vileza o odiarem-se uns aos outros por pouca coisa. Não se deve contar lutas de gigantes e outras inimizades múltiplas e variadas de deuses e heróis [...] que Hera foi algemada pelo filho, e Hefestos projetado a distancia pelo pai, quando queria acudir à mãe, a quem aquele estava a bater, e que houve combates de deuses, [...] É que quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que o não é. Mas a doutrina que aprendeu em tal idade costuma ser indelével e inalterável. Por causa disso, talvez, é que devemos procurar acima de tudo que as primeiras histórias que ouvirem sejam compostas com a maior nobreza possível, orientadas no sentido da virtude (PLATÃO, 2005, p. 57).

Era preciso haver uma seleção dos melhores textos e influenciar mães e amas a contá- los às crianças e, dessa maneira, moldar as suas almas por meio das fábulas e dos mitos, pois era necessário ter mais cuidado com a alma do que com os corpos.

Dizia ainda Sócrates: “Haveremos de consentir sem mais que as crianças escutem fábulas fabricadas ao acaso por quem calhar, e recolham na sua alma opiniões na sua maior parte contrárias as que, quando crescerem, entendam que deverão ter?” (idem, 2005, p.56).

Por esses argumentos apresentados por Sócrates e seus interlocutores em A República, vemos que a inquietação em relação à educação das crianças não era pelas crianças em si, pelo que elas eram, mas pelo que poderiam vir-a-ser. Para tanto, fazia-se necessário moldar a natureza da criança, tornando-a “boa”. A educação tinha o papel de corrigir, melhorar uma má natureza, adequando-a para uma cidade justa.

Kohan, em seu artigo intitulado Infância e Educação em Platão, discute a criança numa perspectiva platônica e argumenta que, para Platão,

as crianças são seres impetuosos, incapazes de ficarem quietas com o corpo e com a voz, sempre pulando, gritando na desordem, sem o ritmo e a harmonia próprios do homem adulto [...] As crianças, sem seus preceptores, são como os escravos sem seus donos, um rebanho que não pode subsistir sem seus pastores. Não devem ser deixadas livres até que seja cultivado “o que neles tem de melhor” (PLATÃO apud KOHAN 2003, p. 07).

A percepção de infância, de fato, não havia nesse período da história. Os escritos de Platão deixam clara a inexistência dessa fase da vida do ser humano. Não é de se estranhar que, ainda hoje, as crianças sejam tratadas com tamanha indiferença. Trata-se de uma construção histórica. A criança não era nada, mas poderia ser um grande “cidadão”. A preocupação com a formação moral, a bondade e a justiça era em razão da cidade idealizada.

Hoje muitas pessoas em nossa sociedade veem que educar as crianças pequenas é promover transformações sociais e salvação de uma sociedade degradada.

O filósofo que escolhemos para representar a Idade Média é Aurelius Augustinus ou Santo Agostinho (354 - 430 d.C.), por ser o primeiro filósofo-teólogo do período medieval, além de ser de origem platônica. Os filósofos-teólogos desejavam encontrar uma doutrina que conciliasse religião e racionalidade, verdade revelada e conhecimento adquirido. Nessa visão, Agostinho criou a Teoria da Iluminação Divina, segundo a qual, a inteligência humana não pode funcionar senão pela ação iluminadora e imediata de Deus e não pode encontrar a certeza do seu conhecimento fora das regras eternas e imutáveis da ciência divina. Nessa perspectiva, as ideias são os pensamentos de Deus. A Doutrina da Reminiscência15 de Platão passa a ser para Agostinho a Teoria da Iluminação Divina por meio da qual ele questiona a mente humana, indagando como pode a mente mutável e falível atingir uma verdade eterna com certeza infalível sem uma iluminação divina.

E a criança para esse filósofo? Para Santo Agostinho16, a criança apresenta uma natureza corrompida, e a educação tem a obrigação de discipliná-la. O homem, desde a infância, possui inclinação para o mal, mas com um esforço consciente teria possibilidade de se livrar do pecado original. O decisivo na formação da criança é, portanto, a consciência moral, pois ela já se encontra corrompida desde o nascimento. Segundo essa perspectiva, por não falar, isto é, não possuir linguagem, a criança é desprovida de razão, ao contrário dos adultos, que possuem o reflexo da condição divina.

Assim, o objetivo maior da educação para Santo Agostinho é a salvação da alma. Todas as áreas do conhecimento, isto é, as matérias, tais como: literatura, retórica, lógica, aritmética e os exercícios físicos deveriam ser vistos como um meio, cuja finalidade seria o aprimoramento da cultura religiosa e, para alcançá-la, o educador deveria utilizar todos os recursos que lhe fossem disponíveis, até mesmo os castigos físicos, contanto que moldassem a natureza pecaminosa da criança. É uma educação voltada para o disciplinamento, para o desvio do mal.

15 É também denominada de Anamnese (recordação) – imortalidade da alma – conhecer seria recordar. Começa aqui a concepção inatista do conhecimento. O conhecimento inato serve de ponto de partida para todo o processo de conhecimento.

16 Estudo feito em diversos livros de história da filosofia tais como: MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997; PENHA, João da. Períodos filosóficos. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998; ROSSI, Roberto. Introdução à Filosofia: história e sistemas. Tradução Aldo Vannuchi. São Paulo Edições Loyola, 1996.

Ainda falando da criança do período medieval, o historiador francês Philippe Ariès (1981, p. 30-40) fez um retrato da infância, por meio de exames de pinturas, antigos diários de famílias, testamentos, igrejas e túmulos a fim de mostrar a evolução e as mudanças de atitudes, ao longo dos séculos, em relação à criança e à família. Ele relata a transformação dos sentimentos da infância (consciência da particularidade infantil) em concomitância com as transformações que vão se operando no entendimento de família, sobretudo a partir da modernidade.

Segundo esse autor, no período medieval, não havia um sentimento de infância. Acriança era caracterizada como homens ou mulheres em tamanho reduzido, os corpos eram pequenos, porém as expressões e as vestes eram de adulto. “A criança não despertava nenhum interesse, pois esse período era logo ultrapassado e a lembrança era logo perdida” (idem, 1981, p. 52).

A criança era vista como engraçadinha, como um bichinho de estimação que divertia os adultos. Se, por um lado, era paparicada como se fosse uma coisinha engraçada, por outro, havia uma preocupação com a disciplina e moralização como vimos na percepção de Agostinho. Segundo Ariès, só se começa a introduzir a criança na pintura, a partir da representação do menino Jesus (infância religiosa).

No final da Idade Média começa a se perceber a importância da escola para “disciplinar” o infante, mas ainda havia uma distinção entre as classes e entre homem e mulher. Mesmo havendo essa preocupação com a escolarização, as crianças continuavam a entrar no mundo dos adultos muito cedo, pois a fase de dependência precisava ser logo ultrapassada, para que elas se tornassem produtivas e úteis na sua comunidade.

A mudança da sociedade feudal para a urbano-industrial, as grandes revoluções daquele momento histórico, a nova concepção de homem (humanismo) e de mundo, características estas que marcam a Renascença – século XV –, fizeram surgir também uma nova era na história da educação, da família e também da infância. A sociedade burguesa começou a perceber que a criança é “alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para o futuro” (KRAMER, 2006, p. 19).

Assim, observamos que a compreensão de infância vai se modificando de acordo com o momento histórico e contexto, cujos filósofos e teóricos, preocupados com a situação da criança, questionam sobre a importância dessa fase da vida do ser humano. Com o projeto iluminista, especialmente a partir da obra Emílio ou Da Educação, inaugura-se uma nova

história da infância e da educação. Rousseau introduziu a concepção de que a criança é um ser com características próprias e distintas dos adultos e que precisa ser respeitada.

Teceremos uma discussão sobre a compreensão de infância à luz dos ideais de Rousseau, que, no século XVIII, possibilitou a descoberta do sentimento de infância, relacionando-os com a obra O Pequeno Príncipe de Saint- Exupéry e algumas das obras (Literaturas Infantil) de Monteiro Lobato, as quais deram suporte para uma nova compreensão de infância.

2.3 A COMPREENSÃO DA INFÂNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE O PEQUENO