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PARTE I — ASPECTOS POLÍTICO-SOCIAIS DA INFORMAÇÃO 1 O uso social da informação

3. Informação e esfera pública

3.1. A informação na constituição da esfera pública

O processo comunicativo está na base do conceito da esfera pública que, segundo HABERMAS (1997b), se constitui através da linguagem. É nessa interação comunicativa que se constitui o público e se formam as opiniões.

“A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana”. (p. 92)

A informação, como base desse processo comunicativo, encontra-se na gênese da formação da esfera pública burguesa, que se criou para legitimar os interesses da classe emergente e se regulamenta através da publicidade. De acordo com HABERMAS (1984), na formação dessa esfera pública cresce a importância da informação, principalmente porque é através dela que se obtém o controle da administração. Importante lembrar que o controle financeiro é o ponto principal da administração na formação do Estado moderno, em função das crescentes necessidades de dinheiro para manter as instituições burocráticas. “O Estado moderno é essencialmente um Estado de impostos, a administração financeira é o cerne de sua administração” (p. 31).

O Estado é a esfera de regulamentação das relações públicas burguesas, mediando os interesses das esferas privadas que constituem o público. A publicidade atua, então, como as censuras política e econômica para coibir abusos. “O que é submetido ao julgamento do público ganha ‘publicidade”. (p. 41). No centro do público, encontra-se o público leitor crítico, que participa e compartilha da opinião formada na esfera. Mas não é todo burguês que tem acesso à esfera pública, pois sua formação exclui aqueles burgueses das tradicionais corporações profissionais e com produção artesanal e inclui apenas os grandes comerciantes, que assumem os instrumentos de controle do público.

ARENDT (2000) afirma que o espaço público se constitui “na ação e no discurso” e destaca, ainda, a importância da visibilidade, da publicidade para sua formação. Assim, a esfera pública só tolera o que for considerado relevante, ficando o irrelevante para a esfera privada. “Para ela [Arendt], o que é definidor do espaço público é o fato de ser um espaço que só pode ser construído pela ação e pelo discurso” (TELLES, 1999, p. 51).

O conceito de espaço público para Hannah Arendt, se apresenta em três dimensões: 1) o espaço da visibilidade (onde se formam opiniões e julgamentos); 2) mundo comum de pertinência (que oferece referência àqueles que dele participam) e, ainda, 3) espaço político de opinião.

Segundo Telles, Arendt não aceita a idéia de se constituir uma esfera pública a partir de interesses privados. HABERMAS (1984) trata de uma “interpenetração progressiva da esfera pública com o setor privado” através do crescimento da intervenção estatal. Arendt, afirma Telles, percebe um declínio da esfera pública, o que quebraria a noção de realidade, comprometendo a capacidade de pensamento, uma vez que eliminaria a referência no outro porque os homens “tenderão a fazer de seus interesses e sentimentos privados a medida de todas as coisas” (p. 47). Isso porque, na concepção de espaço público de Hannah Arendt, a construção de um mundo comum, que se forma na ação e no discurso, é que oferece os critérios para distinguir o que pertence ao privado do que pertence ao público e permite pensar em torno do conjunto e do interesse geral e não apenas de interesses específicos.

“Enquanto critérios de discernimento, são referências a partir das quais os homens podem se orientar num mundo caracterizado pela pluralidade dos agentes, pela contingência dos acontecimentos e pela imprevisibilidade dos efeitos da ação que cada qual realiza. E é isso que se esvai à medida que o espaço público se dissolve. A perda do espaço público significará a perda dessa relação objetiva com os outros homens e, com isso, a perda mesma de uma noção de realidade”. (p. 46)

ARENDT (2000) reconhece que no mundo moderno as duas esferas (pública e privada) “constantemente recaem uma sobre a outra, como ondas no perene fluir do próprio progresso da vida” (p. 43). Mas aponta para a necessidade de retomar uma diferenciação entre o público e o privado, não aceitando a idéia da construção de um espaço público a partir de interesses privados.

Essa divisão está bastante clara na concepção antiga de política, onde o público (polis grega ou a res publica romana) se diferenciava do privado (lar), por ser o espaço de total liberdade entre os iguais. Na esfera privada do lar, o que predomina é a relação de subordinação, de domínio e emprego da força. No público, na polis, o que predomina é o poder da ação e do discurso, da persuasão e ausência de violência. A vida política é determinada pela liberdade de seus membros participantes, libertos que estão de lutar pelas necessidades da sobrevivência (função do lar) e mesmo da servidão (como são os escravos). O termo “economia política”, esclarece a autora, não seria aceita pelos cidadãos da antiga Grécia porque a economia é uma atividade restrita à sobrevivência e por isso é assunto doméstico.

“O que os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade [...] e alcançar a liberdade.” (p. 40)

Esse conceito não corresponde à organização moderna de sociedade, concebida, ainda segundo Arendt, como “o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada ‘nação” (p. 38). A autora não prega um retorno ao ideal clássico grego; entretanto, defende que o político volte a assumir papel preponderante na constituição da esfera pública de modo a impedir sua formação a partir da disputa entre interesses privados. Para Arendt, “quanto maior é a população de qualquer corpo político, maior é a probabilidade de que o social, e não o político, constitua a esfera pública” (p. 52). O político, na sua avaliação, é o elemento que mantém a possibilidade de formação da esfera através da persuasão e não em torno da imposição da vontade da maioria do grupo mais forte. A troca identificada por Arendt desvirtuaria a concepção da origem da esfera pública que passaria a se constituir a partir do comportamento, e não mais da ação e do discurso.

A concepção apresentada por Hannah Arendt é alvo de críticas, principalmente porque ela projeta um ideal da visibilidade no espaço público sem mediações, o que se afasta

completamente das relações políticas sociais. “E é difícil imaginar uma interação política que não dependa do jogo dos conflitos e oposições que atravessam o espaço social” (TELLES, 1999, p. 68). HABERMAS (1993) aponta algumas limitações na teoria de Hannah Arendt em função de apresentar dicotomias conceituais rígidas que não se aplicariam na sociedade moderna. Ela adota uma veemente crítica ao privatismo na sociedade e defende uma rígida separação entre público e privado que para Habermas não ocorre na prática. O espaço público, para Hannah Arendt, seria o espaço da democracia direta, do poder comunicativamente produzido numa condição de comunicação sem violência. “(Nas) diferentes formas de democracia direta vê, H. Arendt, as únicas tentativas de constituição de liberdade nas condições da sociedade moderna” (p. 109). O espaço público descrito por Hannah Arendt só existiria em condições ideais sem conflitos e sem a interferência da economia.

“Nada mais distante de seu pensamento do que a idéia de um contrato social. E nada mais avesso às suas preocupações teóricas e políticas do que a identificação do público com o Estado, por referência ao qual os interesses privados encontrariam os limites e as referências para o seu agenciamento na esfera da economia.” ( TELLES, 1999, p.67)

As condições descritas por Hannah Arendt criariam uma condição sui generis, que Habermas descreve como inviáveis para a sociedade moderna:

“[...] um Estado, exonerado da elaboração administrativa de matérias sociais; uma política, depurada das questões relativas à política social; uma institucionalização da liberdade pública, que independe da organização do bem-estar; um processo radical de formação democrática da vontade, que se abstém em face da repressão social — este não é um caminho viável par nenhuma sociedade moderna.” (p. 110) Vale ressaltar que Habermas trata da formação da esfera pública burguesa, no período de criação da concepção do Estado moderno, centrado na administração financeira e na regulamentação dos interesses privados pelo Estado interferindo na formação da esfera pública. Arendt busca a formulação clássica de espaço público político a partir de bases do pensamento aristotélico, numa tentativa de recuperar princípios básicos que orientam a formação do público.

Ainda que se considerem as críticas de inadequação de conceitos clássicos à organização da sociedade moderna, o pensamento de Hannah Arendt apresenta grande importância na elaboração de um conceito de esfera pública. Importante destacar o contexto em que a autora produz seu pensamento, numa época de ascensão e auge de regimes totalitários, como o nazismo (do qual sofreu perseguição) e o stalinismo. Sua pesquisa orienta-se na investigação de experiências de dominação autoritária e tentativa de explicação da deformação de democracia de massas ocidentais. Na divisão conceitual rígida e na defesa de um espaço público “puro” — uma vez que ele se corrompe e deixa de existir a partir do momento em que sofre interferência de interesses privados — Hannah Arendt oferece elementos para reflexão na identificação dos problemas da sociedade moderna. “Não há como não reconhecer que essas dicotomias dão o que pensar” (TELLES, 1999, p. 66). O que ela propõe, observa Telles, é a subversão dos termos tal como apresentados pela teoria política clássica. Em suas teorias, Arendt busca descrever quais seriam as “condições de normalidade da existência humana digna” (HABERMAS, 1993, p. 105) e com isso abre o debate ao apresentar em que momentos a privatização do espaço público se transforma numa ameaça às liberdades humanas, apontando um dos possíveis caminhos do totalitarismo.

Para HABERMAS (1984), a interpenetração das esferas pública e privada trata-se do resultado praticamente inevitável da evolução das complexas relações da sociedade burguesa. A constituição de um “público dos homens” constitui a base do Estado liberal de Direito, que, baseado no princípio da razão, formará uma legislação com base na “vontade do povo”. É também a base de uma suposta neutralidade reivindicada pela sociedade burguesa que, na verdade, não passará de falsa aparência, para defender um modelo econômico livre de regulações do Estado. O argumento é que numa suposta condição de livre concorrência, ninguém conseguiria obter poderes absolutos sobre o outro. Entretanto, essa argumentação omite a desigualdade de condições entre os atores que participam da concorrência, privilegiando, certamente aqueles que detêm maior poder de barganha. Para resolver essa situação e garantir igualdade de condições, torna-se necessária uma intervenção do Estado.

“Processos de concentração e processos de crise arrancam o véu que encobre a ‘troca por equivalentes’ e desvelam a estrutura antagônica da sociedade. Quanto mais ela se mostra como um relacionamento simplesmente coercitivo, tanto mais urgente se torna a necessidade de um Estado forte.” (p. 172-173)

A partir dessa constatação, são acrescidas ao Estado funções que permitem maior intervenção pública na esfera privada. Essa intervenção do Estado se presta tanto como uma forma de “contrapor-se, [...] com meios políticos, a quem seja superior graças a posições de mercado”, atenuando desigualdades do mercado; quanto à manutenção do sistema vigente, através mesmo dessa atenuação de desequilíbrio, funcionando como uma válvula de escape. “De um modo geral [...] as intervenções do Estado, mesmo onde tenham sido obtidas contra interesses ‘dominantes’, estão no interesse da manutenção de um equilíbrio do sistema que não possa mais ser assegurado através do mercado livre” (HABERMAS, 1984, p. 173-174). Essa necessidade crescente da intervenção estatal é a base da interpenetração da esfera pública na esfera privada. Contratos de relações privadas passam a ter caráter público e “o sistema jurídico privado é invadido pelo crescente número de contratos entre poder público e pessoas privadas” (p. 179).