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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

3.2 O CURRÍCULO SEGUNDO A COMPLEXIDADE E A

A reflexão de currículo à luz da epistemologia da complexidade e da multirreferencialidade e a interconexão dessas abordagens trazem a possibilidade de construir um currículo escolar voltado para a complexidade, que esteja em permanente processo de construção e reconstrução da realidade, do saber e, que, ao se construir, constrói o outro; que esteja em permanente processo de criação e recriação do conhecimento. É nessa visão da diversidade na unidade, e vice-versa, dos olhares e leituras diferenciados que se constrói um pensamento complexo, articulando os múltiplos saberes da humanidade, as diversas áreas do conhecimento numa postura multirreferencial da realidade e dos fenômenos educativos.

Mas qual o significado de multirreferencialidade e complexidade e qual sua relação com currículo, especialmente o currículo da educação infantil?

A complexidade e a multirreferencialidade são conceitos forjados pelos filósofos franceses e educadores da Universidade de Paris VIII, Morin e Ardoino, respectivamente, os quais discutem concepções de homem, mundo, sociedade, educação, conhecimento, rompendo com o modelo cartesiano e positivista de ver a realidade e resolver os problemas humanos mecanicamente, fragmentando os saberes e o próprio homem. Morin e Ardoino discutem e questionam o racionalismo cartesiano, insuficiente, segundo esses autores, para resolver os problemas humanos dos quais participam também as emoções e os sentimentos.

Diante das diversidades contextuais (social, econômica, política, cultural, educacional) e, também, como salienta Morin (1998, p. 13) e de “problemas polidisciplinares, transdisiciplinares, transversais e multidimensionais e globais”, os quais a concepção positivista não dá conta de resolver, Morin cria a teoria da complexidade para explicitar a nova concepção de homem, de mundo e de como agir/viver nesse contexto diverso.

Para Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 45),

complexidade é um tecido de elementos heterogêneos inseparavelmente associados, que apresentam a relação paradoxal entre o uno e o múltiplo. A complexidade é efetivamente a rede de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico. A complexidade apresenta-se, assim, sob o aspecto perturbador da perplexidade, da desordem, da ambigüidade, da incerteza, ou seja, de tudo aquilo que é se encontra no emaranhado inextricável.

De tal modo, a complexidade rompe com tudo que é linear, fragmentado, único, certo, determinado, universal, homogêneo e se embrenha em um universo multidimensional de contradições, incertezas e heterogeneidades. Entretanto a complexidade não é uma panacéia que busca curar todos os males da sociedade e especialmente da educação. Não é uma teoria que pretenda dar conta, explicar e resolver tudo, mas uma atitude desafiadora que cada estudioso, cada educador e cada sujeito deve buscar para sua vida seja profissional ou pessoal, pois a complexidade não é apenas uma concepção teórica, mas uma atitude de vida, de mudança.

Na concepção moriniana, o pensamento complexo objetiva juntar, interligar coisas, pessoas, situações para que, dessa interação, surjam ideias novas. Mas procura fazer isso sem perda da condição de individualidade, de singularidade que cada coisa e situação trazem em si. Ainda se referindo à complexidade, Morin (2006) assegura que

existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo e o metodológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes (p. 14).

Esse filósofo vê o homem e a realidade de maneira não cindida, como foram vistos durante séculos na história da humanidade. A abordagem multirreferencial busca também romper com a visão reducionista de mundo, como salienta Borba (1998, p. 13), “um hino ao esforço de liberação humana”. Ardoino e Morin discutem conjuntamente as teorias da multirreferencialidade e da complexidade, aqui separadas por conta de uma organização didática, pois essas duas concepções estão intimamente imbricadas. Elas não estão na lógica do “ou/ou”, pois, quando agimos segundo essa lógica, deixamos uma de lado e privilegiamos outra, ficando explícita a opção de uma como verdadeira, ou melhor, e a outra como não verdadeira ou o pior. Essa lógica do pensamento linear exclui a complexidade e a multirreferencialidade, e estas estão na lógica do “e/e”, isto é, na lógica do complexo, que prima pela unidade na diversidade e vice-versa, a ordem dentro da desordem, a certeza dentro da incerteza.

Segundo Ardoino (1998, p. 24), “a multirreferencialidade propõe-se a uma leitura plural de seus objetos (práticos ou teóricos), sob diferentes pontos de vista” Nessa perspectiva, na nossa vida cotidiana, estamos habituados a uma linguagem única, a uma única explicação para determinadas situações, objetos, fenômenos. Porém se desejamos ter uma

postura multirreferencial, faz-se necessário um olhar multirreferencial. A existência humana é formada de contradições. A psicanálise fala de sentimentos ambivalentes que muitas vezes nutrimos por outras pessoas ou fenômenos. Somos sujeitos ambivalentes, somos sujeitos da contradição. Na nossa história de vida, manifestamos muitas vezes sentimentos contraditórios: confiamos e desconfiamos, acreditamos e desacreditamos, amamos e odiamos ao mesmo tempo. Essas contradições nos remetem a uma visão e postura multirreferencial, pois ela vai se “preocupar em tornar mais legíveis a partir de certa qualidade de leituras (plurais), tais fenômenos complexos (processos, situações, práticas sociais etc.)” (ARDOINO, 1998, p. 37).

Vivemos em um mundo marcado por profundas mudanças, um mundo em que tudo que surge, como certas teorias e concepções, acaba virando modismo e é, muitas vezes, reduzido a métodos e utilizado como fórmula ou procedimento para resolver algum problema, como foi o caso da teoria da epistemologia genética de Jean Piaget, que muitos deturparam e passaram a adotar como um “método de ensino”. Falava-se e utilizava-se, em sala de aula, o “método de Piaget”, sem que esse biólogo e psicólogo tivesse criado qualquer método de ensino. Outros se diziam construtivistas apenas por deixarem as crianças sozinhas, muitas vezes, sem nenhum acompanhamento. Essa era a visão de “construção do conhecimento”, a de que não se deveria interferir para que as crianças pudessem “criar” sozinhas. E assim deturpa-se a concepção construtivista de educação. É preciso ter certa cautela para não colocar tais concepções (complexidade e multirreferencialidade) no mesmo bojo, restringindo-as a mais um método de trabalho ou de ensino.

Deparamo-nos com situações na educação em que, mais do que nunca, é necessário repensar as posturas de muitos profissionais, pois alguns (no século XXI!) ainda acreditam que devem continuar educando como foram educados. Muitos dizem que “antigamente era que a educação era boa, pois os alunos aprendiam. Hoje os alunos não sabem nada, não se cobra do aluno como antigamente”. Esse saudosismo daquele tipo de educação está muito relacionado com uma aprendizagem cognitiva e nos faz pensar em uma educação, como diz Paulo Freire, bancária, em que o aluno ouve passivamente o que o professor diz.

Diante de toda essa discussão, Burnham (1988, p. 53-54) faz também uma crítica ao currículo instituído ao dizer que

O currículo escolar, que sempre foi caracterizado por relações autoritárias, pelo aparente privilégio da razão e pela função de transmitir conhecimento, mais recentemente tem perdido essas suas características e se limitado a um mero espaço/tempo em que sujeitos se isolam durante um período de seus dias, sem clareza do que vão fazer. A imaginação, a exploração de si mesmo e do mundo para a reinvenção não tem lugar no currículo. Parece mesmo que o currículo se transforma num lócus de obstáculos para a imaginação, à vontade e a reflexividade; a atividade própria do sujeito, elemento fundamental para o estabelecimento de uma rede de relações sociais (de aprender, de criar, de construir) entre os sujeitos que habitam esse lócus, é tão ignorada quanto o seu desejo, o seu pensar, e o seu agir.

Pensar a complexidade e a multirreferencialidade na educação atual é mais do que necessário, é imprescindível, pois a educação em que o aluno trata igual ou simplesmente exclua o que é diferente é uma educação que mutila, que segrega, porquanto não existe homogeneidade no mundo e muito menos na sala de aula. Pensar alunos todos iguaizinhos, aprendendo todos ao mesmo tempo e no mesmo ritmo não é pensar no ser humano, e sim em máquinas. A riqueza da humanidade consiste na heterogeneidade, e o profissional precisa aprender a pensar complexa e multirreferencialmente para poder contribuir com os seus alunos e para que esses possam também aprender a articular, religar, contextualizar o conhecimento, pois “se o conhecimento estiver isolado deixa de ser pertinente” (MORIN, 1998, p. 21).

É diante da perspectiva da complexidade e da multirreferencialidade que precisamos compreender o currículo e, para isso, Macedo (2005, p. 24) argumenta que “o pensamento complexo e multirreferencial aparece como mobilizador contemporâneo potente de uma outra visão, de uma outra prática no campo das concepções e implementações curriculares”.

O currículo, segundo esse ponto de vista, prima pelo intercâmbio com outros setores da educação, contribuindo, dessa maneira, para a superação de barreiras (problemas de cunho ético, social, político, econômico etc.) e para a construção de saberes, conhecimento, práticas e experiências complexas e multirreferenciais.

As questões curriculares estão presentes na nossa prática e interferem diretamente na construção do conhecimento e saberes das crianças/alunos, pois a compreensão do mundo circundante leva a apreensões e articulações mediante o uso de múltiplas referências. Já não dá para nos contentar com a resposta em uma única “língua”. As matrizes de aprendizagem possibilitam que se vinculem os diversos saberes, a realidade e os fenômenos.

Como dissemos anteriormente, assim como o homem possui muitas facetas, o currículo também se constitui na diversidade. A emergência do currículo consiste em construí-lo em uma perspectiva polifônica e “poliglota”, em que as várias vozes e línguas se

entrelacem e promovam o diálogo, desenvolvendo um pensamento complexo e multirreferencial.

Macedo (2005, p. 28) assevera que o currículo, com base nessa visão, “deve ser olhado como um sistema aberto, dialético e dialógico, que retém e que vaza”, devendo “ser pensado como um sistema comunicante”.

Vimos, nas discussões anteriores, o currículo como programa, grade, disciplina, conteúdos, objetivos. Essas discussões foram evoluindo e hoje a concepção de currículo ganha um novo olhar, um novo significado, uma nova compreensão, isto é, “compreendê-lo como um artefato social movimentando-se incessantemente em ressignificações que se afetam mutuamente através de múltiplas mediações” (MACEDO, 2005, p. 48).

A concepção de currículo, segundo a teoria da complexidade e da multirreferencialidade, possibilita pensar o aluno e o professor como articuladores do saber com base no diálogo, no respeito às diferenças e na colaboração. Se no processo educativo não existir contextualização, articulação, não existirá conhecimento significativo.

Segundo Burnham (1998, p. 48), se se quiser compreender o currículo à luz da complexidade, deve-se fugir da visão simplista e procurar elucidar a emaranhada e heterogênea rede de relações que o constituem. Para ela, deve-se considerar

o currículo como um processo não só historicamente construído (instituído) para a socialização, mas que também participa da construção (instituinte) dos sujeitos sociais e que, ainda, contribui para o duplo processo de continuidade/instituição de uma sociedade, isto é, para a manutenção/ (re)cosntrução /criação das relações dos sujeitos sociais, no complexo das relações de um mundo histórico – socialmente construído (instituído) e em permanente processo de (re)construção/criação (instituindo-se através das relações instituintes).

A mesma autora ainda assegura que

Considerar a análise do currículo como um processo de familiarização, de penetração na sua complexidade, requer abertura dos sujeitos que ali interagem, entendendo tal abertura segundo a polissemia que esta complexidade exige: abertura de-si-para-si-mesmo, quer como aluno, como professor ou como sujeito participante da coletividade da escola; e de-si- para-com-o-outro, qualquer que seja o lugar que este outro ocupe nas relações escolares; de-si-e-com-o-outro-para-com-o-mundo múltiplo em que convivemos (idem, p. 43-44).

Sendo o currículo pensado, ouvido e falado segundo essas perspectivas, por que não se pensar também o currículo da educação infantil?

Morin não escreveu especificamente sobre currículo, mas as suas reflexões propõem que se articulem os saberes, ecologizem as disciplinas, as várias áreas de conhecimento. Ao propor essa “reforma no pensamento” ele nos faz refletir sobre o currículo e questionar: por que não um currículo que rompa com uma visão restrita de mundo, de homem, de aluno, que rompa também com as concepções reducionistas? Essa reforma deve-se originar justamente dos docentes, os quais “devem se colocar nos postos mais avançados do perigo que constitui a incerteza permanente do mundo” (MORIN, 1998, p. 25). Nossas “certezas” como educadores, muitas vezes, nos impedem de estar atentos a essa complexidade, de aceitar o olhar e a fala do outro.