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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

4.2 IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

A educação infantil brasileira atravessou diversos momentos: avanços, retrocessos, valorização, desvalorização e momentos de luta, sempre em busca do reconhecimento da criança como um ser com direito à educação. Algumas pessoas reconhecem a importância dessa etapa da educação para o desenvolvimento pleno da criança em todos os aspectos da vida, outras a veem como um meio de salvar a sociedade de problemas futuros e muitas ainda a veem de acordo com seus objetivos e ideais, não pelo que as crianças representam ou pelo seu direito à educação.

Só recentemente, para ser mais precisa, na década de 1990, foi que a educação infantil passou a fazer parte da educação básica e a criança ganhou visibilidade social e política e, como um ser de direito que é, adquiriu o direito à educação, e não a assistência ou a uma educação compensatória/preparatória como já discutimos. A partir dessa década, começou-se a compreender que esta fase (zero a seis, ou cinco) é imprescindível para o desenvolvimento integral da criança, como preconiza a LDB. Assim, a educação infantil passou a ser garantida por lei, e ao Estado coube o dever de oferecê-la a todas as crianças sem distinção de cor, raça ou etnia. Mesmo com essa garantia em lei e mudanças nas concepções de educação infantil, de criança e de infância perpetradas pela sociedade moderna e pós-moderna, muitos discursos educacionais, inclusive de profissionais da área de educação infantil, se equivocam quanto à

concepção e compreensão do valor da educação infantil na promoção do desenvolvimento global e harmonioso da criança. O próprio acontecer no cotidiano das aulas manifesta esse equívoco.

Todas as professoras entrevistadas destacaram a importância da oferta da educação para essa faixa etária, porém nenhuma enfatizou a importância do direito à educação da criança de zero a seis anos40 pelo que ela é em si mesma. Para elas, a educação infantil é a base da formação do indivíduo e de preparação para o futuro, é um meio para formar um “cidadão de bem” para a sociedade, como já previa Platão em seu diálogo A República, como o futuro cidadão para governar a Polis. A professora Regina argumenta que “essa formação é tudo, em comportamento, em limite, em educação mesmo [...] a educação infantil é muito importante porque o que a criança aprende agora vai guardar para toda a vida e nessa fase a criança tem uma assistência41”.

A professora Ivani acredita que os pais colocam os filhos na escola “não é pensando no desenvolvimento da criança, mas porque vão trabalhar e precisam de alguém para tomar conta”. Segundo esta professora, os pais das crianças veem a pré-escola como um espaço de assistência, um lugar onde alguém poderá tomar conta do seu filho com segurança, não dando “o devido valor que a escola tem na vida da criança”. Apesar de pensar dessa forma, quando instada a falar sobre o desenvolvimento, constantemente a professora o relacionava às questões de comportamento e de aprendizagens cognitivas.

Entretanto, se, por um lado, os pais veem a escola como um lugar de cuidado para seus filhos – visão que fundamentou a criação de instituições para o atendimento às crianças pequenas e que perdurou por muito tempo na história da educação infantil, se é que ainda não perdura –, por outro lado, a escola (professores especificamente) vê a educação infantil como um espaço de prontidão, onde a criança deve aprender a escrever, ler, contar, preparar-se para as séries seguintes e tornar-se disciplinada. Vemos, nesse sentido, duas visões distintas, contraditórias e extremas da educação infantil.

Buscando outras perspectivas, houve muita luta em defesa de uma educação infantil em que as duas dimensões, cuidado e educação, não estivessem dissociadas, pois quem cuida educa, e vice versa. Esses aspectos estão intrinsecamente relacionados, pois não é uma educação cognitiva apenas, mas um educar no seu sentido mais amplo.

40 Embora a pré-escola agora se refira ao atendimento as crianças de quatro e cinco anos, com a ampliação do ensino fundamental para nove anos, continuarei me referindo a educação infantil, o atendimento as crianças de até seis anos de idade devido estas continuarem nas instituições de educação infantil em alguns municípios. 41 Grifo nosso

Assim,

educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, ser e estar com outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural (BRASIL, 1998, p. 23).

O cuidado e a educação, o conhecimento e a afetividade, a objetividade e a subjetividade, a “seriedade e o riso precisam estar presentes na educação infantil” (KRAMER, 2008, p. 64). Essas dicotomias existem, porém, quando o profissional aprende a lidar com esses pólos opostos sem fragmentá-los, isto é, sem privilegiar e/ou excluir, dentro de uma visão de inclusão, de conexão, compreendendo a teoria do isso e aquilo e não do ou isso ou aquilo, surge não só uma concepção da epistemologia da complexidade, mas uma ação no fazer pedagógico.

Embora as professoras reconheçam a importância da educação infantil, mesmo que seja na perspectiva do vir-a-ser, usam recorrentemente a expressão “ deixa muito a desejar” nos seus discursos, referindo-se às dificuldades encontradas para desenvolver o trabalho, como, por exemplo, espaço para atender às necessidades das crianças; salas lotadas; falta de material didático e brinquedos; falta de área livre e parquinho para as crianças brincarem.

A professora Fúlvia, inicialmente, constrói o seu discurso em relação à educação infantil de forma muito vaga: “A educação infantil é muito válida, é muito interessante na vida da criança”. Aqui cabe um questionamento: é muito válida para quem? Para a criança ou para o adulto? Pelo comentário a seguir, entendi que seria válida para a formação do futuro adulto, já que é caracterizada como uma preparação para as séries seguintes. Esta professora torna o seu discurso mais consistente ao afirmar que “a educação infantil é a base de tudo; na pré-escola a criança passa por muitos períodos, o pré, a prontidão, muitas fases preparatórias, porque a gente prepara a criança, né?”. Embora existam muitos estudos de teóricos, como Sarmento, Kramer, Arce, Arroyo, Garcia, que discutem a importância da educação infantil pelo que ela é em si mesma, observamos que nos argumentos das professoras subsiste uma preocupação com o ensino fundamental ou então com o que a criança se tornará. Estudos comprovam que a educação infantil é importante para o desenvolvimento da criança em seus mais diversos aspectos e linguagens; não é apenas uma fase preparatória da vida da criança ou um rito de passagem da infância para a vida adulta.

Na discussão desenvolvida no Grupo Focal, a professora Fúlvia traz para o debate a sua visão de educação infantil ao argumentar:

Eu vejo na pré-escola a preocupação do professor, nossa, que é formar a criança, que é a base de tudo. Muitos não sabem nem o que é escola. No Pré I, as crianças chegam sem noção de nada, da palavra. No Pré II, já vai dominando cores, o nome, a escrita, alguma coisa. Tem que passar por todo o processo e dominar o que deveria ser trabalhado no Pré I e ainda no Pré II. Trabalhar tudo, iniciando o que a criança não tem ainda. Se preocupa com o currículo e o que é importante deixa para traz. Tem que trabalhar dentro da necessidade do aluno. A gente não pega a criança pronta, mas quando chega no final (do ano)42 está mais ou menos. (profa. Fúlvia na discussão do Grupo Focal em 01/08/2008,).

É interessante notar que professora se refere à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança pequena como um processo de dominação, isto é, como exercício do poder, do domínio sobre a leitura e a escrita para passar para a série seguinte. A aprendizagem, o conhecimento, não é apenas um processo de domínio, mas, sobretudo, de interação entre o sujeito que aprende e o seu contexto sociocultural. A criança da pré-escola não deve apenas dominar esse ou aquele conteúdo, mas interagir com eles, compreender a relação deles com a sua vida. Só desta maneira haverá uma aprendizagem significativa.

Ao questionar o objetivo da educação infantil, Kramer (1998, p. 49) enfatiza que esta educação deve “propiciar o desenvolvimento infantil, considerando os conhecimentos e valores que as crianças já têm e, progressivamente, garantindo a ampliação dos conhecimentos, de forma a possibilitar a construção de autonomia, cooperação, criticidade, criatividade e responsabilidade”, contribuindo para a formação do sujeito em todos os seus aspectos e não apenas o cognitivo como vimos no discurso da professora.

Na análise da “Proposta Curricular”, da Secretaria Municipal de Educação de Itapetinga – BA, encaminhada para que as escolas de educação infantil, com base nesse documento, elaborem os seus Projetos Político-Pedagógicos, observei que a proposta não apresenta objetivos, justificativa, pressupostos teóricos, metodologia, nem mesmo faz referência aos princípios da educação infantil que constam das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Nenhum documento legal fundamenta essa proposta. Apenas apresenta o que deve ser trabalhado com essa faixa etária, isto é, com as crianças do pré-escolar (4 e 5 anos), pois nem mesmo a creche é contemplada. É um documento em que consta um elenco de conteúdos

ou, como dizem as próprias professoras, um “rol de conteúdos” a ser trabalhado com as crianças, o que demonstra a sua concepção de educação infantil explicitada na proposta da Secretaria Municipal de Educação. Eis um resumo do documento oficial da Secretaria Municipal de Educação:

Língua Portuguesa: narração e dramatização de histórias, desenho livre,

vogais e a apresentação do alfabeto em bastão, etc. Matemática: cores, tamanho, quantidade, numerais (até 10) etc. Ciências: ser humano, seres vivos (animal e vegetal), órgãos dos sentidos, etc. Geografia e História (Ciências Sociais): família, espaço, escola, profissão, meios de transporte, meios de comunicação, datas comemorativas, etc. e Arte: Recorte, confecção de objetos e maquetes, dobraduras, conhecimento e reprodução de danças folclóricas e populares (Proposta Pedagógica da SME).

Em um primeiro momento, achei que não havia nesse documento concepção de infância, criança, educação infantil e currículo. Porém, refiz as minhas reflexões e entendi que não havia reflexão teórica de tais conceitos, mas as concepções achavam-se presentes. Quando se elabora uma proposta para atender a essa etapa da educação básica e se destaca apenas o que deve ser trabalhado, fica explícita a concepção da educação infantil como uma preparação para o ensino fundamental, o currículo como programa, e a criança como um ser desprovido de pensamento, em quem se deve incutir o que é considerado correto pela instituição. Embora exista na proposta um espaço para as expressões dramáticas e musicais, narração, arte e ludicidade, há uma ênfase nas letras do alfabeto e nos numerais e nenhuma reflexão sobre os objetivos da educação infantil, sobre o que é ser criança e sobre a infância.

No PPP da Escola Memórias de Emília, observei uma concepção mais ampla de educação infantil, embora as falas das professoras contradissessem o que está escrito. Nele está explicitada a visão de uma educação que respeita as particularidades infantis, pautada no respeito à diversidade e com o objetivo de promover o desenvolvimento pleno da criança. Assim o documento prevê uma educação infantil sedimentada nos princípios de humanização, solidariedade e respeito às diferenças, quando aborda que:

a educação deve ser vista como uma proposta de humanização crescente pela qual o homem se constrói como pessoa, por isso as instituições educacionais infantis precisam possibilitar o cultivo dos bens culturais e sociais considerando as expectativas e as necessidades dos alunos, pais, membros da comunidade, professores, enfim de todos os envolvidos diretamente no processo educativo (PPP da Escola Memórias de Emília).

Evidencia-se, nesse documento, a visão da educação infantil como a fase mais importante na vida do ser humano, e a criança, como um ser repleto de potencialidades a serem estimuladas pela escola juntamente com a comunidade.

O discurso do PPP da Escola Reinações de Narizinho confirma as falas das professoras, ao argumentar que “a educação infantil, como primeira etapa da educação básica tem como objetivo a construção de uma prática educativa assentada em fundamentos teóricos metodológicos e didáticos, visando um preparo melhor para o ingresso no ensino fundamental”43.

A professora Teresinha, da Escola Memórias de Emília, vê a educação infantil como uma etapa pela qual a criança deve passar, como base da formação. Para ela, é fase em que a criança, tendo uma boa educação, desde o começo, com certeza vai se tornar um adulto melhor:

lá na frente ela não vai ter dificuldade, mas, às vezes, a gente fala assim que a educação infantil objetiva formar a criança em um cidadão crítico. Eu acho que para eles serem críticos não estão maduros o suficiente para ser um cidadão crítico. A gente trabalha de acordo, aí é que a gente vai ver como ele se desenvolve, não posso dizer que agora, por exemplo, terminou o ano e ele é um cidadão crítico (Entrevista feita com a profa. Teresinha em 29/07/2008).

O que é ser um “cidadão crítico”? Hoje, na nossa sociedade, essa expressão se cristalizou de tal forma que acabou se tornando um modismo, vazio de qualquer significado. Muitas pessoas e, até mesmo, discursos oficiais dão ênfase no “formar um cidadão crítico” como um dos objetivos da educação. Por um lado, a professora tem razão, se ela pensa que o cidadão crítico deve ser formado em um momento estanque. A criança não poderá sair no final do ano dizendo “eu sou um cidadão critico”. Por outro lado, é preciso pensar a criticidade como uma construção histórico-social permanente, pois, como sujeitos históricos, estamos constantemente construindo e reconstruindo, analisando, apreciando, valorando, formando opinião, examinando e expondo nossas ideias.

Essa mesma professora discorreu sobre a divisão dos horários na instituição – a hora da brincadeira e a hora do sério –, referindo-se às atividades programadas. Segundo o seu depoimento, ela sempre explica sobre a importância da escola para as crianças: “sempre falo para os pais o que os filhos vão fazer na escola. Eles vão brincar, tem hora de brincar, de estudar e de aprender”. Explicita-se, assim, a divisão do tempo na escola: horário para as

atividades consideradas sérias e horário das brincadeiras, este reservado para a hora do recreio. Nas observações feitas nas salas de aula, em nenhum momento, exceto nas aulas da professora Alessandra, a brincadeira foi desenvolvida na sala de aula. As atividades se restringiam a tarefas realizadas nas mesinhas.

O RCNEI assegura que as crianças da educação infantil desenvolvem-se de maneira heterogênea e, por assim se desenvolverem, a escola de educação infantil precisa também se articular, isto é, criar condições diferenciadas para possibilitar “o desenvolvimento integral de todas as crianças, considerando também as possibilidades de aprendizagem que se apresentam nas diferentes faixas etárias” (BRASIL, 1998, p. 47). Esse desenvolvimento integral envolve os conhecimentos de ordem afetiva, cognitiva, estética, relação interpessoal, cultural e, para isso, é preciso que sejam proporcionados momentos prazerosos para as crianças.

Na análise da PC da Secretaria de Educação do Município, observei uma visão de educação infantil fragmentada e descontextualizada, onde a criança é apenas um sujeito da cognição. É nesse documento que a instituição explicita os seus objetivos em relação ao processo de ensino e aprendizagem e traça o caminho para alcançar os objetivos e metas que foram definidos.

Esse ensino e aprendizagem, a que estou me referindo, não se restringe aos conteúdos escolares dos conhecimentos instituídos, mas a toda a forma de saberes, valores cotidianos e expressão humana. Para atender às necessidades dos alunos, faz-se necessário que as escolas estejam embasadas nas DCNs e nas orientações teórico-metodológicas que sustentarão e nortearão o projeto. É preciso explicitar os objetivos, o que é prioridade na escola, a concepção de educação infantil, de ensino e de aprendizagem, de criança (aluno), como esse aluno aprende, quais os melhores caminhos para a aprendizagem, que sujeito a escola deseja formar etc. São alguns questionamentos que se fazem necessários na construção de uma Proposta Curricular ou de um Projeto Político-Pedagógico das instituições de ensino. Como salienta Kramer (2008, p. 53), que “o projeto político pedagógico é fundamentalmente um trabalho de opção, de decisão política, a que se subordinam objetivos, estratégias, recursos”.

Observam-se, assim, muitas contradições entre o que é apresentado nos documentos oficiais das instituições de educação infantil e o que é manifestado nas falas das professoras pesquisadas. Mas algo ficou claro: as professoras, na sua maioria, ainda concebem a educação infantil conforme uma visão restrita e dicotômica de ser humano. Uma visão de educação infantil como um espaço apenas preparatório e sem nenhuma relação com o seu entorno.