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CAPÍTULO I OS FUNDAMENTOS E OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

3.3 O CURRÍCULO E A EDUCAÇÃO INFANTIL

3.3.1 O currículo infantil e a visão de Friedrich Froebel

Ao adentrar a discussão de currículo, vimos que Comenius e Pestalozzi, entre outros filósofos e educadores, com sua maneira própria de pensar e ver o ensino, contribuíram, significativamente, para construção de uma educação para crianças pequenas. No entanto, foi com Froebel que as crianças em idade pré-escolar ganharam maior visibilidade na história da educação.

O alemão Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) idealizador do jardim-de- infância muito contribuiu para a propagação de uma educação para a primeira infância. Ao se tornar preceptor em uma escola-modelo, por intermédio do seu diretor, Froebel passou a conhecer as ideias do educador suíço Pestalozzi, pelas quais se apaixonou. Passou dois anos com Pestalozzi, conhecendo o trabalho que ele desenvolvia com as crianças. Algumas divergências ideológicas e de concepções fizeram com que retornasse ao seu país e, em 1816, entregou-se completamente à educação de crianças pequenas, fundando sua primeira escola – Instituto Geral Alemão de Educação. Em 1837, fundou o seu primeiro Kindergartem, ou seja, o primeiro jardim-de-infância e, posteriormente, uma fábrica de brinquedos, denominada “Estabelecimento para o cultivo das disposições naturais da criança e dos jovens”. Na Folha Dominical, jornal criado e dirigido por ele, especificava os objetivos dos brinquedos e a sua importância na formação da criança. Suas obras principais são: A Educação do Homem, Arte

da Educação, da Instrução e do Ensino, Pedagogia do Jardim-de-infância. No entanto, a

única obra traduzida para o português é o livro a Educação do Homem, no qual me baseei para este estudo.

Os jardins-de-infância criados por Froebel começaram a se espalhar por vários países da Europa e da América Latina. No Brasil, o primeiro jardim-de-infância foi criado em 1875 no Rio de Janeiro pelo médico e higienista Menezes Vieira, mas só atendia às crianças da classe abastada. Não era uma instituição pensada para as crianças da classe popular ou para os filhos de escravos, mas, sim, para as crianças da elite brasileira.

Em 1851, todos os jardins-de-infância da Prússia foram fechados por serem considerados disseminadores de ideias perigosas e pensamentos ateus. Entre 1848 e 1852, foram criados 31 jardins-de-infância na Alemanha. Em 1852, morre Froebel sem ver seus jardins-de-infância serem reabertos, porém sua esposa dá continuidade ao seu trabalho. Mesmo criticados e proibidos, seus ideais foram expandidos e divulgados por vários países da Europa e América.

As concepções pedagógicas de Froebel estão fundadas nos ideais de Emílio, em que a infância é vista como idade da inocência, pureza, beleza e bondade. O idealizador e criador dos jardins-de-infância também foi considerado um romântico/naturalista, que defendia uma educação sem obrigações e cujas atividades deveriam partir sempre do interesse da criança e da prática:

A educação, doutrina e qualquer ensino devem tender muito mais a seguir a

espontaneidade e a adaptar-se a natureza, do que a prescrever normas e

determinar condutas: se predominar unicamente exata última tendência, impedir-se-ão o desenvolvimento e o progresso do gênero humano ou, o que é o mesmo, a manifestação do divino no homem e em sua atividade

espontânea37 e livre - único objeto e fim de toda educação e de toda vida

(FROEBEL, 2001, p. 27).

Assim como Rousseau, Froebel critica veementemente a adultização das crianças quando alguns pais querem que seus filhos se comportem como jovenzinhos ou como adultos, “saltando por cima de etapas necessárias e essenciais” (idem, 2001, p. 48) à vida da criança, não respeitando as características de cada idade.

Interessante notar no próprio nome jardim-de-infância uma relação direta com a vivência e contato com a natureza. As crianças eram consideradas as plantas e a professora a jardineira, pois, para ele, assim como as plantas precisam de cuidado para crescerem fortes e saudáveis, as crianças também o precisam. Desse modo, a “verdadeira educação pode prosperar, florescer e dar saborosos frutos” (FROEBEL, 2001, p. 31).

A base do pensamento e da educação froebeliana estava diretamente relacionada a sua formação religiosa. O objetivo maior da educação era para ele despertar o princípio divino que habita em cada indivíduo/criança. Deus, Homem e Natureza, considerados por ele a Unidade Vital da existência humana, estão intimamente ligados e, é a parir desses princípios, que deveria se constituir a educação da criança, pois o homem, por sua natureza divina, terrena e humana, pertence a Deus, à natureza e à humanidade:

A educação ativa e diretiva principia propriamente para o homem quando ele começa a viver em união com Deus, quando começa a estabelecer-se em mútua compreensão e intimidade comum da vida entre pai e filho, porque assim a verdade se deriva da essência do todo e da natureza do individuo para poder ser sem esforço reconhecida (FROEBEL. 2001, p. 27).

37 Grifo nosso

Froebel criticava veementemente a prescrição de normas e determinação de condutas pelas escolas, por isso propõe jogos e brincadeiras como meios educativos. Ele foi o primeiro educador a se preocupar com a educação de crianças em idade pré-escolar, a oferta dessa educação em instituições (jardins-de-infância) e não apenas com a educação no convívio familiar, mesmo reconhecendo o papel desempenhado pela mãe. Assim propõe os jogos e brinquedos como atividades, que, segundo ele, constituem a mais autêntica, a mais espiritual ação do divino. Porquanto,

[...] o brincar, o jogo – o mais puro e espiritual produto dessa fase de menino durante esse período, é a manifestação espontânea do interno, imediatamente provocada por uma necessidade do inteiro mesmo [...] engendra alegria, liberdade, satisfação e paz harmonia com o mundo. Do jogo, emanam as fontes de tudo que é bom [...]. Esse período não é, pois, a mais bela manifestação da vida infantil em que a criança joga e se entrega inteiramente ao seu jogo? [...] Os jogos dessa idade são os germes de toda a vida futura, porque ali o menino se mostra e se desenvolve por inteiro em seus variados e delicados aspectos, em suas mais intimas qualidades. Toda a vida futura do homem – até seus últimos passos sobre aterra – tem sua raiz nesse período (FROEBEL, 2001, p. 48).

Ao considerar os jogos como imprescindíveis na educação das crianças, ele mesmo cria vários jogos educativos, como cubos, bastões, cilindros. Materiais como argila, areia eram indispensáveis à educação proposta por esse educador.

Outro aspecto na educação das crianças proposto por Froebel diz respeito ao papel da mulher/mãe, cuja importante contribuição está no desempenho de mãe delicada e dedicada, que ajuda os filhos a pronunciar as primeiras palavras, fazendo com que eles relacionem as palavras às coisas e se distingam dos objetos, visto que “o mundo exterior e a criança se confundem: entre eles não se pode estabelecer uma distinção precisa” (FROEBEL, 2001, p. 43). A partir do momento em que os pais começam a pronunciar as palavras, a separação entre o próprio ser (mundo interior) e as coisas (mundo exterior) vai se manifestando. “A criança passa a adquirir consciência de si mesma – como uma coisa claramente separada, completamente distinta das outras” (idem, 2001, p. 43). Como a mãe tinha um papel decisivo na formação/educação da criança, este educador passou a criar cursos para ensinar às mães como deveriam educar os filhos, possibilitando-lhes contato com músicas infantis, narrativas, contos etc. As “professoras” das instituições (jardim-de-infância), por isso, eram constituídas de mães, pois estas, com sua delicadeza e amor de mãe, já tinham uma predisposição nata para a educação das crianças.

Com base na atuação da mulher (mãe jardineira) é que a criança passaria a exteriorizar o interior e interiorizar o exterior. Mas, o que significam esse exteriorizar o interior e interiorizar o exterior? Os objetos, o mundo exterior “excitam o homem para que os conheçam em sua essência e em suas relações”. Nessa relação de pegar e sentir os objetos, por meio dos sentidos, “o menino começa espontaneamente, a exteriorizar seu interior” (FROEBEL, 2001, p. 46), isto é, manifestar o desejo de conhecer as coisas que o cercam. Respeitando o seu desenvolvimento deve-se possibilitar à criança o contato com tais objetos para que ela possa explorá-los e assim construir significados e fazer relações. Em consonância com o pensamento de Pestalozzi, havia uma valorização da vivência das crianças em situações práticas. Porém, esses dois mundos (exterior/interior) precisam ser unificados, já que um não existe sem o outro.

Segundo Froebel (2001, p. 86), todas as aprendizagens e doutrinas futuras têm seus primeiros sinais na infância, e o ensino precisa “fazer com que o aluno se dê conta da unidade de todas as coisas e de que todas existem, descansam e vivem em Deus”. Ao falar da unificação, a escola deve intermediar o aluno e o mundo exterior, mantendo os “dois idiomas” para que ele possa compreender a si e a seu contexto. Essa perspectiva faz-nos lembrar do pensamento moriniano de que o conhecimento não se efetua na simples acumulação dos conhecimentos produzidos pela humanidade, mas por transformações dos princípios que os organizam.

Ante essa concepção de infância, educação, homem, natureza, Deus, Unidade Vital, a educação para Froebel não se restringe a isso, mas a um currículo que possibilite essa unidade e que pressupõe a integração de vários aspectos (espirituais, intelectuais, afetivos) da vida da criança. A unidade entre as várias linguagens é imprescindível à formação da criança, por isso ele propõe um ensino em que se valorize a religião a qual deveria possibilitar a consciência de unidade entre o sujeito, a natureza e Deus. O estudo da natureza juntamente com o estudo do homem, “associados com a evolução geral da humanidade, aclaram-se e complementam-se mutuamente” (idem, 2001, p. 102). Froebel ainda destaca a importância do estudo da matemática para as crianças:

a matemática não é uma ciência morta, encerrada em si mesma, nem, tampouco, uma mera soma eventual de princípios e verdades reunidos e ordenados; mas constitui um todo, um conjunto vivo e fecundo renovado sempre, ligado ao desenvolvimento e progresso do espírito humano em suas relações com a unidade e a pluralidade, com a intuição e o conhecimento (FROEBEL, 2001, p. 132).

A arte, os jogos e as brincadeiras, o estudo da natureza, o cuidado com o corpo, poesias e canções, trabalhos manuais, desenho, história, contos, excursões e viagens, todos esses conhecimentos são indissociáveis e contribuem de forma decisiva para o desenvolvimento da criança pequena. Esses aspectos são inseparáveis na construção de um currículo complexo e aberto à diversidade.

Arce (2002, p. 181-182), falando sobre a educação na concepção de Froebel, salienta que é necessário para o desenvolvimento da criança

“agir pensando e pensar agindo” que era o melhor método para evitar que o ensino por demais abstrato prejudicasse o desenvolvimento dos talentos dos alunos, o que os levaria à compreensão da tríade (Deus, Natureza, Homem) que guia todas as suas vidas, abrindo, portanto, as portas para se atingir a perfeição enquanto ser humano.

Froebel sofreu críticas por ser um romântico na sua concepção de infância, por considerar a criança como um ser inocente e puro, por valorizar a importância dos pais (especialmente a mãe) na primeira educação que as crianças recebem e por valorizar a religião, isto é, a sua concepção de que toda educação deve ter como princípio básico aproximar o homem de Deus. Em muitas dessas críticas, vemos a dicotomização entre ciência e espiritualidade, crítica que atribuo a uma falha do pensamento moderno, que, para se considerar científico, deve estar fundamentado unicamente na razão e afastado, ao máximo, da espiritualidade. Vemos a contribuição de Froebel para a educação das crianças pequenas como algo inovador para aquele momento histórico. Ele foi o divisor de águas entre a educação de crianças pequenas: antes e depois de Froebel.

Froebel (2001, p. 29) propõe que todo ensino e qualquer educador devem atuar de forma ambivalente, isto é, em duplo sentido, “dar e tomar, unir e separar, mandar e obedecer, fazer e suportar, obrigar e ceder, apertar e afrouxar”. Ainda argumenta que

O ensino, assim como o educador mesmo, deve apresentar o individual e o particular como geral e o geral como particular e individual, comprovando- os na vida; deve exteriorizar o interior e interiorizar o exterior o externo e mostrar a necessária unidade38 de ambos; deve considerar o finito em seu

aspecto infinito, e o infinito em seu aspecto finito, fazendo ver como um e outro se unem na vida; deve contemplar o divino no humano, e a essência do homem em Deus, [...] que se manifeste o eterno no temporal, o celeste no terreno, o divino no humano e na vida humana. [...] Se considere a unidade, a individualidade, a pluralidade e que nele se represente, ao mesmo tempo, o presente, o passado e o futuro (FROEBEL, 2001, p. 30).

38 Grifo nosso

Nesse pensamento froebeliano, estão presentes vários aspectos da contradição humana e os princípios para a construção de um currículo pautado nos ideais da complexidade de Morin, em que o todo está na parte, e a parte está no todo, isto é, a religação dos saberes, ideias e conceitos. Ao falar dessas contradições, observamos que tais autores, em contextos e tempos tão distintos, apresentam, de alguma forma, uma relação ao discorrerem sobre educação, seja uma educação na “era planetária” seja uma educação romântica. O que fica explícito é que o indivíduo não está isolado no mundo. Ele é um ser histórico, cultural, espiritual, emocional e, como tal, deve acompanhar as mudanças ocorridas na área do conhecimento e na sociedade. O saber não está isolado, fragmentado nem solto, ele tem relação direta com o homem e deve continuar sendo esse processo de descoberta e redescoberta.

Porém, o homem muitas vezes está mais preocupado com o acúmulo de conhecimento do que com a sua produção, construção e reconstrução. Froebel (2001, p. 87) ainda considera que não são poucos “os professores que ensinam aos alunos uma quantidade enorme de coisas sem saber uni-las, sem pôr em destaque a unidade necessária – íntima e espiritual de todas elas”. Não pensam, não refletem, não se questionam para descobrir/redescobrir o outro, o mundo, aceitam apenas o que está instituído. Não tornam o conhecimento dialético/ dialógico ou em movimento permanente. Junto a essa visão, Froebel (2001, p. 31) salienta que “não há critério mais prejudicial que o de considerar o desenvolvimento da humanidade como definitivo e concluído, julgando que ela se limita a tão-só estender-se e repetir seus tipos”.

Assim, se tudo muda, vivemos um momento no qual nos encontramos (alunos, professores, pais) perdidos, sem um elo e muitas vezes sem bases para compreender e discutir os diversos problemas que circulam a sociedade. A compartimentalização, a fragmentação, que também acontece na educação infantil, acaba por enclausurar o saber. O que poderia ser divertido, prazeroso se torna maçante e enfadonho. Falta a contextualização.

Froebel deixou contribuições grandiosas para a infância e cabe a nós educadores compreender a infância na nossa sociedade e no nosso contexto. A criança da sua época foi uma, a da nossa época (século XXI) é outra, porém todas têm capacidade para criar e compreender as coisas.

Para acontecer a mudança na visão, no caminhar, na compreensão, faz-se necessária a conscientização que surge das reflexões, meditações e estudos dentro e com a nossa história. É preciso uma mudança a ponto de reconhecer os equívocos e desequilibrar-se na busca do novo, constatando que fomos vítimas e causa de uma sociedade que, hoje, se desconhece, não

se compreende. Admitir erros, falhas, dúvidas é um grande passo para a busca do outro, para o reconhecimento de que não nos bastamos a nós mesmos. É preciso abrir-se ao outro, ao novo, ao incerto, ao desconhecido, tanto como pessoas quanto como profissionais. E tudo isso deve começar pelos professores/educadores, principalmente os que trabalham na educação infantil, pois é nesta fase que começam a vida escolar/educacional e a construção/ reconstrução do conhecimento.