• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

3.3 O CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL

3.3.2 O Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) é um documento oficial do Ministério da Educação e Cultura promulgado em 1988. Compõe-se de três volumes, Introdução, Formação Pessoal e Social e Conhecimento de Mundo, e apresenta uma proposta curricular para a educação de crianças de zero a seis anos. Esse documento objetiva proporcionar aos educadores de creches e pré-escolas a realização de um trabalho que valorize a criança de forma integral.

Ante a realidade da educação infantil brasileira, esse documento surge como um avanço significativo de mudança na concepção de criança e de educação infantil, que deixa de ser vista, pensada apenas como atendimento ao cuidado e assistência. Com a edição desse documento, passou-se a entender que a educação infantil deveria ter uma proposta pedagógica, pois as crianças de zero a seis anos também têm direito à educação, como garante a Constituição de 1988 e, como preconiza a LDB (Lei 9394/96), a educação infantil passou a fazer parte da educação básica,

Entretanto, o RCNEI não é um modelo, um programa a ser seguido pelas escolas, mas uma referência nacional que possibilita às escolas infantis o acesso e a adaptação a sua realidade. O discurso do RCNEI fundamenta-se no respeito às diferenças, à diversidade cultural, à individualidade, aos níveis de aprendizagens, visando superar as práticas de sala de aula fragmentadas. Embasa-se nos seguintes princípios:

o respeito à dignidade e aos direitos das crianças, consideradas nas suas diferenças individuais; o direito das crianças a brincar; [...] o acesso das crianças aos bens socioculturais disponíveis, ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão, à comunicação, à interação social, ao pensamento, à ética e à estética; a socialização das crianças por meio de sua participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais, sem discriminação de espécie alguma; o atendimento aos cuidados essenciais associados à sobrevivência e ao desenvolvimento de sua identidade (BRASIL, 1998, p. 13).

O próprio documento deixa claro que é uma proposta “aberta, flexível e não obrigatória”, que deve orientar as práticas pedagógicas, buscando melhoria de qualidade na educação infantil.

O Volume I, do RCNEI, que é introdutório, traz uma discussão mais geral das concepções e compreensão de creche e pré-escola, como instituições que nasceram com o objetivo de atender às crianças das classes populares e assistir às crianças de baixa renda, atuando muitas vezes de forma compensatória. Discute sobre a concepção de criança como sujeito social e histórico, e não como um ser universal que em todo o contexto e espaço é igual, e acerca da educação na infância. A criança que aparece nesse documento não é aquela considerada um não-adulto, pois o olhar adultocêntrico sobre a criança manifesta a ausência ou a negação das características próprias da infância. A criança apresentada por este documento não é a consagrada pela modernidade, aquele ser cuja idade é a da não-razão.

A educação, por sua vez, segundos os referenciais, não se limita ao preparo para a série seguinte, mas incorpora de maneira integrada as funções de cuidar e educar, que são aspectos não excludentes. Quem cuida educa, e quem educa cuida. No RCNEI está explícito que “educar significa, portanto, propiciar situações de cuidado, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis e de relação interpessoal” (BRASIL, 1998, p. 23) e o cuidar, além dos aspectos biológicos do corpo, como higienizar, alimentar, atentar para a saúde, envolve também a dimensão afetiva.

Esse documento destaca a importância da brincadeira na pré-escola e na creche como elemento indispensável para o desenvolvimento da linguagem infantil. O educar e o brincar não estão dissociados de sua real função como aponta o RCNEI. Nas creches, o educador, muitas vezes, fica com a função de apenas cuidar das crianças, sem estabelecer uma veiculação entre os aspectos cuidar e educar. Afora, que existem ainda as recreacionistas, que têm o papel apenas de brincar com as crianças para passar o tempo, enquanto chega o horário das crianças irem para casa. O que o RCNEI propõe é romper com essa visão fragmentada de educar e cuidar e valorizar as atividades individuais e coletivas desenvolvidas na pré-escola e na creche. Enfatiza, ainda, a importância da formação do professor para atuar nessa faixa etária.

A caracterização da instituição de educação infantil como lugar de cuidado - e - educação, adquire sentido quando segue a perspectiva de tomar a criança como ponto de partida para a formulação das propostas pedagógicas. Adotar essa caracterização, como se fosse um dos jargões do modismo pedagógico, esvazia seu sentido e repõe justamente o oposto do que se pretende. Educá- la é algo integrado ao cuidá-la.

O RCNEI discute ainda a importância da formação do profissional que atua na educação infantil, a necessidade de que eles tenham conhecimentos específicos e que os conhecimentos prévios devem ser como ponto de partida para a ação educativa e estar vinculados às práticas sociais reais. Segundo o RCNEI, “a implementação e/ou implantação de uma proposta curricular de qualidade depende principalmente dos professores que trabalham nas instituições” (BRASIL, 1998, p. 41). Esta afirmação atribui a responsabilidade da qualidade dos projetos aos professores. Podemos perceber as boas intenções do RCNEI, mas é importante esclarecer que há um paradoxo entre o discurso e a prática, pois muitos profissionais sequer têm conhecimento de tais propostas. Geralmente esses livros encontram- se nas prateleiras das escolas sem nenhuma utilidade. Mas não culpemos os professores. Entendemos que isso perpassa pela sua formação tanto a só inicial quanto a continuada.

O Volume II aborda a formação pessoal e social das crianças, no seu contexto histórico-cultural. Para o desenvolvimento da identidade e a conquista da autonomia, faz-se necessário conhecer as características e potencialidades das crianças e, consequentemente, reconhecer seus limites. A confiança, o amor, o cuidado são imprescindíveis para a formação pessoal e social da criança. Sendo assim, o trabalho educativo deve criar condições para as crianças conhecerem, descobrirem e ressignificarem novos sentimentos, valores, ideias, costumes e papéis sociais, contextualizando e se percebendo como ser de alteração.

Segundo essa perspectiva e visando o desenvolvimento infantil, as instituições (escolas, igrejas) devem alargar o universo inicial (família) das crianças, para que possam ser atendidas de maneira respeitosa, e atentar para as diversidades culturais, sociais e especiais sem discriminação ou preconceitos. A criança precisa conviver em um espaço de harmonia, de respeito e de cooperação para que se desenvolva como pessoa, respeitando as regras sociais e o outro, tornando-se um sujeito autônomo.

O Volume III traz uma proposta pedagógica em que se destacam as diversas linguagens na constituição dos sujeitos, tais como: Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e Conhecimento Matemático. Esta valorização e a relação entre as diversas linguagens e a afetividade na vida da criança criam

uma situação de vínculo entre as pessoas que a cercam contribuindo para o seu desenvolvimento.

Mesmo sabendo que o indivíduo é um ser que aprende na relação com o outro, faz-se necessário considerar ainda a sua singularidade, suas diferenças. Esta aprendizagem dá-se por meio da observação, da imitação, do brincar, da oposição, da linguagem, do corpo etc. Todos esses aspectos contribuem para a sua formação, para o seu desenvolvimento psicossocial.

O objetivo da educação infantil é criar esse ambiente de acolhimento, que dê segurança e confiança às crianças; que elas possam interagir com as outras, fantasiar, usar a criatividade, se expressar, seja essa expressão oral, escrita seja desenhos; que tenham espaço para falar, conversar, expor o que pensam, mesmo que, para os adultos, esse pensamento seja “incoerente ou sem sentido”. O ambiente institucional deve proporcionar segurança, tranquilidade, alegria, e nele devem atuar adultos amáveis que escutem as necessidades das crianças, respeitem suas diferenças individuais, ajudem em seus conflitos e lhes possibilitem limites claros.

À medida que a criança vai crescendo, as atividades devem ser intensificadas, para atender a sua faixa etária. O professor não deve fazer qualquer atividade simplesmente por fazer, deve ter sempre um objetivo, uma meta, prestando muita atenção ao desenvolvimento e participação das crianças; fazendo anotações de tudo que acontece, dos progressos, avanços, bem como das regressões, para que possam alcançar bons resultados.

O professor de educação infantil, em primeiro lugar, deve gostar do que faz, ter competência e compromisso. Este professor, querendo ou não, é um referencial muito importante para o educando, porém, em alguns momentos, dependendo da sua ação no cotidiano das escolas, ele pode contribuir para que as crianças se tornem objetos (Pinóquio às avessas), e não seres humanos. Percebemos, assim, o cuidado, a responsabilidade que cada educador tem em suas mãos.

Mesmo reconhecendo a importância do RCNEI para a educação infantil, várias críticas são dirigidas a esse documento, quer pela maneira como foi construído, quer por explicitar uma visão apenas “escolar” da educação infantil. Nessa perspectiva, Cerisara (2002, p. 8) salienta que

as especificidades das crianças de 0 a 6 anos acabam se diluindo no documento ao ficarem submetidas à versão escolar de trabalho. Isso porque a "didatização" de identidade, autonomia, música, artes, linguagens, movimento, entre outros componentes, acaba por disciplinar e aprisionar o gesto, a fala, a emoção, o pensamento, a voz e o corpo das crianças.

De fato é preciso considerar que, se, por um lado, há uma distância no que está escrito no RCNEI e o que realmente acontece na instituição de educação infantil, por outro, este documento não deve ser visto apenas como um manual a ser seguido. Não podemos desconsiderar a sua relevância para a mudança na construção do currículo da educação infantil. De acordo com essa visão, Palhares e Martinez (1999, p. 15) asseguram que há dois riscos em relação ao referencial:

[...] por um lado ele pode ser uma “camisa de força” – se for lido como um ideal inatingível, uma receita, tão grande a distância entre a prática hoje efetiva, muitas vezes com outras qualidades ali não contempladas e a proposta apresentada. Neste caso, o RCN/Infantil torna-se um retrocesso, pois leva aos “engessamentos” de práticas criativas diversas das que ele preconiza. Por outro lado, dada a distância entre o “ideal” e o real, pode levar a um engavetamento do projeto por inviabilizar as alterações de cunho qualitativo na educação da criança pequena, tal a dificuldade de sua execução.

É interessante reconhecer a importância desse documento para as políticas públicas de educação infantil e para os profissionais que atuam nessa etapa da educação, sem desconsiderar, claro, o conhecimento das questões específicas de cada região (econômica, social, ambiental), pois a valorização e a incorporação das culturas locais permitem elaborar propostas curriculares mais reais e significativas.

Os projetos educativos precisam ser criados num clima democrático e pluralista, em que o trabalho seja debatido, compreendido e discutido por todos. A formação continuada deve fazer parte da rotina institucional, com momentos para a troca de ideias sobre a prática dos professores e outras questões relativas aos projetos educativos. O RCNEI apresenta indicativos sobre o espaço, recursos materiais, acessibilidade dos materiais, condições de segurança, tanto no uso dos materiais, quanto no espaço físico, critérios para formação de grupos de crianças, organização de tempo, entre outras sugestões. Se essas questões forem discutidas e debatidas pelo grupo de professores de educação infantil, já é um caminho possível para a tentativa de superar muitos problemas que surgem no âmbito escolar.

Esse documento apresenta uma concepção de currículo que é visto não como um manual a ser seguido pelos profissionais da educação infantil, mas como um instrumento que pode suscitar discussões nas escolas que atendem crianças pequenas. O profissional da educação infantil que desejar melhorar a sua prática pedagógica encontrará subsídios no RCNEI. As concepções de criança/infância, currículo, conhecimento, prática pedagógica e

professor não constituem algo fragmentado nem distante da realidade vivenciada pelas escolas de educação infantil e seus profissionais. O RCNEI traz

o espontâneo, o lúdico, o prazer, o não diretivismo no trabalho pedagógico como seus eixos norteadores. A criança é vista como construtora de conhecimentos, garantido-se, assim, seu direito a expressar-se. O professor, por sua vez, atua como um facilitador, um orientador, permitindo a interação entre as crianças e preparando o ambiente para que estas pesquisem e experimentem livremente, sempre acalentadas por uma atmosfera acolhedora e repleta de afetividade. Proporciona-se ao ser criança o desenvolvimento de suas habilidades cognitivas, sua identidade, a capacidade de socialização, independência, autonomia, auto-estima, criatividade... (ARCE, 2007, p. 27).

Nessa perspectiva, é urgente uma educação infantil verdadeiramente comprometida com os valores de democracia, solidariedade e crítica se quisermos ajudar cidadãos e cidadãs a enfrentarem essas políticas de flexibilidade, descentralização e autonomia, promulgadas nas esferas trabalhistas. E isso começa nas escolas de educação infantil e com os profissionais que lá trabalham. É preciso ainda proporcionar uma formação com ênfase na capacidade crítica e solidária (crianças e educadores), se não quisermos deixá-la ainda mais indefesas.