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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

3.3 O CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL

3.3.3 O currículo e a prática pedagógica na educação infantil

Na compreensão da prática pedagógica, percebemos que sempre houve uma discussão em relação à teoria e à prática e um desejo de muitos profissionais da educação em promover essa articulação, cindidas até então. Antes, porém, faz-se necessário trazer uma reflexão sobre a ideia e o significado de prática fazendo a sua correlação com o contexto da educação infantil.

No meio educacional e muitas vezes na linguagem comum do nosso dia-a-dia, ouvimos e convivemos com discursos em que há uma separação entre teoria e prática. Ouvimos frases tais como: “a teoria é uma coisa, a prática é outra”; “a gente precisa de prática”; “quero ver isso na prática”, e por aí vai, explicitando o significado e sentido de prática. Ouvimos ainda referência a uma atitude “prática” de determinado indivíduo quando sua ideia é concretizada, isto é, quando se refere a alguém como “muito prático”, aludindo à possibilidade de concretizar uma determinada ideia. Essas são algumas referências da compreensão de “prática” que vemos na nossa sociedade e muitas vezes no meio acadêmico.

Partindo da visão positivista, a prática é tida como instrumento, como técnica, desprovida de qualquer pensamento ou reflexão, havendo mesmo uma separação entre aquele

que pensa (teoria) e o que executa a ação (prática). Assim, a palavra Prática origina-se do grego antigo Práxis, Práxeos, com o sentido de agir. Essa separação entre o que pensa e o que executa vai refletir também no processo educativo. Quando mencionamos que o plano ou algum projeto veio de cima para baixo, queremos dizer que alguém planeja e outro executar.

Abbagnano (2003) no seu Dicionário de Filosofia refere-se à prática como o que dirige a ação. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, prática é o “ato ou efeito de praticar; uso experiência, exercício; rotina; hábito; saber produtivo da experiência; aplicação da teoria”. Vê-se a prática como técnica, como algo que está desprovido da teoria, do pensar, e que, na verdade, é a aplicação da teoria.

No pensamento platônico, manifesta-se a cisão entre esses dois pólos: a ciência prática, desprovida de pensamento; e a cognitiva sem qualquer relação com a ação. Platão também valorizava a teoria em detrimento da prática e afirmava que, por estar ligada ao pensamento e à meditação, a filosofia era superior, enquanto as atividades cotidianas, as ações (dos artesãos, por exemplo) eram consideradas inferiores, por serem desprovidas de reflexão.

Aristóteles dizia que prática era a atividade que se concretiza por sua imanência: o

pensar, o querer. Assim salienta que “na ciência prática a origem do movimento está em

alguma decisão de quem age porque prática e escolha39 são as mesmas coisas”

(ABAGNANNO, 2003, p. 785). Nesse pensamento de Aristóteles, vemos certa relação de unidade entre a prática e a teoria. Quando este filósofo aborda a prática e a escolha, como as mesmas coisas, somos levados a pensar que, para haver a prática, necessita-se do pensamento para escolher e, posteriormente, praticar; ao desejar, querer, manifesta-se a relação do pensar e do fazer.

Nessa perspectiva, observamos a dicotomização entre teoria e prática em muitos discursos. Mesmo sendo termos diferentes e com significados distintos, eles não se opõem, ao contrário, existe inter-relação entre eles, uma relação de unidade. Enquanto a teoria é vista como um saber abstrato, como especulação filosófica, como meditação (visão platônica), a prática significa o agir, a técnica, possuía um valor de ação utilitária.

Diante dessa realidade, o que se busca é a unidade, não apenas dos termos teoria/prática, mas a unidade do ser humano, constituindo-se dessa forma a práxis. Compreendemos por práxis uma ação inter-humana consciente, como atividade de quem faz escolhas conscientes e para tanto necessita de teoria, pois por meio da conexão teoria/prática

39 Grifo nosso

chegamos à práxis. A visão de práxis, muitas vezes fica restrita à prática no sentido de utilidade.

Quando nos referimos a práxis, pensamos na unidade pensar/agir, teoria/prática, e estes termos não estão dissociados; ao contrário, estão imbricados, interligados. E, é nessa perspectiva que o marxismo designa a práxis “como um conjunto de relações de produção e trabalho, que constituem a estrutura social, e a ação transformadora que a revolução deve exercer sobre tais relações” (ABBAGNANO, 2003, p. 786). A produção de trabalho não está desconectada da concepção teórica, do pensar e é, a partir dessa conexão, que vai se dar a transformação.

Ademais a educação não deve ser vista nem pensada somente como técnica, isto é, como prática, tampouco como especulação teórica apenas, mas como ação transformadora da sociedade, daí, o sentido marxista de práxis como sendo uma atitude material do homem, que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano. E a educação deve primar por essa humanização do homem. A práxis pedagógica implica nessa mediatização entre diferentes sujeitos no espaço e na história; nessa inter-relação constante dos contrários.

Portanto a prática pedagógica e o ensinar exigem o pensamento crítico, isto é, estar constantemente refletindo sobre a prática, pois esta não é apenas uma reprodução técnica da realidade, mas exige pensamento, reflexão crítica a todo momento.

O que pretendemos compreender é a prática pedagógica dos profissionais da educação infantil, entendida como o dia-a-dia da escola. O fazer no espaço educativo da educação infantil. Mas, embora seja o fazer cotidiano (prática) não está desprovido do pensar, da reflexão, pois a prática pedagógica requer um movimento dialético desses dois pólos – teoria e prática – e que muitas vezes esses pólos opostos estão completamente fragmentados. Em um momento a teoria se sobrepõe a prática ou em outro a prática se sobrepõe a teoria, que manifesta uma acepção negativa tanto de uma quanto de outra. O que se busca em relação a esses dois termos na prática pedagógica é justamente a unidade a partir de um pensamento complexo. A prática pedagógica como uma dimensão complexa do fazer educativo deve apresentar essa unidade. Unificar dialeticamente teoria e prática eis o desafio de uma prática pedagógica dialética e dialógica na etapa inicial da educação básica.

A educação infantil há muito deixou de ser um espaço de cuidado e assistência para tornar-se também um espaço educativo. A criança não é aquele sujeito passivo que apenas ouve “as verdades” do adulto, mas um ser ativo dinâmico e histórico, autor e ator social. A concepção de criança como “coisa”, um ser sem importância e valor, sem capacidade de

pensar e falar, foi tecida ao longo da história da humanidade. Assim como há transformações na sociedade, a compreensão de infância não poderia permanecer estática. A criança é um ser da e na história. Essa compreensão vai sendo tecida, e a criança passa a ser vista e compreendida como um ser epistêmico, capaz de construir o seu próprio conhecimento o qual deve refletir-se na prática pedagógica.

Diante das mudanças dos paradigmas sobre o que é o homem, a escola, o currículo, a educação, o mundo, a criança e a prática pedagógica, o ensino deixa de ser um ato de transferir fielmente verdades aprendidas e de reproduzir o que está instituído pela sociedade. A aprendizagem por sua vez não é apenas a assimilação passiva das verdades ensinadas, não se dá de forma fragmentada e não é apenas o ato de contemplar o mundo ou reproduzir verdades aprendidas, mas é o ato de recriar.

O currículo, por sua vez, não é apenas “grade” que aprisiona a criatividade do aluno; é um meio pelo qual uma organização de ensino (seja ela qual for – infantil, fundamental, médio) busca promover o desenvolvimento da criança, estabelecendo uma conexão entre o que acontece na escola e na vida, envolvendo a complexidade e multirreferencialidade na resolução de problemas. Um currículo pautado e fundamentado nas relações sociais e culturais terá possibilidade de enriquecer a educação oferecida às crianças pequenas. Todas essas questões perpassam a prática pedagógica da instituição de educação infantil e a formação do professor que atua nesta etapa.

Para caminhar em busca dessa unidade entre teoria e prática também no currículo e no dia-a-dia da escola, faz-se necessário globalizar os conteúdos e as aprendizagens dos sujeitos, tendo como base as acepções complexas e multirreferenciais, as quais destituem as concepções de carências culturais, possibilitam vencer preconceitos e resistência ao novo, ao diferente e aceitar as incertezas e flexibilidades. Relacionando e defendendo saberes (técnico, científico, artístico, filosófico, teológico, cultural), a prática pedagógica poderá promover um caminhar dialógico e dialético.

Sobre a prática pedagógica, Freire (1996) nos lembra que o educador “não pode negar- se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (p. 26) e, eu diria, a capacidade crítica, criadora e reflexiva da sua própria prática. Pela reflexão constante de sua prática pedagógica, o professor está construindo um currículo aberto à diversidade social e avesso a toda forma de preconceito e discriminação, seja de raça, etnia, gênero, classe social ou religião.

Na prática pedagógica, o currículo da educação infantil deve valorizar todas as linguagens manifestadas na criança – práticas musicais, movimento, conhecimento de mundo, ciências humanas, sociais e naturais, a arte, o jogo, o brincar, o faz-de-conta etc. –, pois o cotidiano escolar é o lócus da produção do conhecimento, de valorização das diferenças, da vida.

É preciso conhecer as crianças e o modo como constroem o conhecimento, valorizar a manifestação das suas diversas linguagens e não apenas vê-las como reprodutoras de um conhecimento acumulado e como um ser que responde mecanicamente ao que foi depositado em suas cabecinhas. Muitas vezes achamos que as crianças não têm capacidade de apreender e compreender a realidade por considerá-las desprovidas de pensamento. Entretanto, a criança pequena é capaz de entender muito mais do que imaginamos e as diversas áreas de conhecimento precisam ser exploradas para que ela tenha uma formação integral, como defende Kramer (1998):

o currículo da pré-escola é, então, elaborado a partir desse referencial, levando em conta as características especificas das crianças e do momento em que vivem (seu desenvolvimento psicológico), as interferências do meio que as circundam (sua inserção social e cultural) e os conhecimentos das diferentes áreas (p. 37).

A constituição integral do sujeito e a construção do conhecimento se processam pela contradição, pela ligação dos diferentes a uma unidade, sem que a dualidade se perca na unidade (dialógica), pela ação/reação dos acontecimentos (feedbeck) e pela crítica dialética, entendida como a possibilidade de conhecer o positivo no negativo. A conexão ente os opostos não elimina nem anula a oposição; na mudança contínua e na transformação permanente do conhecimento, a sociedade vai se constituindo e se alterando: eis os princípios básicos do pensamento complexo.

Uma prática pedagógica na perspectiva intersubjetiva envolve a contextualização social e cultural, considerando as histórias de vida de todos os envolvidos (crianças e professores) no processo educativo. Na interação entre diferentes sujeitos que constituem o sentido cultural da existência humana, é que se vai construindo e tecendo o sentido da experiência de um indivíduo, havendo assim a comunicação e o diálogo. Com essa prática pedagógica, as instituições de educação infantil estarão contribuindo para a formação sociocultural, compreendida não apenas na celebração das diferenças, mas na valorização e

respeito às diversidades sociais e culturais que existem na nossa sociedade, nos mais diversos contextos.

Macedo, (2005) traz uma discussão sobre a criança, o currículo e a família segundo a epistemologia do pensamento complexo, que critica a concepção de infância como invariante da história, isto é, como uma propriedade que permanece a mesma, sem atentar, a priori, para as mudanças por que passa a criança e para as políticas de educação infantil. Esse autor assegura que o currículo nas instituições de educação infantil “reproduz muito mais o conservadorismo colonizador da escola e menos o seu poder de transformar” (MACEDO, 1999, p. 90), tornando-se cristalizado, produzindo ainda práticas pedagógicas do liberalismo, que, cada vez mais, exclui a infância do contexto social, educacional, criando uma opacidade nítida na práxis educativa. Esquece-se ainda que a criança é um ator/autor social, é um ser ontológico (ser-no-mundo), que pensa e deseja, altera-se de acordo com a temporalidade, singularidade e pluralidade.

Nesse sentido,

a criança é um Ser que pensa e deseja, altera-se e autoriza-se em meio Às possibilidades e limites da instituída e instituinte conviviabilidade social, é um sujeito contextualizado, portanto, está inserida numa classe social, numa família, numa cultura e não raro, cultura uma religiosidade. Ademais, está marcada pelos âmbitos da etnia e do gênero, pelos quais, sincrônica ou assincronicamente, constrói um certo processo identitário (MACEDO, 1999, p. 92).

Observamos que pais, professores e comunidade, por estarem preocupados com o momento da escolarização da criança, geralmente se esquecem que ela vive em um ambiente histórico-social e que, de uma forma ou de outra, está construindo o conhecimento, pois o indivíduo aprende com o sábio, com o não-sábio, com o que detém ou não o conhecimento sistematizado.

Neste capítulo, analisamos a trajetória e as concepções de currículo, especialmente o da educação infantil, relacionando-as à pratica pedagógica da pré-escola. No próximo capítulo, com base em todas essas discussões travadas até aqui, analisaremos as ações, os discursos e os depoimentos manifestados na pesquisa empírica.

CAPÍTULO IV – CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E DE CURRÍCULO NO CONTEXTO DA PRÉ-ESCOLA

O corpo de ensino tem de chegar aos postos avançados do mais extremo perigo,

que é constituído pela permanente incerteza do mundo.

Martim Heidegger 4.1 INTRODUÇÃO

A análise dos dados é um momento de extrema complexidade, pois requer do pesquisador não apenas a descrição do que foi levantado na pesquisa, do que foi explicitado e manifestado nas entrevistas e observações, como também ir além, desvelar o que está oculto, o que está implícito, o que não foi revelado nos depoimentos. Por mais que os fenômenos se apresentem, nunca se manifestam na sua totalidade. Sempre existe algo oculto. Assim, precisamos fazer escolhas e, nessas escolhas, tomamos partido do que deve ser privilegiado. As manifestações que emergem são fenômenos complexos e segundo Morin (2003, p. 43), “a complexidade é efetivamente a rede de eventos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico”. Por esse pensamento complexo, a pesquisa nunca está completa, ela vai sendo criada e recriada no próprio percurso.

Faz-se necessário ainda compreender as contradições existentes nas falas e nas ações dos sujeitos da pesquisa. A análise de dados requer realmente um olhar hermenêutico, uma interpretação da linguagem, do olhar, do silêncio, e isso não é nada simples. Para Macedo (2006, p. 138), na análise dos dados, é necessário o pesquisador se “imbuir de uma imaginação metodológica que ultrapassa a mera descrição e a interpretação sumária produto de simples constatação”. Na análise, a epistemologia da complexidade é uma referência importante para compreender ou tentar compreender os fenômenos do universo pesquisado.

A construção da narrativa deste momento da dissertação teve como referência as observações feitas em sala de aula, as entrevistas realizadas com os professores, a análise documental, as discussões no grupo focal, além da base teórica de autores, como Kramer, Macedo, Morin, Arce, Froebel, entre outros. Todas essas técnicas foram usadas pela necessidade de termos mais subsídios para a análise, como o Grupo Focal, por exemplo, que surgiu no momento em que foi percebida a necessidade de elucidar alguns pontos que não ficaram claros na entrevista.

A pesquisa partiu de uma abordagem qualitativa fenomenológica, a qual requer a busca de sentido dos fenômenos. As diferentes concepções nas relações de sujeito/objeto, sujeito/sujeito, subjetividade/objetividade, que se manifestam no campo da pesquisa, muitas vezes geram conflitos e enfrentamentos, o que é natural na convivência de contrários.

Para uma melhor organização didática dos dados e para facilitar a compreensão do leitor, elenquei alguns itens para análise. O primeiro se refere à importância da educação infantil e surge dos próprios depoimentos, já que todas as professoras selecionadas destacam a importância dessa etapa da educação. Os outros itens – concepção de infância e criança, concepção de currículo presente nas práticas pedagógicas e influência do currículo na formação sociocultural, na constituição da identidade e na construção do conhecimento da criança – surgem dos objetivos do projeto de pesquisa. Esses aspectos estão categorizados, mas não significa que eles estejam fragmentados. Cada um não se esgota em si mesmo; eles se completam e estão complexamente imbricados.