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PARTE II — ACESSO À INFORMAÇÃO DE GOVERNO NO BRASIL 1 A informação no Estado Brasileiro

Nível 9 — permite consultar todos os documentos e informações de qualquer UG ou órgão do sistema.

2.3. CPMI do Orçamento — a visão da opacidade

Um dos pontos pesquisados neste trabalho foi o papel desempenhado pelo Siafi durante os trabalhos de investigação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instaurada em outubro de 1993 no Congresso Nacional para apurar denúncias de corrupção nos processos de elaboração e execução orçamentária. Esse episódio representou um marco por ter colocado em foco a discussão sobre o processo de elaboração e execução do orçamento

da União, mostrando como a falta de divulgação de informações sobre o orçamento beneficia a formação de grupos paralelos de poder.

A descrição mais detalhada sobre o papel do Siafi nesse processo foi tratada durante as entrevistas. A análise desse episódio serviu, neste trabalho, não só para identificar a função ocupada pelo Siafi no acompanhamento da execução orçamentária; também foi um ponto de referência para identificar percepção de aperfeiçoamento na relação de transparência do Orçamento Geral da União, uma vez que dentre as conclusões apresentadas no relatório final da comissão encontram-se orientações para mais transparência do processo orçamentário, descentralização de informações e democratização do acesso ao Siafi.

Antes, porém, será apresentado um breve histórico do que foi a CPMI do Orçamento, incluindo descrição dos esquemas investigados e resumo das principais conclusões do relatório final, com destaque para as orientações para transparência.

A partir da constituição de 1988, o Congresso Nacional passou a ter possibilidade maior de participação na definição da Lei Orçamentária do que havia tido até então. A Constituição fora promulgada em outubro de 1988, quando o Orçamento para 1989 já deveria estar em fase final de elaboração. Em tese, a partir da definição do Orçamento de 1990, o Congresso já poderia ter mais participação e mais poder de fiscalização sobre os gastos públicos. Legalmente, a Constituição previa a descentralização do processo de definição da destinação do dinheiro público. Entretanto, não se verificou, na prática, uma mudança imediata, e o processo seguiu com vícios de dependência em relação ao Executivo e a margem de fiscalização permanecia pequena. Havia interferência do Executivo e de grupos econômicos. Esse quadro pôde ser descoberto durante os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito criada em 20 de outubro de 1993, para “apurar fatos contidos nas denúncias do sr. José Carlos Alves dos Santos, referentes às atividades de parlamentares, membros do governo e representantes de empresas envolvidas na destinação de recursos do Orçamento da União”46. A comissão ficou popularmente conhecida, através de divulgação pela mídia, como a “CPI dos anões”, em função da baixa estatura dos parlamentares envolvidos nas ilegalidades.

O autor das denúncias, José Carlos Alves dos Santos, era economista, funcionário do Senado Federal desde 1970 e trabalhava como assessor de orçamento. As denúncias foram feitas inicialmente à imprensa e depois confirmadas em depoimento à Comissão, onde descreveu dois esquemas de corrupção na elaboração e execução orçamentária: um ligado à liberação de verbas de subvenção social e outro ligado às empreiteiras. As denúncias foram feitas depois que a Polícia Federal, ao investigar o assassinato da esposa de José Carlos Alves dos Santos, levantou suspeitas sobre o envolvimento dele no crime.

O chamado esquema das subvenções foi assim descrito:

“Havia duas maneira de se auferir comissões, através das subvenções sociais adotadas e da dotação orçamentária global, a fundo perdido, o mais das vezes envolvendo o Ministério do Planejamento (na gestão de Aníbal Teixeira), o Ministério da Ação Social e o Ministério da Educação, este na gestão de Carlos Chiarelli.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 1, p. 42).

O das empreiteiras funcionava da seguinte maneira, conforme descrição do denunciante:

“O sistema de apropriação funcionava de comum acordo com uma empreiteira: o parlamentar aprovava uma emenda e exercia sua influência para que determinada empreiteira realizasse a obra, pagando uma comissão ao parlamentar.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 1, p. 42).

No caso do esquema das subvenções, a CPMI descobriu que os deputados envolvidos no esquema destinavam verbas de subvenção social para entidades filantrópicas ligadas a eles próprios ou a parentes próximos. Nesses casos, ou eram entidades ligadas a fins eleitoreiros ou eram entidades de fachada, pseudofilantrópicas, criadas para ocultar desvio de dinheiro público. No caso do esquema das empreiteiras, os parlamentares do esquema recebiam dinheiro dos lobbies das empresas. Prevalecia o esquema de tráfico de influência, onde o parlamentar que detinha influência para liberação de verbas recebia porcentagem das empresas que recebiam a obra para a qual o dinheiro fora destinado. Durante as investigações, a CPMI descobriu documentos na casa de empreiteiros investigados que apontavam para existência de formação de cartel, indicando um grupo organizado informalmente de modo a promover a divisão de obras entre si, influenciando até mesmo

no processo de licitação. As empreiteiras dispunham de vários subterfúgios para fugir à fiscalização constante. A terceirização e a sub-empreitada, como descreve o relatório final da CPMI, são expedientes que dificultam a fiscalização da destinação da verba pública, porque são operações não registradas no Siafi.

A falta de preparo técnico e a concentração do conhecimento sobre o processo orçamentário entre parlamentares e assessores foram apontadas pela CPMI como características do processo orçamentário que ajudavam a sustentar o esquema de corrupção e tráfico de influência:

“A complexidade do projeto e sua falta de transparência permitiam que fosse alterado até mesmo após a votação, quer ainda antes da publicação, quer já no Departamento de Orçamento da União.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 3, p.4).

“Ao longo do tempo, a apreciação do projeto orçamentário se revestiu de características de dificuldades técnicas que impediam a transparência do processo. Colaborava para tal situação o desaparelhamento material do Legislativo.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 3, p. 8).

“A lei orçamentária tem sido, na prática, elaborada em interação com o Departamento de Orçamento da União, sem que, por muito tempo, tivesse atingido o necessário estágio de aparelhamento técnico e de recursos humanos para uma perfeita compreensão de todas as complexidades.

Essa própria dificuldade facilitou a emergência de um núcleo de poder dentro da Comissão Mista do Orçamento, que esperava contrapartida por parte de autoridades encarregadas da elaboração e da execução orçamentárias no Poder Executivo.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 3, p. 8).

A situação identificada durante os trabalhos de investigação levou a CPMI a concluir que, na prática, o poder de fiscalização atribuído pela Constituição de 1988 ao Legislativo não estava sendo praticado, em função da real dependência frente ao Executivo:

“A inovação introduzida pela Constituição de 1988, atribuindo às comissões permanentes a responsabilidade de fiscalização do Poder Executivo não chegou a atingir o objetivo colimado: o controle cotidiano e preventivo não vem sendo desempenhado a contento por aqueles colegiados.” (Relatório da CPMI do Orçamento, v. 3, p. 13).

Essas conclusões mostraram o quanto é diferenciado o tratamento da informação dentro do poder. Revelaram, ainda, que a postura do governo brasileiro frente à elaboração e execução do Orçamento Geral da União remonta com fidelidade a dialética proposta por JARDIM (1997) em torno da transparência e opacidade informacional e como essas duas noções convivem na vida pública brasileira em diferentes esferas de poder, formando uma situação que reforça o controle do Estado por grupos econômicos privados.

Os resultados das investigações conduzidas pela CPMI e a repercussão do assunto na mídia nacional exigiam adoção de procedimentos para impedir (ou dificultar) a formação de novos esquemas de corrupção dentro da Comissão Mista de Orçamento. Ficou constatado, através dos trabalhos, que a publicidade dos procedimentos relativos ao processo orçamentário era indispensável para garantir a sua lisura, pois aumentava a possibilidade de fiscalização e controle e reduzia a possibilidade de irregularidades e atos ilícitos.

Dentre as recomendações do relatório da CPMI do Orçamento — descritas no volume 3 — destacam-se:

a. exigência de rigoroso controle da execução do orçamento; b. necessidade de aperfeiçoar e democratizar o acesso ao Siafi;

c. conjugar a elaboração orçamentária com o acompanhamento da execução financeira do ano anterior;

d. quebrar o monopólio da informação detido pelo Executivo;

e. envolvimento das comissões técnicas na elaboração do Orçamento;

Em resumo, a proposta de uma nova sistemática para elaboração compartilhada do Orçamento Geral da União, incluindo a cotidiana fiscalização da execução, ficou assim descrita:

a. elaboração conjunta do orçamento pelo Legislativo e o Executivo; b. conferir funções fiscalizadoras às comissões técnicas;

c. determinar que o orçamento de receitas seja constantemente avaliado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados e pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.

Algumas decisões do Congresso foram determinantes para exercício efetivo da fiscalização e controle do Orçamento. Uma delas foi a formação de quadros técnicos para assessorar os parlamentares de modo a reduzir a dependência em relação ao Executivo para obtenção de informações. Até 1991, a redação final do projeto de lei orçamentária era feita com auxílio de técnicos do Executivo. A partir de 1992, depois da formação do primeiro quadro de assessores especializados na área, o Congresso pôde fechar integralmente a proposta, elaborando a redação final sem auxílio do Executivo (GREGGIANIN, SANTA HELENA, 1999, p. 7), o que ofereceu mais condições para que o Legislativo tivesse mais autonomia para exercer seu poder constitucional de fiscalização.

Ainda assim, o processo orçamentário continua marcado por alto grau de discricionariedade por parte do Executivo no processo orçamentário, como é possível perceber no estudo feito por GREGGIANIN, SANTA HELENA (s.d.), onde eles preparam uma minuta onde descrevem um estudo comparativo do processo orçamentário brasileiro e o estadunidense. De início, é possível verificar que o aparelhamento técnico do Legislativo em relação ao assunto ainda deixa a desejar. De um lado, a considerar a situação anterior ao trabalho da CPMI, apresentou um avanço. No entanto, o mesmo não se pode dizer quando o quadro brasileiro é colocado frente a outras realidades: enquanto a consultoria de Orçamento do Congresso brasileiro conta com 30 consultores contratados por concurso público, o órgão equivalente do Congresso estadunidense dispõe de 232 profissionais na área.

Mas há outras características do processo orçamentário brasileiro que mostram o quanto a estrutura — de elaboração e execução — dificultam a possibilidade de fiscalização e possibilidade de interferência do Legislativo, como mostram Greggianin e Santa Helena. A estrutura orçamentária no Brasil é feita no Poder Executivo e revista pelo Congresso, a partir de análise da evolução da receita, dos gastos obrigatórios e de outras condições macroeconômicas. Nos Estados Unidos, a estrutura orçamentária é definida no Congresso, seguindo os mesmos parâmetros de análise do processo brasileiro. Nos Estados Unidos, a

margem de discricionariedade na execução orçamentária foi limitada pelo Congresso após o governo Nixon (1974); o orçamento e sua execução passaram a ser obrigatórias, exceto se autorizada a não execução pelo Congresso. No Brasil, segundo estudo de Greggianin e Santa Helena (s.d.), “o caráter autorizativo do orçamento aliado aos decretos de contingenciamento subvertem as prioridades estabelecidas na lei orçamentária” (p.2). Isso resulta na utilização do Executivo da liberação de verbas como instrumento de ação política. A criação de mecanismos de restrição orçamentária no Brasil é uma prerrogativa do Executivo, enquanto nos Estados Unidos, esses mecanismos, existentes desde a década de 70, emanam do Congresso.

3. A exploração de um campo de luz e sombra