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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

2.5 POR UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA

2.5.1 Em busca do sentimento de infância no Brasil

O entendimento e as representações acerca da infância ao longo da história brasileira – a partir da chegada dos europeus às nossas terras23 – estiveram relacionados aos vários projetos de desenvolvimento econômico e político elaborados pelos poderes instituídos. O sentimento de infância, no Brasil, tardou a surgir. Inicialmente as crianças eram comparadas aos bichinhos domésticos e, ao atingir a idade de cinco a seis anos, ao passar a fase crítica da mortalidade infantil, era logo inserida no ambiente de trabalho escravo ou no meio dos adultos, encerrando a fase considerada infantil.

Notamos que a história social e pedagógica da criança brasileira não se difere muito da história das crianças dos países europeus, por exemplo. Vimos que nos séculos XVI e XVII a

infância era marcada pela indiferença e invisibilidade social. No Brasil, só a partir do século XVIII é que a sociedade começou a pensar e discutir a situação das crianças pequenas em virtude do alto índice de mortalidade infantil.

Pensar a educação das crianças no Brasil que se despontava é pensar também nas mudanças que estavam ocorrendo na sociedade, como, por exemplo, o crescimento urbano, pois a história da infância não está desvinculada da história da educação e da história do Brasil.

No Brasil nascente, a educação de crianças começa mesmo com a chegada dos jesuítas às nossas terras, porém as crianças escravas não tinham qualquer privilégio. Aos cinco ou seis anos, encerrava-se a infância, e a criança passava para o trabalho escravo. As meninas iam ajudar nos afazeres domésticos da “casa grande” ou fazer companhia às filhas dos senhores. Os meninos eram os companheiros de brincadeiras ou eram eles mesmos o brinquedo da criança branca, isto quando o filho do senhor gostava dele. As crianças escravas que iam nascendo se constituíam em mais um escravo em potencial para aquela fazenda. Não havia escola para as crianças negras. Elas não tinham direito à infância, se quer o direito ao leite materno.

Assim para Farias (2005, p. 42),

a criança negra era uma personalidade anulada no meio social; ela passava a ser “algo”, às vezes “alguém”, tomando sempre como referencial outras personalidades que interferiam na sua realidade. Em relação aos pais, era o filho parido, ao senhor da casa-grande, o futuro escravo adulto e ao filho do senhor, um escravinho em miniatura ou um brinquedo.

A criança branca, de elite especificamente, tinha uma ama-de-leite para cuidar dela e logo depois um preceptor que lhe dava as primeiras instruções. Para as mulatas ou mesmo as brancas da classe desfavorecida, a situação se assemelhava à das crianças negras, isto é, não havia qualquer privilégio nem direito à educação.

Já as crianças indígenas passaram a ter uma educação elementar para serem convertidas à fé cristã e, depois, elas mesmas converterem também os pais. Segundo Chambouleyron (2004, p. 58), “a Companhia escolheu as crianças indígenas como papel em branco; cera virgem, em que tanto se desejava escrever; e inscrever-se”.

A primeira experiência de assistência às crianças foi desenvolvida pelos padres jesuítas e consistia na catequização das crianças para que, futuramente, pudessem professar a

fé cristã. Quando chegavam a ser educadas, pois os filhos dos escravos não tinham esse privilégio, as crianças deveriam ser preparadas bem cedo para assumir responsabilidades.

Com os altos índices de crianças abandonadas e de mortalidade infantil, alguns setores da sociedade começaram a se preocupar com a causa da infância e passaram a criar instituições de atendimento à criança. Assim, o atendimento às crianças pequenas se deu mesmo com o trabalho desenvolvido pela Igreja nas Santas Casas de Misericórdia com a criação da Roda dos Expostos. Essa instituição também chamada no Brasil de “Casa dos enjeitados” era uma instituição de idealização européia24, que consistia em recolher as crianças abandonadas. Elas tinham também um cunho missionário, pois, assim que as crianças eram deixadas na instituição, logo era “providenciado o batismo, salvando a alma da criança” (MARCILIO, 2006, p. 54). No Brasil, a primeira Roda foi criada em Salvador, logo depois, espalhada por outras capitais brasileiras, só deixando de existir no meado do século XX.

Mesmo havendo muitas críticas a essas instituições, o certo é que elas desempenharam um papel na história da infância brasileira. Apesar de muitas daquelas crianças abandonadas não sobreviverem, em razão da alta taxa de mortalidade infantil da época, o importante é que havia um amparo, mesmo sendo só assistencial, à criança exposta. No século XXI, ainda nos deparamos com o abandono de crianças em latas de lixo, portas de igrejas, casas particulares e instituições de atendimento à criança, além das que são encontradas, já sem vida, em rios, lixões, viadutos etc.

Em conformidade com os ideais europeus e froebeliano, o primeiro jardim-de-infância brasileiro foi criado no Rio de Janeiro em 1875 pelo médico Menezes Vieira. Era uma instituição privada que atendia a nova classe social que surgia – burguesia. O objetivo, segundo Kuhlmann Jr. (2001), era “moralização da cultura infantil, na perspectiva de educar para o controle da vida social, preocupado que estava com os conflitos espelhados em suas brincadeiras [...] a solução seria adotar como que um antídoto àquelas ameaçadoras práticas” (p. 16).

As instituições de atendimento a crianças menores de sete anos que surgiram no Brasil apresentavam as mesmas características das existentes na Europa e Estados Unidos a partir do século XVII e objetivavam assistir às crianças carentes.

24 Primeira Roda dos Expostos surge na Idade Média na Itália. Consistia de uma roda na porta da instituição, onde era deixada a criança, e, ao girá-la, a pessoa que estava dentro da instituição recolhia a criança, garantindo assim o anonimato de quem abandonou e evitando que as crianças fossem deixadas nas calçadas, lixos e florestas.

Muitos projetos elaborados por grupos particulares, como médicos e higienistas, com o objetivo de minimizar a mortalidade infantil e combater o aleitamento mercenário, que era uma das causas da mortalidade infantil, intensificaram o progresso no campo da higiene, da medicina e da educação em relação ao atendimento à criança. Mesmo assim, as crianças das classes populares não tinham nenhum atendimento educacional nesse período. Os poucos acolhimentos que existiam estavam relacionados ao atendimento assistencial para crianças abandonadas ou para as famílias de baixa renda e neles eram oferecidos abrigo e alimentação. Não havia uma preocupação com a educação, na forma que a compreendemos hoje – processo que busca a transformação de todo ser humano, em todos os seus aspectos (afetivo, social, cultural cognitivo/linguístico) e por toda a vida. Para Rosemberg (2006, p. 151),

O modelo de uma pré-escola brasileira de massa, desempenhando também função de assistência, foi introduzido no Brasil sob influência de propostas divulgadas pelas organizações intergovernamentais, em especial o UNICEF e a UNESCO. A mais antiga influência na elaboração da nova proposta de pré-escola foi exercida pelo UNICEF através do Departamento Nacional da Criança.

A partir do século XX, intensificou-se a criação de órgãos e instituições, e diversas leis foram promulgadas para o atendimento a crianças de zero a seis anos, o que influenciaria também na concepção de criança manifestada na realidade brasileira. Ela passou a ser vista como um sujeito global que precisa desenvolver-se como um ser autônomo, um ser histórico, que se constrói no contexto social em que vive. Segundo Arroyo (1995, p. 17), “a infância é algo que está em permanente construção”. Para ele, a concepção que nossos pais tinham sobre nós quando éramos crianças é muito diferente da que temos em relação aos nossos filhos.

Durante muito tempo a criança não foi percebida como sujeito de direitos. Mas, com as mudanças ocorridas na sociedade contemporânea, ela passou a ser observada e estudada pela sociedade e é obrigação desta, juntamente com a família, valorizar essa idade da vida.25 “Cada idade tem, em si mesma, a identidade própria, que exige uma educação própria, uma realização própria, enquanto idade e não enquanto preparação para outra idade” (ARROYO, 1995, p. 17), seja esta preparação para a série seguinte ou para se tornar um “bom cidadão”. A criança em si já é um cidadão que tem os mesmos direitos de viver com decência e dignidade e, ainda, ter um bom atendimento nas creches e pré-escolas.

25

Termo usado por Ariès (1981) para dizer que em cada época da sociedade se privilegiava uma idade, ora juventude, ora infância, ora velhice.

Em uma sociedade dualizada (criança/adulto, cuidar/educar, bonito/feio, rico/pobre, branco/preto), a exclusão de crianças torna-se, muitas vezes, invisível aos olhos. As contradições e diferenças acabam por fragmentar também a compreensão que se tem de infância, e isso é um perigo, pois cada vez mais nos deparamos com pessoas que não se espantam, nem se indignam frente a situações de abandono, trabalho infantil, violência, preconceito, considerando muitas vezes tudo normal ou natural. É preciso resgatar uma sociedade para todos, que esteja consciente da diversidade da raça humana e estruturada para atender às necessidades de cada cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos marginalizados, isto é, atender crianças de zero a seis anos, pertencentes a qualquer grupo social.

As crianças existem, pensam, sentem e criam. É um ser de direito: direito à saúde, educação, cuidado, lazer, enfim, direito à vida. Embora tenham limitações de crianças, não significa que devam ter acesso apenas ao cuidado, nem, por outro lado, apenas ao disciplinamento, ao ensino, mas a uma educação que não se restrinja aos conteúdos curriculares.